sábado, 8 de agosto de 2009

Façam o favor de ser felizes - Raul Solnado (19 de Outubro de 1929 - 8 de Agosto de 2009)

Dizer que, com a morte de Raul Solnado, fica pobre o teatro português é uma triste banalidade. Ficamos pobres todos nós porque Solnado era, para além de um actor formidável, uma daquelas pessoas que nos faz falta. Pela sua integridade como artista, pela sua inteligência risonha, pelo seu orgulho de bem-fazer que, sem qualquer paradoxo, era parte da sua forma modesta (mas não submissa – nunca se vergou!) de estar no mundo, pela sua simpatia e entusiasmo, pelo seu amor das gentes e, talvez sobretudo, pela sua ternura – Raul Solnado era um homem que, na parvónia pretensiosa do doce torrão à beira-mar plantado, parecia ter nascido noutro mundo. Atrevo-me a exclamar que era um homem livre!

Em pequeno, ria-me a bandeiras despregadas, das suas guerras, aquelas em que ele se apresentava ao serviço de manhãzinha cedo, «estava a guerra ainda fechada» (e isto já no tempo da guerra colonial!). Ou quando, noutra rábula, deixou o seu violino em cima da mesa de um restaurante, no qual tudo o que os clientes esqueciam era aproveitado para «fazer croquetes»... Eram peças que os meus pais tinham gravado, num daqueles gravadores antigos em que a fita passava duma bobine para outra, e que eu ouvia até à exaustão e decorava, para depois os declamar diante do espelho.

No seu Teatro Villaret, interpretou alguns dos maiores êxitos populares do teatro cómico nacional. E foi nesse palco, a 24 de Maio de 1969 (dia dos meus anos), que surgiu aquele que, muito provavelmente, foi o momento mais marcante da sua carreira e um dos maiores momentos da história da televisão portuguesa: o primeiro Zip-Zip, que apresentava com Carlos Cruz e Fialho Gouveia. Ficaram célebres, entre outras, a sua entrevista a Almada Negreiros, os cantores de baladas que por lá passaram e, claro, mais algumas rábulas suas. Lembro-me duma em que ele interpretava o papel de um turista alemão, Fritz, o célebre inventor das batatas fritz, que se queixava de ter perdido a auto-estrada Lisboa-Porto logo a seguir a Vila Franca de Xira e só a ter encontrado a dez quilómetros do destino. Nós gozávamos porque sabíamos que, nessa altura, só existiam esses vinte e quatro mais dez quilómetros de auto-estrada e que, a ligá-los, havia apenas a fatídica Estrada Nacional No.1. Se eles ainda existem, a RTP Memória faria bem em passar todas as sessões do Zip-Zip – mas acho que ouvi dizer que, não se sabe porquê, as gravações se perderam.

No cinema, a sua interpretação mais conseguida terá sido a do Inspector Elias, no filme A Balada da Praia dos Cães, de José Fonseca e Costa, adaptação conseguida do magnífico romance de José Cardoso Pires.

E, num dia 31 de Dezembro ou primeiro de Janeiro, ouvi-o na televisão a desejar bom ano a todos os portugueses. E ouvi-o dizer esta frase que me parece, na sua simplicidade e sabedoria, uma das mais bonitas que foram ditas em Portugal: «Façam o favor de ser felizes». Julgo que este seria o epitáfio que ele desejaria.

Raul Solnado era um homem bom. Para os seus pares, criou e animou a Casa do Artista. Para o resto do mundo, todos nós, irradiava simpatia e transmitia o seu riso e a sua graça aos seus amigos e aos que, de mais longe, admiravam a sua arte e a sua personalidade.

Estamos mesmo muito, muitissimo, mais pobres.

Aqui fica a «Guerra de 1908»
http://www.youtube.com/watch?v=Coy9eJVEkuA