sábado, 8 de setembro de 2007

Luciano Pavarotti (1935-2007)

Hesitei bastante antes de escrever este artigo. Não por abrigar quaisquer dúvidas relativamente ao génio de Pavarotti. A sua voz era a mais bela voz do mundo, o timbre lindíssimo, a projecção clara, límpida, luminosa, alegre. Mas porque, nos últimos tempos, antes da doença, essa voz foi posta ao serviço duma forma de carreira que apenas contribuiu para banalizar o seu canto e a ópera sem, ao contrário do que foi por tantas vezes afirmado em respostas a reparos deste tipo, ter trazido uma pessoa a mais que fosse aos concertos e récitas tradicionais. Na verdade, isso nunca podia acontecer porque, como é evidente, as pessoas que se extasiaram diante dos grandes concertos ao ar livre (um concerto em Central Park juntou, dizem uns, mais de quinhentas, dizem outros, de seiscentas mil pessoas) vinham para ver aquele tipo de espectáculo e não qualquer outro.

Mas depois, perante o conjunto de artigos que li a propósito da morte do Maestro, a minha reacção crítica atenuou-se. Em primeiro lugar, porque não é Pavarotti, longe disso, o responsável, muito menos o principal responsável, pelo declínio da ópera e do canto clássico. A verdade é que já não há compositores de ópera pelo que os intérpretes se vêem limitados a um reportório que, mesmo quando encanta alguns, não evolui nem oferece qualquer atractivo novo, excepto para uma pequena mão-cheia de conhecedores e apaixonados. Neste sentido, a ópera encontra-se mesmo em pior posição do que música clássica em geral. O último compositor de ópera verdadeiramente popular foi Mascagni, que morreu em 1945; o último verdadeiramente genial, Puccini, desaparecido em 1926. Poulenc morreu em 1963, Nono em 1990. Não seriam populares mas tinham, pelo menos, o mérito de existirem e a sua obra é, em termos musicais, inovadora e reconhecida. Na ópera, nem isso.

Assim, Pavarotti decidiu abandonar os horizontes fechados dos principais teatros de ópera europeus, que comparava a «maisons-close» (francês para bordel), e usar a sua voz magnífica para atingir o grande público. Com Domingo e Carreras, organizou esses concertos dos três tenores que se degradaram ao longo dos tempos mas de que o primeiro, em Roma, em 1990, ainda apresentava alguma qualidade. Depois, encetou, por assim dizer, uma carreira a solo, em que se fez acompanhar por músicos modernos: Elton John, Bono, Sting cantaram com ele... A partir daí, a sua carreira assentou quase exclusivamente nesse tipo de grandes espectáculos que o tornaram riquíssimo e, pouco a pouco, foi-se distanciando das salas de ópera (se bem que o início da doença também tenha contribuído para esse afastamento) ao contrário, por exemplo, de Placido Domingo, por exemplo, que nunca abandonou a sua actividade de cantor e maestro e assumiu riscos, como, por exemplo, em 2001 (Paris) o de cantar o papel de Parsifal na ópera de Wagner. Os discos recentes de Pavarotti mostravam-no a cantar canções napolitanas e algumas áreas conhecidas e de sucesso fácil como La Donna é mobile ou Nessun dorma (o que não significa áreas fáceis: Nessun Dorma de Turandot (Puccini) é tudo menos fácil). Só que cantava tudo isso de forma magnífica e como ninguém. Quando soube da sua morte, ouvi o seu Torna a Sorriento (Curtis). Muito bem: é uma canção napolitana, uma canção popular, ligeira, um divertimento... Mas, na sua voz, é ainda algo de sublime. Mesmo Volare cantado por ele nos transportava para um mundo diferente. Dizem que a música é um dom dos Deuses. Hermes e Apolo ofereceram-nos a lira. O canto será assim (como a poesia) a forma de os homens se dirigirem aos Deuses. Nesse diálogo, Pavarotti era o nosso intérprete, o nosso tradutor simultâneo.

Mas, nos últimos tempos, sua capacidade de construir um papel – e a ópera é teatro e música e não apenas teatro – tinha quase desaparecido. A última vez que cantou uma ópera completa foi, segundo uns, em 2002, no Covent Garden, segundo outros, em New York, no Metropolitan, em ambos os casos no papel de Cavaradossi, na Tosca de Puccini (ver ao lado a caricatura de Al Hirschfeld.) O seu talento de actor nunca fora grande (recordo-me de o ver uma vez na televisão no papel de Ricardo em Un Ballo in Maschera, de Verdi: parecia um elefante a passear no palco mas um elefante de voz gloriosa, que cantava as áreas do primeiro acto e o dueto com Amélia de forma estupenda) e a voz já não tinha, segundo as críticas, nem a alegria nem a limpidez dos tempos áureos. Por outro lado, sempre fora um cantor intuitivo. As más-línguas diziam que não sabia música e ele próprio confessava que não aprofundava muito o sentido musical das obras que cantava: sabia-as de cor mais do que as aprendia. O que só aumenta a sua glória. Nascera para cantar.

Para o lembrar, o melhor é voltar a essa época, dos seus primeiros passos, no início da década de sessenta quando apareceu, triunfante, genial. Penso que a primeira vez que dele se ouviu falar a sério foi em 1963, quando substituiu Di Stefano (o comparsa de Callas), no papel de Rudolfo na La Bohème de Puccini. Em disco, pode começar-se pela gravação que fez dessa ópera, dirigido por Karajan e acompanhado por Mirella Freni. Há ainda uma gravação do Requiem de Verdi, com Karajan, que não ouvi mas que dizem ser excepcional. (Eu tenho um disco em que canta o Stabat Mater, de Rossini, com voz gloriosa, mas o resto, maestro e cantores, não se encontra à altura.) Depois, há um conjunto de gravações com Joan Sutherland,dirigido por Richard Bonynge. Fundamentais são as principais obras de Donizetti: Lucia, certamente, mas antes de tudo, L’Elisir d’amore e La Fille du Regiment.Gosto principalmente da sua interpretação de Ricardo em Un Ballo in Maschera. Nunca ouvi as áreas do primeiro acto cantadas com a leveza que ele consegue dar-lhes. Dizem os entendidos que, à medida que envelhecia, a sua voz adquiria, como o vinho, mais corpo e profundidade. Os seus papéis alargaram-se um pouco. Mesmo assim, a sua versatilidade não se compara à de Domingo.

Gostaria de terminar dizendo que era um homem simpático. Gostava da sua terra e a gente de Modena gostava dele. O seu sentido de humor era proverbial, com a a graça dum homem gordo, popular, enfiado num grande corpo que, no fim, se transformou em «grand corps malade». O Presidente da Itália disse, singelamente, que Pavarotti honrou o seu país e que era normal que o seu país lhe prestasse honras também. Não queria ninguém de preto no seu enterro que desejava alegre, sem lágrimas ou choros. Por isso, deixo aqui ao lado esta caricatura que o mostra como era: um homem grande. Requiem in pacis.

1 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Uma voz, um corpo, uma figura colossal.. Levou a opera e o bel canto às pessoas da rua. Tocou pela sua simplicidade, pelo seu lado genuino e generoso.
La voix avec l'intelligence du coeur...

14 setembro, 2007 15:44  

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