Viva o Povo Brasileiro - João Ubaldo Ferreira
Desde quando tenho este livro? A edição portuguesa é de 1995. Devo tê-lo comprado nessa altura ou, no máximo, um ou dois anos mais tarde. Não o li. Outros livros, melhor publicitados, se devem ter atravessado no meu caminho. Que se passava comigo em nessa segunda metade da última década do século passado? Andaria cansado... enlouquecera... estaria bêbedo? Viva o Povo Brasileiro é um dos livros mais extraordinários que jamais foi escrito em português. Não: não tenho medo das palavras. É um enorme romance. Uma obra-prima.
Voltei a pegar nele este ano – 2009!!! – depois das férias, acicatado pela leitura do Leite Derramado, de Chico Buarque, e pela releitura, levado pela crítica que notava a sua influência em Buarque, de Dom Casmurro, de Machado de Assis.
Ubaldo Ribeiro conta-nos uma história do Brasil vista pelos olhos dos negros, mulatos, mestiços, cafusos, caboclos, mamelucos, crioulos; dos escravos da plantação ou roça, das mucamas ou macumas; de todos os pobres e humilhados. Nas suas palavras, este povo, esta gente, com os seus ritos, as suas tradições preservados pelos velhos, pelos cegos contadores de histórias e por uma oralidade que se recusa a deixar-se vencer pela versão escrita e oficial, a sua religião, as suas tradições, os seus amores, as suas vinganças, representa a essência da brasilidade. Mentem os arquivos, cujos autores são pagos para enfeitar a genealogia das personagens que se dizem importantes – ou seja, dos que, a troco de mentiras, vigarices e falcatruas, se apoderaram do poder. Daqueles que, muitas vezes vindos de um nada que detestam e transformam depois em ascendências nobres e estrangeiras, financiam a história ensinada nas escolas e repetida nas repartições.
Mentem, sobretudo, os arquivos dos brancos. E isto porque a negritude é vista como um defeito das classes inferiores, responsável pelo eterno atraso do país, travado na sua possível marcha para o desenvolvimento económico, o progresso material e moral, o conhecimento e a ciência, por essa multidão de negros, escravos ou libertos (alforriados), arreigada a tradições místicas e confusas que a clara razão não consegue vencer. Nesta versão dos factos, é a preguiça, a moleza, a modorra, dessa gente desqualificada, que impedem que uma estreita e mentirosa elite, desesperada de não ter nascido e não viver nessa Europa de que nunca fez parte mas que constitui o paraíso a que aspira, de andar para a frente, de transformar a enorme riqueza natural do país num instrumento de poder.
Pelo contrário, na epopeia de Ubaldo Ribeiro, nesta enorme aventura do povo brasileiro, guardada em prosa agora como a dos portugueses em verso por Camões, são precisamente estes que viveram e vivem sob grilhetas que constituem a essência desta terra de pau-brasil e é através deles que se construirá a grandeza do país. Numa frase que resume o livro, o objectivo dos que lutam «não é bem a igualdade mas a justiça, a liberdade, o orgulho, a dignidade, a boa convivência», tudo aquilo que é negado aos oprimidos pelos homens que dispõem do poder e pelo sistema que os perpetua nele.
Será apenas pela união, pela junção, pelo enlace, entre as várias camadas da população brasileira (daí a referência à boa convivência), simbolizada no livro, pelo amor de Patrício Macário, filho do pardo Amleto Ferreira, mulato, mesclado, que termina a vida como banqueiro poderoso depois de ter roubado o patrão branco e nobre e de ter mudado o nome para Ferreira-Dutton, com a chefe de bando, heroína da liberdade, Maria da Fé, Dafé, que o país poderá transformar-se. Mas essa união só pode fazer-se, como no livro, quando os brancos, que aqui significam os poderosos, descerem ao encontro dos que nada têm, senão a vida e uma espécie de confiança no futuro que resiste a todas as contrariedades. É Patrício Macário que se acolhe aos ritos negros e, desta forma, consegue encontrar o descanso que é como que uma espécie de felicidade. E é ele que, no dia da sua morte, que é também o dia dos seus cem anos, resume numa expressão (O Espírito do Homem) a esperança de que as coisas mudarão.
Para além de tudo isto, Viva o Povo Brasileiro é um festival da língua portuguesa. Às vezes, a leitura é difícil, tal a riqueza do vocabulário do autor e a expressividade das suas frases, numa mistura de diferentes falares que são o espelho fiel da amálgama das gentes que formam o povo brasileiro. Mas vale a pena prosseguir, se necessário, como me aconteceu, com dicionário ao lado, ou tomando nota das palavras para conferir, mais tarde, o seu significado. Há muito, muito tempo, que não encontrava uma tal profusão de palavras, frases, expressões, gritos imitados, onomatopeias, sons de animais, barulhos duma natureza luxuriante…
Leiam especialmente a descrição do concílio dos deus afro-americanos (páginas 440-454) que, depois de muitas tratações, decidem apoiar o povo brasileiro na Guerra do Paraguay. Clara referência a Homero e a Camões, são, desta vez, deuses com nomes estranhos que se imiscuem na vida dos homens: Oxalá, pai dos homens, filho único de Olorum, senhor da alvura, mais alto entre todos; Oxóssi, incomparável caçador da madrugada, senhor da astúcia, rei das matas, imbatível no arco e na flecha; Xangô, rei de Oió, senhor do raio, senhor da igi-ará, atirador de pedras; o poderosíssimo Ogum, ferreiro sem par, senhor da ferramenta, singular no combate, cujo nome é a própria guerra e que, por orgulho injustificado, se recusa primeiro a defender o seu povo mas depois retrocede na sua decisão por intervenção de Iansã, senhora dos ventos e tempestades, raínha dos espíritos, valente e ousada como os tufões, de bravura irresistíve, que deixa claro que nunca mais se deitará na sua cama se ele ficar quieto enquanto morrem os seus filhos barsileiros; e Exu, o que come de tudo, amigo dos cachorros, mensageiro dos orixás, o que ri na escuridão e conhece mil ardis e se deleita em estratagemas. Só não participa na batalha (mas estará presente depois dela, para cobrar o seu tributo em mrtes porm doenças e infecções) Omolu, deus das pestes, mestre da bexiga e dos furúnculos, senhor das epidemias, aquele que mata sem faca. Os deuses, que vieram de África com o seu povo, acompanhando os escravos, ajudam os brasileiros e é com eles que estes vencem.
Livro estupendo, extraordinário, estimulante; livro fascinante, misterioso; livro profuso, como folhagem de floresta tropical; livro mágico, sombrio, alegre, mulato e mestiço; livro heróico, trágico, paródico; livro de gente livre, livro de liberdade... Livro de um homem que olha o passado do seu povo e nele descobre a essência da sua vida colectiva... Livro por que rimos, por que choramos. Livro de heróis humildes e de gente suja e brava. Livro de um povo, livro de uma nação, livro de um continente, de uma civilização.
O que é o romance? O que é a literatura? Numa palavra: este livro. A criação de um universo animado, presente... Uma mensagem de liberdade: a vida!
Podia continuar por muitas e muitas páginas. Como sempre, limito-me a dizer: leiam o livro. Agora, estão prevenidos. Não se queixem se passarem, como eu quase passei, ao lado do que pode facilmente considerar-se a maior obra em prosa da literatura em língua portuguesa da segunda metade do século XX.
1 Comments:
posso usar a imagem para divulgação de um festival de cinema? meu e-mail é ale.ipatinga@gmail.com. obrigada.
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