sexta-feira, 21 de agosto de 2009

Escutas - O silêncio de Cavaco

Esta questão de uma alegada vigilância da Presidência da República pelo Governo e de escutas, obviamente ilegais, feitas a colaboradores do Chefe do Estado, para além da sua imensa gravidade, tem o condão de transformar pessoas normalmente inteligentes em autênticos atrasados mentais.

Assim, por exemplo, na entrevista que deu ontem a Judite de Sousa, Manuela Ferreira Leite disse esta coisa extraordinária: «Não quero saber se há escutas ou não. As pessoas sentem que há». Como acontece frequentemente quando se trata das declarações da chefe do PSD, belisco-me para me certificar de que estou mesmo acordado. Porque esta declaração é simplesmente espantosa. Uma candidata a Primeira-Ministra não considera necessário saber se é verdade ou não que o Governo vigie (isto é, controle por meios ilegais) o Presidente da República – no que seria, não apenas uma ilicitude desculpável (se é que esse monstro existe), mas pura e simplesmente um crime. Basta-lhe que as pessoas (que pessoas?) o sintam. Podia contrapor-se a Ferreira Leite que muitas pessoas (outras pessoas, por certo) também «sentiram» que a sua decisão de manter António Preto e Helena Lopes da Costa nas listas do PSD era errada. Mas a questão em causa é mais importante do que este exercício fácil de enumerar as contradições nas atitudes duma pessoa que pode vir a ser, após as eleições, Presidente do Governo.

Por outro lado, na sua coluna de hoje, no Diário de Notícias, um jurista, Paulo Pinto de Albuquerque, escreve um longo artigo dando de barato precisamente aquilo que se deveria começar por provar: a saber, o saber se tais actos se verificaram ou não. (De forma semelhante, António Capucho considera que as escutas existem porque, senão, o Presidente já teria declarado que não existiam). Para Pinto de Albuquerque, as escutas são criminosas e o responsável é o Primeiro-Ministro. Ao mesmo tempo, algo contraditoriamente, considera que tais alegações (anónimas, feitas sem que ninguém dê a cara por elas) deveriam impor uma imediata reacção por parte da Procuradoria-Geral da República - o que, diga-se de passagem, parece implicar que existam dúvidas quanto à existência de crime e, sobretudo, quanto aos seus responsáveis. Não acredito, com efeito, que um jurista como Pinto de Albuquerque pretenda condenar o Primeiro-Ministro sem lhe dar sequer a oportunidade de se defender.

José Sócrates também não tem reagido da forma que devia. A sua atitude é, contudo, mais compreensível. O Primeiro-Ministro encontra-se numa situação quase impossível, em que a sua única real opção é a de pretender estar confrontado com meros disparates de Verão. Na verdade, se concedesse importância àquelas afirmações, teria que renunciar ao cargo. De duas, uma: ou tais suspeitas se confirmavam, e impunha-se a sua demissão, culminando num final ignominioso da sua carreira política; ou não se confirmavam, e a demissão seria mesmo assim inevitável, por se ter quebrado o laço de confiança mínimo que deve existir entre o Presidente e o Chefe do Governo, com a consequência de se tornar impossível a sua necessária colaboração institucional. Mas, para azar e desespero de Sócrates, estas alegações não são daquelas que se podem afastar como meras asneiras infantis. Verdadeiras ou falsas, elas colocam em causa a democracia, o Estado de direito e a confiança dos governados nos órgãos e nas pessoas que os governam. Verdadeiras ou falsas, elas são gravíssimas.

Cavaco Silva, por seu lado, tem andado ainda pior neste inacreditável enredo. Atente-se nisto: um seu assessor ou conselheiro vem dizer a um jornal que existe em Belém um clima de consternação relacionado com uma pretensa vigilância do Governo sobre a Presidência. Ora, de duas, uma: ou o Palácio de Belém tem provas de que o Governo anda a vigiar ou escutar o Presidente (ou, o que é o mesmo, os seus colaboradores) – e o Presidente tem a estrita obrigação (repito: não se trata de uma faculdade mas de um dever) de demitir o Primeiro-Ministro; ou essas provas não existem – e o Presidente devia demitir o assessor e ponderar seriamente a possibilidade de também se demitir. Não há meio-termo. Como se dizia, no meu tempo, na Faculdade de Direito: tertium genus non datur.

Neste sentido, também se pronuncia uma das poucas vozes sensatas que se fizeram ouvir sobre este assunto: a de José Miguel Júdice (no Público de sexta-feira). «Suspeitas deste género colocam em risco o Estado de direito pelo simples facto de serem admitidas. E espirram para cima do Presidente da República, que não pode nem deve perante elas escudar-se num silêncio prudente, mas muitíssimo ruidoso». Não penso que se possa dizer melhor.

Mas este é um caso em que, ao contrário do que é habitual, o principal culpado é o mensageiro. Que tipo de jornalismo é este? Um jornal com as responsabilidades do Público aceita publicar comentários anónimos de um alegado colaborador da Presidência da República sobre uma questão desta importância sem um mínimo esforço de investigação? Aceita transformar-se em caixa-de-ressonância de boatos sem sequer se dar ao trabalho de controlar as suas fontes? Tivessem os jornalistas do Washington Post, na altura do Watergate, assumido idêntica posição e Richard Nixon teria terminado o seu mandato com toda a naturalidade. Confrontado com uma informação desta gravidade, que faria um jornal digno desse nome? Investigaria, aprofundaria o assunto, acumularia provas que avaliaria de forma ponderada e com o rigor que a severidade das alegações exige; e só depois viria a público e, nessa altura, sem concessões, exigindo, em grandes parangonas, a demissão do Primeiro-Ministro.

Mas, como estamos em Portugal, segue-se o caminho fácil de lançar suspeitas, de transmitir suposições, de fomentar desconfianças... Que se vão transformar rapidamente em fumo sem fogo mas não sem deixar marcas numa democracia já desmoralizada. E é precisamente isso que nos devia interpelar.