domingo, 14 de maio de 2006

Cesário Verde (25 de Fevereiro de 1855 - 19 de Julho de 1886)


A minha neta Teresinha é, pelo Pai, o Diogo, descendente de Jorge Verde, o único irmão de Cesário Verde que sobreviveu. (Quando expliquei esta relação familiar ao meu filho mais novo, que também se chama Diogo, ele riu-se por achá-la rebuscada mas a mim, pelo contrário, ela parece-me «simple enough».) Há alguns dias, navegando na Internet e procurando matéria para escrever um destes artigos, topei com uma notícia bibliográfica de Cesário Verde, que mandei à Teresa, a mãe do Diogo. Deu-me vontade de reler os seus poemas e procurei na minha biblioteca a Obra Completa, na edição de Joel Serrão. É pena que este trabalho – que, segundo os especialistas, é a mais completa e precisa recolha das poesias de Cesário Verde – não tenha podido manter, certamente por razões editoriais, o título original de «O Livro de Cesário Verde» organizado, como se sabe, por Silva Pinto, amigo próximo do autor, e cuja primeira edição remonta a 1887, o ano que se seguiu à sua morte. Seria triste que se perdesse este título, através do qual tivemos, pela primeira vez, acesso à obra do poeta e a que nos habituámos.

José Joaquim Cesário Verde nasceu a 25 de Fevereiro de 1855, em Lisboa, na freguesia de Santa Maria Madalena, filho de José Anastácio Verde e de Maria da Piedade dos Santos Verde. O pai era um abastado comerciante de ferragens e outras mercancias com estabelecimento na Rua dos Fanqueiros, nºs 2 a 8. Possuía ainda uma quinta em Linda-a-Pastora onde, no final da vida, Cesário se refugiará por longos períodos, e que é referida em alguns dos seus versos. A partir dos cinco anos do poeta, a família muda-se para a Rua do Salitre (casa do actual nº 5, perto do Largo do Rato).

Aos dezassete anos, Cesário começa a trabalhar com o Pai. Logo no ano seguinte (1883), publica as primeiras poesias. Mais tarde, desiludido pelo desprezo da crítica pelos seus trabalhos poéticos, dedicar-se-á quase exclusivamente aos negócios. É nessa fase que visita Bordéus e Paris (1883) e, segundo Óscar Lopes e António José Saraiva Saraiva, terá também ido a Londres, em data não precisada. Em Paris, Columbano conta que Cesário Verde esperara discretamente num café a passagem de Victor Hugo, vindo de um teatro próximo, apenas para o ver passar.

Data de 1879, a seguinte descrição do aspecto físico do poeta, pela mão do editor Henrique Marques:
«Era um rapaz alto, direito, elegante, simpático, cabelo curto, alourado, olhos azuis, vestindo sempre fato azul, de jaquetão, de corte inglês, sapatos amplos, com todo um ar britânico que ele parecia querer aparentar; caminhava também à inglesa, passo largo...»

Três anos mais tarde, é a vez de Fialho de Almeida o descrever da seguinte maneira:
«Alto e mui grave, vestido de azul e com um colarinho voltado sobre uma gravata escarlate, tinha bem a figura do carácter, e não se podia mirá-lo sem logo se ver, na ingénua arrogância, o quer que fosse do ser filtrado misteriosamente por uma estranha e aristocrática selecção. O tipo era seco, com uma ossatura poderosa, a pele de fêmea loura, rosada de bom sangue, a cabeça pequena e grega, com uma testa magnífica, e feições redondas, onde os olhos amarelo-pardos de estátua, ligeiramente míopes, tinham a expressão profunda, rectilínea, longínqua, que a gente nota nos marítimos acostumados a interrogar o oceano por dilatadas estensões».

(Note-se, para além da hesitação sobre a cor dos olhos – azuis simples ou amarelo-pardos «de estátua» – a diferença do estilo que nos dá, no caso de Henrique Marques, uma fotografia a preto-e-branco, e algo desbotada, e, no de Fialho de Almeida, um retrato a cores, retocado pelo artista.)

A tuberculose, que já tinha vitimado a sua irmã Júlia, em 1872, e o seu irmão Joaquim Tomás, dez anos depois, declara-se nele e progride rapidamente. Parece que os primeiros sinais terão ocorrido em 1877. No final, foi acompanhado pelo famoso médico Sousa Martins. Morreu a 19 de Julho de 1886, pelas cinco horas da manhã, com apenas 31 anos (mais novo do que Rimbaud, mais velho do que Mário de Sá-Carneiro, que tinha 26 quando se suicidou).

A poesia de Cesário Verde foi mal recebida. Provavelmente, era enganadoramente simples. Os termos utilizados correspondiam, muitas vezes, a expressões corriqueiras, que os críticos condenavam por não terem foro de cidade em matéria poética. Assim, aquilo que hoje nos encanta, a sua sensibilidade particular, as referências ao quotidiano, um evidente erotismo, deixava frios os seus contemporâneos. Angelina Vidal, escrevendo sob o pseudónimo de Juvenal Pigmeu, minimiza-lhe o talento; mas mesmo os seus amigos o consideravam um poeta menor. Lopes de Mendonça dir-lhe-ia: «A tua obra, pequena e dispersa, não é daquelas que se impõe à admiração incondicional da posteridade».

