O que andamos a perder
Vasco Pulido Valente foi convidado a escrever um guião sobre um texto de Camilo Castelo Branco. Mesmo não sendo inteiramente analfabeto (palavras suas), três coisas o impressionaram. «Primeira, a quantidade de palavras, que não conhecia e que (foi) obrigado a procurar em dicionários (os melhores do mercado), em que elas, para (sua) surpresa, não constavam. Segunda, as dificuldades da construção sintáctica, que já não (lhe) eram familiar(es) e quase (o obrigaram) a decifrar certo português como latim. E, terceira, o já esperado embaraço – e também vergonha – de traduzir prosa para acção. Como dizia alguém a Scott Fitzgerald, por volta de 1930, não é possível fotografar adjectivos – nem verbos, nem preposições». Acrescente-se, contudo – mas trata-se de mera correcção quase inapropriada – que Scott Fitzerald foi bem adaptado ao cinema e foi, também, um argumentistas de talento.
Com excepção da última observação – porque nem me ocorre compor guiões para livros nem passa pela cabeça de ninguém pedir-me que o faça – eu, que ando a ler alguns grandes livros brasileiros (Ubaldo Ferreira, Nelida Piñon, Erico Veríssimo), tenho sentido exactamente a mesma coisa. Exceptuando, talvez, Machado de Assis, cujo génio ultrapassava o que ele chamava «palavras complicadas», temo-nos tornado analfabetos em relação aos grandes nomes da literatura de língua portuguesa. Não acreditam? Releiam Os Maias e escrevam-me depois a dizer quantas vezes foram consultar o dicionário. E nem é um livro particularmente difícil.
Os meus livros portugueses (incluo tudo o que se escreve em português) que leio estão cheios de pequenas cruzes feitas a lápis à margem de certas linhas para indicar palavras que me proponho procurar no dicionário. E, como Pulido Valente, não me considero analfabeto. E, como ele, infelizmente, na maioria dos casos, não consigo encontrar essas palavras nos dicionários que consulto. Talvez por viver em Bruxelas há pouco menos de vinte e cinco anos (meu Deus!), sinto-me quase mais à vontade quando leio textos franceses. E – mais importante ainda – se quero encontrar uma palavra num dicionário, consigo sempre. Se não estiver no Larousse, está no Robert, se em nenhum dos dois, no Littré.
Assistimos a um empobrecimento generalizado da língua sobre o qual deveríamos reflectir. Não se trata apenas de um problema nacional. Falamos (nós, os portugueses, mas também os americanos, os franceses, os alemães...) com um léxico de menos de cem palavras – aquelas de que precisamos para acorrer às situações quotidianas. E nem isso: todos os estudos dizem que nem sequer somos capazes de responder às questões correntes com que somos confrontados no decurso da nossa vida normal – no médico, no banco, no centro de emprego, numa agência de viagens, numa companhia de aviação... Entre um lado e outro – entre o utente e o profissional que presta serviços – existe um fosso quase insuperável, provocado, ou pela incompreensão de uns ou pelo uso de um insuportável jargão por parte de outros.
Christopher Lasch dizia que uma das razões do empobrecimento da democracia residia numa crescente falta de interesse pelas razões, argumentos e valores do homem comum. Em outras épocas (ele falava dos Estados Unidos), mesmo os homens que não faziam parte das elites conseguiam ser ouvidos (Mr Smith goes to Washington). A sua palavra contava; a sua acção também. Mas isso implicava que houvesse uma forma de todos nos entendermos – com alguma cultura e elevação. Basta olhar para os comentários que são enviados para os jornais ou ouvidos na televisão por portugueses, franceses, ingleses, americanos, italianos, espanhóis... para percebermos que essa qualidade já não existe. O mal é que isso se reflecte sobre todos nós.
1 Comments:
este teu post fez-me lembrar este artigo que li no New Yorker...
http://www.newyorker.com/reporting/2009/09/07/090907fa_fact_kramer
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