quinta-feira, 18 de maio de 2006

O Velho Patriarca




No dia da derrota de Mário Soares nas últimas eleições presidenciais (que também foi o dia do nascimento da minha neta Teresinha), escrevi este texto, que oscila entre uma aliviada mensagem de adeus e um comovido elogio fúnebre - mistura que descreve muito precisamente os meus sentimentos actuais sobre este homem. Suponho que, se na altura este blogue já existisse, o texto aqui teria entrada. Assim recupero-o, embora, é claro, ele não seja hoje de primeira actualidade.







O Velho Patriarca

O velho patriarca sente-se fatigado. Numa caligrafia inclinada e nervosa, difícil de decifrar, com as letras a encavalitar‑se umas nas outras, tenta alinhar algumas palavras sobre a folha ainda branca pousada na secretária banal do quarto de hotel. Depois da derrota, a sua mensagem de adeus! Tem ainda que enfrentar os jornalistas e o público. Só depois poderá «tirer la révérence». Será como uma última lição. Jubila‑se! Tarde! Tarde demais?

Dentro de minutos, descerá as escadas, por entre as alas dos apoiantes que, enxugando as lágrimas, desviam o olhar, e dirigir‑se‑á a um estrado colocado a meio da sala, na cave iluminada pelos focos de luz intensa e branca dos operadores da televisão onde celebrou tantas vitórias, e que é hoje o palco inapetecido da sua última récita. Falará para o país mas serão só os seus amigos a receber as suas palavras e a aplaudi‑lo, num ambiente de abafada tristeza, disfarçada por um arremedo de ânimo. Todos têm a consciência de que é uma época que acaba. Mesmo o discurso, que é digno e forte, soa a falso.

No fundo, o patriarca gostaria de poder poupar‑se a esta parada de humilhação pública. Mas há regras neste mundo da política, e reconhecer a derrota com dignidade é a primeira delas. Não é possível sair de cena sem agradecer ao público, ir embora para casa para lamber, sozinho, as feridas abertas. Os homens políticos não têm feridas a lamber; ou, se as têm, escondem-nas, disfarçam. Força! A sua carreira política acabou mas deve a si próprio um grande final com fanfarra e honra; deve-o ao seu passado, ao seu exemplo.

Porque se recusou a ouvir quem lhe dizia que, aos oitenta anos, não devia candidatar­‑se? Para quê, num país onde tinha conseguido tudo? Ninguém o compreendeu – pior: ninguém o acreditou! Apenas viram, no seu gesto, oportunismo e ambição. Ou a arrogância que sempre foi o seu traço mais desagradável.

Pode consolar-se, pensando que teve uma vida longa e cheia, mais, muito mais, vitórias que derrotas, mais dias de sol que de tempestade ou tormenta. Foi, com efeito, uma magnífica viagem! Este último revés, pode vê-lo como uma pequena nota de pé de página num livro enorme e excelente. Nunca desistiu. Foi um homem político, um homem político sempre, e morreu, assim, no campo de batalha! Os patriarcas não morrem na cama: morrem de pé, como as árvores.

Em democracia, não é desonroso ser derrotado. Os homens políticos propõem, decidem os eleitores. Afinal, foi para o garantir que lutou durante toda a vida.

Mas não acredito que tudo isto lhe seja de grande valia, ou conforto, neste momento em que, olhando para a sua mulher e para os seus filhos, se levanta e dá os primeiros passos na direcção da porta por onde se escapa o seu destino.