Super Flumina Babylonis
Os restos mortais de Jorge de Sena foram hoje transladados para Portugal. Lembrem-se os seus versos, que já aqui transcrevi:
Esta é a ditosa pátria minha amada. Não.
Nem é ditosa, porque o não merece.
Nem minha amada, porque é só madrasta
Nem pátria minha, porque eu não mereço
a pouca sorte de ter nascido nela.
Sena volta a este país cuja história, segundo ele, no seu célebre Sermão da Guarda, quando, em 1977, pronunciou o tradicional discurso do 10 de Junho, esteve «sempre repartida entre o anseio de uma liberdade que ultrapassa os limites da liberdade possível (ou sejam as liberdades dos outros, tão respeitáveis como a de cada um) e o desejo de ter-se um pai transcendente que nos livre de tomar decisões ou de assumir responsabilidades, seja ele um homem, um partido, ou D. Sebastião» – e poderíamos acrescentar a miragem oriental, africana ou, recentemente, europeia, o Marquês de Pombal ou Salazar.
Desta Pátria, em sua opinião, apenas se aproveitava o povo, que o resto era «vil canalha, e mesquinha (e a minha amargura de erudito é a descoberta de que realmente o foi sempre - pelo menos do século XVII em diante, quando realmente não merecíamos senão ter continuado espanhóis...)»
Mas este povo – o povo, e não essas pretensas elites – era também capaz de fazer nascer o Camões descrito no soberbo e sublime conto Super Flumina Babilonys, o homem pobre, alquebrado, cego, mas orgulhoso do seu saber e incapaz de vender alma e versos por tenças, pensões ou esmolas, o homem que sabia que era «um grande poeta, (que) transformava em poesia tudo o que tocava, mesmo a miséria, mesmo a amargura, mesmo o abandono da poesia (e que), tremendo todo, mas com a mão muito firme, começou a escrever... Sobre os rios que vão de Babilónia a Sião assentado me achei... Riscou, desesperado. Recomeçou. Sobre os rios que vão por Babilónia me achei onde sentado chorei as lembranças de Sião e quanto nela passei... E ficou escrevendo pela noite adiante». Com uma mesura que, melhor do que ninguém, ele saberia manter, estas palavras podiam aplicar-se a Jorge de Sena: também ele sabia que era um grande poeta, escritor, erudito, e também não estava disposto a vender-se por trinta dinheiros.
Portugal não mereceu Jorge de Sena. Temeu a sua inteligência, a sua incorruptibilidade, a sua teimosia e contumácia críticas. Rejeitou-o como ente estranho enquanto vivo e, mesmo depois de 1974, ainda houve quem se recusasse a recebê-lo, a trazê-lo para nós, sob o estranho argumento, que escondia medo e inveja, de que já não seria português: ele, o autor de Sinais de Fogo, um dos mais importantes romances portugueses do século XX, um dos nossos maiores poetas e, seguramente, a par de Eduardo Lourenço e poucos outros, um dos poucos homens de cultura que soube reflectir sobre Portugal e, mesmo não escondendo (mas quem pode levar-lho a mal?) a amargura do exilado, guardou sempre o sentido crítico que a sua inteligência lhe impunha e soube sempre distinguir o trigo do joio, reconhecendo a arte dos seus congéneres que o mereciam. As suas cartas a vários autores portugueses (Sophia, Ruy Belo, Eduardo Lourenço, Eugénio de Andrade, tantos outros) são disso exemplo vivo e, perdoem-me esta opinião pessoal, o poema que escreveu quando morreu Adolfo Casais Monteiro é um testemunho coberto de lágrimas e de amor da amizade que os uniu sempre e deles ficou para além do tempo.
Mas, se Portugal não mereceu Jorge de Sena, Jorge de Sena merece Portugal. E é claro que lhe seria devido lugar no Panteão. Mas, pensando bem, e conhecendo-o como o conhece alguém que apenas o leu, talvez seja melhor que fique nos Prazeres, donde poderá avistar o Tejo, com a enorme beleza dos seus fins de tarde, uma beleza que, contudo, como ele compreendeu, traz consigo o germe da nossa destruição, porque nos torna complacentes e, até, maus.
Resta-nos que a sua obra será integralmente republicada. Os meus livros de Jorge de Sena são já apenas colecções de folhas que se descolaram com o tempo. Será bom ter a oportunidade de os ler de novo sem me preocupar se caem as páginas.
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