Mas Cesário é o único poeta do grupo realista que consegue, de facto, superar a herança romântica. O seu objectivo é descrever a sociedade real: o dia-a-dia de uma Lisboa, que se passa à vista dos vizinhos, as acções simples do quotidiano, os namoros, as idas ao campo, os operários, as varinas, as patrulhas que passam, uma engomadeira tuberculosa, a irmã morta, o irmão a quem se lhe abriam cavernas no peito... E, como dizem Lopes e Saraiva, para exprimir este mundo, até então desconhecido da poesia, renova a «estilística tradicional da nossa poesia», utilizando, à maneira de Eça, uma adjectivação surpreendente («quando passas, aromática e normal»; «pés decentes»; «cheiro honesto»). A sua imaginação é fértil e feliz e, nele, os homens e as mulheres simples acedem à poesia.

Depois de Silva Pinto, Eugénio de Andrade, Carlos de Oliveira, Rodrigues Lapa, Amaro de Oliveira e Joel Serrão foram algumas dos homens de letras que contribuíram para que Cesário Verde se alcandorasse ao lugar de destaque que é hoje o seu na poesia portuguesa. Saliente-se, em particular, que, segundo indicação de Joel Serrão, «num tempo em que não havia ainda fotocopiadoras, Eugénio de Andrade transcreveu à mão, com todo o seu rigor, poesias de Cesário Verde publicadas em jornais ausentes da Biblioteca Nacional de Lisboa». E acrescente-se que Cesário, admirado por Fernando Pessoa, é mestre confessado de Álvaro de Campos.

Quanto aos poemas, a dificuldade está em escolher entre eles. A primeira edição de «O Livro» encontra-se mesmo disponível em rede mas a leitura é difícil (aqui: http://www.gutenberg.org/etext/8698). Os seus poemas, em forma mais acessível, podem ainda encontrar-se aqui: http://www.biblio.com.br/Templates/cesarioverde/mpoesias.htm.

Por onde começar? «O sentimento de um Ocidental» (1877) é, segundo tantos, a sua obra-prima. «Nós», de 1884, dá algumas indicações biográficas. «Contrariedades» (1877; publicado como «Nevroses», em 1876) é, para mim, dos melhores; há uma ferocidade e uma ironia neste texto que me agradam especialmente. «Deslumbramentos» (1875) é um dos seus primeiros poemas e o primeiro verso é magnífico: «Milady, é perigoso contemplá-la…».

Por questões de espaço, transcrevo apenas um poema, mais pequeno mas com bastante graça:

De Tarde
(1877)

Naquele «pic-nic» de burguesas,
Houve uma coisa simplesmente bela,
E que, sem ter história nem grandezas,
Em todo o caso dava uma aguarela.

Foi quando tu, descendo do burrico,
Foste colher, sem imposturas tolas,
A um granzoal azul de grão-de-bico
Um ramalhete rubro de papoulas.

Pouco depois, em cima duns penhascos,
Nós acampámos, inda o sol se via;
E houve talhadas de melão, damascos,
E pão-de-ló molhado em malvasia.

Mas, todo púrpuro a sair da renda
Dos teus dois seios como duas rolas,
Era o supremo encanto da merenda
O ramalhete rubro das papoulas.

3 Comments:

Anonymous Anónimo said...

A frescura deste poema pede musica. Fosse eu uma guitarra! Da vontade de cantar e dançar. Adorei as "rolas" a rimar com as "papoulas". As palavras sao gordas, redondas e saborosas. Cesario nao es Verde, mas de todas as cores!

16 maio, 2006 18:11  
Anonymous Anónimo said...

Adorei este seu artigo sobre o meu antepassado...e acho graça ao comentário de "var" pois o seu/meu apelido dava azo a brincadeiras no liceu, onde era apelidada de várias cores! Teresa azul, teresa amarela... Apesar de não gostar de poesia, (oh sacrilégio...) que só aprecio se fôr em música, tenho mesmo que vir a conhecer de que cepa este meu antepassado era feito.

20 maio, 2006 19:03  
Blogger Margarida Palma said...

Cesário é pura e simplesmente um génio!!como Camões, como Pessoa, como Eça...é um génio!

A obra fundamental de Joel Serrão não se chama O Livro de Cesário Verde, nem podia chamar-se, porque esse é o título do livro que Silva Pinto editou. Obedecendo ao plano deixado
pelo poeta? tomando algumas liberdades, por conta própria? Como sabe, ainda hoje a questão se discute, e as edições sucessivas dos poemas vão ensinando alguma coisa a quem gosta de aprofundar estes temas, mas nada, nada acrescentam à voz inconfundível de Cesário.

Por mim, que o leio quase todos os dias, que quase o sei de core, só sei dizer como disse
Pessoa/Álvaro de Campos :Oh Cesário Verde! Oh Mestre!

Os melhores cumprimentos
Margarida Palma

28 março, 2022 22:01  

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