sábado, 23 de junho de 2007

Citizen Kane

A maioria dos que, neste inquérito do American Film Institute, votaram em Citizen Kane para melhor filme fê-lo não apenas pela obra em si mas pelas histórias «behind the scenes» que rodearam a sua filmagem. Citizen Kane foi o primeiro filme de Orson Welles – o que levou um crítico a afirmar ironicamente que, com ele, o realizador iniciara a sua decadência. Welles era considerado um menino-prodígio: um fabuloso actor de teatro, com um talento impressionante e uma voz profunda, invulgar e misteriosa, essa voz que conseguiu fazer acreditar aos americanos que estavam a ser invadidos por marcianos, quando, em 1938, Welles leu na telefonia o clássico de H.G. Wells A Guerra dos Mundos.

Chegou a Hollywood, jovem, grande, com 25 anos e o mundo na mão – a tradução portuguesa de Citizen Kane (O Mundo a seus Pés) refere-se tanto à personagem do filme como ao seu realizador. O estúdio americano RKO deu-lhe inteira liberdade: ele era realizador, autor do cenário, actor principal. Mas, depois deste filme e, em 1941, de The Magnificent Amberson, que se lhe seguiu e que já nem sequer foi por ele terminado, dois sucessos de crítica mas estrondosos fracassos de bilheteira, a história de amor entre Welles e Hollywood estava terminada: nunca mais Welles filmaria em Hollywood. A partir daí, os filmes de Welles são financiados fora do circuito tradicional dos grandes estúdios, em grande parte com o dinheiro que ganhava como actor: Welles foi um dos maiores actores de sempre na história do cinema, para além de grandíssimo actor de teatro, em particular como actor shakespeariano.

Quando, em 1975, o American Film Institute lhe atribuiu o seu Life Achievement Award, Welles era um homem de mais de 120 quilos que fumava um eterno charuto. Lembro-me de assistir ao seu discurso, um discurso fantástico como não é habitual ouvir-se nessas ocasiões, nas quais, normalmente, os homenageados se limitam a agradecer a todos quantos os ajudaram ao longo da vida. Nas suas palavras finais, ele comparou-se a uma mercearia de esquina resistindo heroicamente à invasão de supermercados. O que tinha pretendido, durante a sua vida, fora dar ao cinema uma voz individual, que ultrapassasse as exigências dos estúdios ou das bilheteiras. A sua vida não tinha sido mais fácil por isso; mas tinha certamente sido mais decisiva e, sobretudo, pudera vivê-la sem exageradas concessões. My Way: a canção de Sinatra assentava-lhe como uma luva.

Citizen Kane é um dos meus filmes preferidos: vi-o mais de quinze vezes, no total. A história, como já disse, foi escrita por Welles, que contou com a colaboração de Herman Mankiewicz, irmão do cineasta Joseph Mankiewicz. Baseia-se na vida do magnata da imprensa William Rudolph Hearst, um homem à época extremamente influente nos Estados Unidos. Mas a semelhança com personagens reais é, neste filme ainda mais do que em outras obras de ficção, um puro pretexto para uma reflexão sobre a vida dum homem poderoso.

Trata-se de um magnífico filme, que apresentou, além do mais, inovações técnicas impressionantes, com o tão falado tratamento da profundidade de campo e está pontuado de cenas cinematograficamente magníficas como aquela que conta a deterioração das relações entre Kane e a sua primeira mulher, através apenas das sucessivas imagens dos pequenos almoços tomados em conjunto ao longo de vários anos. Ele foi a primeira, a mais extraordinária e acabada, prova do génio de Welles.

O filme começa e acaba com mentiras. A primeira vem logo com a imagem inicial: uma tabuleta colocada no portão de Xanadu, a mansão de Charles Foster Kane, onde se lê «No Trespassing». Mas todo o filme é, afinal, uma forma de trespassing. Como dizia Jorge Luís Borges, Citizen Kane é «a investigação da alma secreta dum homem, através das obras que construiu, das palavras que pronunciou, dos muitos destinos que assumiu.» No Trespassing é, assim, uma suprema ironia.

A outra mentira tem a ver com a última palavra de Kane, aquela que ele pronuncia quando morre: Rosebud. O filme é construído na base da busca do sentido desta expressão: é suposto que, à hora da morte, um homem rememore a sua vida e retenha dela o que foi verdadeiramente essencial. Com base nesta ideia, um director de jornal pede a um dos seus repórteres que descubra o significado dessa expressão Rosebud. No final, eles não o descobrem mas nós, espectadores, sim – e é talvez a única altura do filme em que o autor intervém com uma informação que não seja filtrada por um dos intervenientes na história. Com efeito, na última cena, quando se queimam os móveis de Xanadu, vemos areder o trenó do pequeno Charles, aquele com o qual ele brincava quando o afastaram de casa de seus pais - e no trenó está inscrita a palavra Rosebud. A vida de Kane seria assim, freudianamente, uma espécie de busca da inocência original. E esta é a segunda mentira: porque evidentemente isso não chega, nem de longe, para nada justificar ou explicar. Welles sabia-o bem – e o filme termina com esta enorme risada.

Entre a cena inicial e a final, desenvolve-se uma história fascinante, de um homem a quem tudo parecia possível e que, por complicados meandros, acaba por perder tudo e por se fechar dentro de si, num impossível, imponente e inacabado palácio, Xanadu, acompanhado apenas pela sua imagem repetida até ao infinito numa galeria forrada de espelhos (ver imagem). História de que conhecemos as linhas gerais – e externas – através dum documentário, feito à moda dos primeiros tempos do cinema sonoro, que surge a seguir à cena da morte de Kane; e de que iremos tentar aperceber a verdade interior através do testemunho de personagens que conheceram e povoaram a sua vida, cada qual com a sua justiça, os seus segredos, os seus preconceitos. O resultado é um caleidoscópio de opiniões que não nos levam ao conhecimento nem, muito menos, à compreensão de uma vida, mas que nos fornecem apenas informações díspares, interessantes mas algo superficiais - pontos de vista necessariamente contingentes e limitados. Só o conjunto nos dá algumas pistas sobre a personalidade de Kane – e mesmo assim é só de pistas que se trata. Ficamos a saber mais sobre a sua vida depois deste inquérito conduzido a ritmo diabólico? Sim. Mas não chegamos à sua verdade porque esta é impossível de alcançar. E é esse, precisamente, na minha opinião, o objectivo de Welles: a vida é-nos inacessível na sua multiplicidade polifacetada.