Autoridade espiritual
Parece que o Papa, em Viena, decidiu proceder a um requisitório particularmente duro contra um modelo de vida europeu que combinaria «eficácia económica e justiça social» com a renúncia a «valores fundamentais». Obrigado, mesmo assim a reconhecer que o ideal europeu constituiu, para os países da Europa de Leste, que viveram sob o jugo do comunismo, «um estímulo à liberdade, ao Estado de Direito e à democracia», Bento XVI acha contudo que a Europa deriva para um «materialismo teórico e prático» que nos faz passar da tolerância à uma «indiferença privada de referências a valores permanentes».
De verdade? E é mesmo a Europa, entre todos os continentes do mundo, que merece críticas tão contundentes? Não teria o Papa, como se diz em francês «d'autres chats à fouetter»? Não poderia ter assestado baterias noutros lugares, contra outras gentes? Longe de mim pretender que tudo vai bem entre nós. Mas os valores de que precisamos não me parecem ser exactamente aqueles de que fala o Papa.
Senão vejamos. O âmago das acusações de Bento XVI tem a ver com aceitação da interrupção voluntária da gravidez na generalidade dos países europeus e com a possibilidade, que alguns acolhem e outros encaram, embora sempre rodeada de especiais cuidados, de lagalização da eutanásia. O Papa tem todo o direito de deplorar essa situação - eu já aqui disse, aliás, que não seria razoável esperar outra atitude da Igreja Católica. Mas, ao mesmo tempo, como esquecer que, em todo o mundo, é certamente na Europa que a vida humana é respeitada com maior plenitude? Refira-se, por exemplo, a abolição da pena de morte; ou, para semos mais comezinhos, que a mortalidade infantil é, entre nós, uma das mais baixas, senão a mais baixa, do mundo. E o modelo social europeu, se é certo que enfrenta problemas, conseguiu pelo menos evitar a maioria das situações de extrema pobreza que caracterizavam o nosso continente na altura em que era, dum ponto de vista espiritual, mais do agrado do Papa. Estas coisas – e outras –, não faria mal que Bento XVI as lembrasse também.
Não quero sequer entrar em polémicas desnecessárias, falando desses detalhes da História, como a Inquisição, a atitude da Igreja perante o avanço da ciência (Galileu, Darwin), o sua absurda incapacidade de compreender o mundo e o seu reaccionarismo no século XIX, ou a posição dúbia de Pio XII face aos crimes nazis e ao povo judaico. (Pelo menos, o Papa, neste seu discurso, falando diante do rabino Chaïm Eisenberg, teve a honestidade de pronunciar, parece que pela primeira vez, a palavra «arrependimento», referindo-se à Igreja e falando dos judeus.)
Cá por mim, julgo que Bento XVI podia preocupar-se com assuntos mais importantes. Eu até podia dar-lhe uma lista extensa. O que deveria interpelá-lo é que a Igreja que dirige assuma, perante os dilemas morais da vida moderna, uma atitude que a impede de exercer plenamente a autoridade espiritual para que, em sua opinião, se encontra vocacionada, conduzindo a que, na generalidade dos problemas fundamentais com que se deparam as mulheres e os homens de hoje, eles se orientem segundo valores que não são os do Papa ou da Igreja. Mas isso é culpa do Papa e da Igreja. Não da Europa. E não nossa.
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