Leituras de Verão - Balzac
Como previsto, faltou-me o tempo para ler mais do que Balzac mas consegui acabar Illusions perdues e Splendeurs et misères des courtisanes, para além de um conto estupendo La Femme abandonnée que põe em cena Mme de Beauséant, uma das personagens da Comédia Humana, antiga amante do Barão Miguel de Ajuda-Pinto (nobre português para cuja inspiração Palmela terá certamente contribuído), friamente abandonada por este para permitir o seu casamento com «une demoiselle de Rochefide». A ideia de retomar a leitura de Stendhal (Le rouge et le noir) ficou no domínio das boas intenções. Chegado a Bruxelas, continuo em Balzac, com Le père Goriot, em que são apresentadas algumas das personagens dos dois livros que acabei de ler.
Que dizer de original sobre Balzac, depois de tanto que já foi estudado, dito, escrito, filmado, passado em documentário de televisão? Balzac é um extraordinário romancista social, o maior de todos os tempos. A sua obra é um testemunho íncomparável sobre a sociedade da primeira metade do século XIX francês. Não há, em qualquer cultura, nada que se aproxime da obra de Balzac, que tenha o mesmo fôlego, a mesma dimensão. Assim, tudo aquilo que possa aqui escrever tem muito de circunstancial: nãp passa, na verdade, de um comentário a um comentário de Vasco Pulido Valente feito a propósito de Camilo Castelo Branco.
Um artigo de Pulido Valente, lido em Portugal, informava os leitores do Público que o cronista aproveitava as suas férias de Agosto em Lisboa, quando a cidade é acolhedora, para reler Camilo. Segundo ele, dois temas recorrentes atravessam a obra do escritor português: a religião, que ritma a vida de todos, dos mais ricos aos mais pobres, dos nobres aos camponeses; e o sexo, escondido, reprimido, inconfessado, mas, por isso mesmo, objecto de desejo vivo e de magníficas estratégias, secreto, calado, mas sempre presente em corpo e espírito, exasperado, apaixonado, brutal. Em Balzac, é o dinheiro que constitui o tema central, a justificação de todas as condutas, a razão de vícios e torpezas: o dinheiro que se tem e, principalmente, que não se tem. A necessidade de fortuna é opressiva porque a riqueza é critério de sucesso, fonte de ascensão social ou, perdida, de degradação e esquecimento. Todo a sociedade descrita por Balzac vive em função das rendas, da terra, da especulação financeira; ou da pequena trapaça, da burla ou dos truques mesquinhos que permitem adquirir alguns tostões. O sexo existe, de forma bem mais clara do que em Camilo, assistindo-se nele, aliás, a uma curiosa inversão de papéis sociais: as damas da alta sociedade comportam-se, relativamente a ele, como reles rameiras; e as cortesãs como mulheres honradas. Mas a sua força real é singularmente reduzida. Mesmo a homossexualidade de Vautrin, a paixão libertina, primitiva e brutal que é o fio condutor desta personagem, parece ceder o passo perante a necessidade de assegurar a Lucien os meios que lhe permitam casar na alta nobreza; e Vautrin pretende sobretudo «viver através de Lucien». Por seu lado, a religião não desempenha papel fundamental - eu atrever-me-ia a dizer: quase nenhum papel. As mulheres nobres «font leur pâques» (ou seja, comungam e confessam-se quando o exigem as regras da Igreja, sem mais); o resto do mundo, ou é ateu, ou limita-se a seguir distraído os preceitos religiosos tradicionais; ou nem sequer isso. As mulheres «desonradas» não vão para conventos; quando são nobres, retiram-se para as suas terras de província. (Aliás, o conceito de «desonra» tem mais a ver com as consequências sociais da conduta - quando por exemplo esta conduz à separação entre marido e mulher, que é inadmissível - do que com a imoralidade das acções condenadas. Ter amantes não é, para nenhuma mulher da alta sociedade, motivo de vergonha. De modo nenhum!)
Em comparação com Camilo, cuja linguagem quase nunca deixa de nos maravilhar, talvez seja de recordar as palavras de um crítico francês segundo o qual Balzac é um grande romancista mas não um grande escritor. É como se a necessidade imperiosa de tudo dizer o fizesse esquecer o estilo. Em Balzac há uma urgência que é incompatível com um laborioso burilar de frases ou excessivos cuidados na escolha das palavras. A sua prosa é uma torrente, uma enxurrada impetuosa de expressões e vocábulos, que são eficazes sem necessariamente serem belos. Mas as suas obras não são menos poderosas por isso. Bem pelo contrário!
E depois há que não esquecer que este formidável escritor morreu aos cinquenta e um anos deixando milhares e milhares de páginas escritas e uma obra monumental La Comédie humaine, composta de dezenas de romances, novelas e contos filosóficos que descreve como nenhuma outra obra em nenhum outro tempo uma sociedade nos seus mais ínfimos detalhes, nobres e sórdidos, romanescos e administrativos, da capital, das cidades, da da província (vejam-se, por exemplo, sobre a sociedade provincial, as primeiras páginas do conto que referi – La femme abandonée – que a resumem em breves pinceladas). Nela se retratam a nobreza, a finança e a burguesia, os miseráveis, os intelectuais e jornalistas, os polícias, espiões e oficias de diligência, credores e devedores, etc., etc., ou seja toda a gente, todo o mundo, da França no seu tempo.
Balzac era um homem de génio, e aos homens de génio, ao contrário dos outros, pode perdoar-se a pressa.
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