sábado, 21 de novembro de 2009

As novas faces da Europa

Valerá a pena comentar a nomeação de Herman Van Rompuy e Catherine Ashton, Baroness Ashton of Upholland, para os dois postos fundamentais, na estrutura das instituições europeias, respectivamente, Presidente do Conselho e Alta-Representante para as Relações Externas (e Vice-Presidente da Comissão)? Se o nome do primeiro já corria pelos bastidores em Bruxelas (era mesmo um segredo de polichinelo já que a imprensa discutia descaradamente quem o iria substituir como Primeiro-Ministro), a segunda foi uma verdadeira surpresa. Pode mesmo dizer-se que, até agora, ninguém tinha pensado na Baronesa para o cargo que, afinal, lhe veio a cair no regaço. Ashton começou as suas andanças europeias há menos de dois anos, quando foi nomeada por Gordon Brown para substituir Peter Mandelson na altura em que este abandonou o lugar de Comissário para o Comércio na primeira Comissão presidida por Durão Barroso (ainda continuamos a chamá-lo assim aqui em Portugal; em Bruxelas e na Europa, é apenas Barroso, ou melhor, o Président Barroso, pronunciar "Barrôsô"; ou President Barroso, pronunciar "Baroso") e voltou a Londres para assumir o cargo de Ministro das Empresas, Comércio e Indústria. Ainda se falou de Mandelson para o cargo que veio agora a ser atribuído a Ashton mas calculo que a França não terá gostado da ideia. Sarkozy não o suporta e são conhecidas as divergências entre ambos a propósito da política comercial da União Europeia. O antigo Comissário, um dos mais fiéis aliados de Tony Blair mas também um político que teve de se demitir duas vezes do Governo britânico por alegadas impropriedades (de que foi, aliás, ilibado), era geralmente considerado como sendo "demasiado liberal" e, por alguns ou muitos, exageradamente oportunista.

Catherine Ashton deve a sua nomeação a três circunstâncias: é socialista (embora da "terceira via"), mulher e britânica. O cocktail ideal! O facto de não ter qualquer experiência internacional (para além daquela que acumulou nas negociações de acordos comerciais) e de não parecer que consiga, pelo menos de início, afirmar-se como a face da política externa europeia – se é que esse bicho existe – foi considerado questão de somenos. Mas é duvidoso que venha a ser o dela, o número de telefone que Kissinger reclamava quando pedia algum que pudesse contactar facilmente nessa Europa de que tanto se falava e que ele, infelizmente, quase desconhecia. Mesmo assim, Solana, antes de ser o oficioso Ministro dos Negócios Estrangeiros desta Europa que temos, tinha sido Secretário-Geral da NATO.

Por sua vez, Van Rompuy foi nomeado pela sua suposta e pressuposta capacidade de construir consensos, qualidade que, segundo se pensa na Europa, faz necessariamente parte do perfil de qualquer Primeiro-Ministro belga. Não me preocupa particularmente o tratamento condescendente de que é alvo na imprensa britânica – e não só nos tablóides mas também em jornais ou revistas que deveriam ser um bocado mais rigorosas, como o Economist (já agora, quando é que ponho termo à minha assinatura neste magazine que, depois da sua viragem à direita nos anos noventa, crescentemente me irrita?). Mr Who?, como lhe chamam por lá, pode revelar-se um político capaz e há muito em Van Rompuy que agrada: uma certa austeridade e modéstia no trato e uma competência discreta fazem dele o exacto oposto de Tony Blair – e isso, para mim, é muito, muito, positivo. O que me preocupa são as suas tendências claramente conservadoras, mesmo para um político oriundo do Partido Popular Europeu; a sua oposição à adesão da Turquia (que contraria a linha ainda oficial da Comissão Europeia mas que deve agradar a Sarkozy e Merkel); e, principalmente, a sua recusa, enquanto político belga, de assinar a convenção europeia para a protecção das minorias étnicas e linguísticas, com o objectivo evidente de permitir que os flamengos mantenham a mãos livres para tratarem como entenderem (submissão ou expulsão) os valões instalados na Flandres. Estas coisas são (muito) graves.

A generalidade das reacções às nomeações de quinta-feira, com a óbvia excepção dos que para elas contribuíram, foi negativa. Um título do Público descreve bem a situação: "surpresa, perplexidade e desilusão em toda a Europa": Daniel Cohn-Bendit não vai por caminhos travessos: "A Europa bateu no fundo". Alguns jornais são ainda mais duros: "Zés-ninguéns" ou "equipa de sonho (que) põe a Europa a dormir". Mesmo os mais recatados falam de "desconhecidos", de "figuras apagadas", "de nomes fracos para grandes desafios".

Há pessoas que dizem que Durão Barroso sorri. Nesta troika, ele é, sem dúvida, o mais conhecido – pode mesmo dizer-se o único conhecido. Por enquanto, nenhum dos novos nomeados lhe faz sombra (embora eu, se estivesse no seu lugar, começasse a desconfiar de Van Rompuy, que já anunciou a sua intenção de representar a União Europeia nas reuniões do G-20 e que me parece perito em actuar pela calada). Mas quem ri com gosto são o Presidente francês e a Chanceler alemã (o Primeiro-Ministro britânico, em fase final de mandato e perante sondagens catastróficas, está numa fase em que já não ri de nada). Porque estas nomeações, acompanhadas pela contínua perda de poderes da Comissão, reforçam claramente o peso dos Governos e dos seus acordos pontuais no processo de tomada de decisão da União Europeia – ou seja, a sua componente intergovernamental. Que é, precisamente, o que querem os pesos pesados da Europa dos nossos dias – e a razão profunda destas nomeações.

PS. Sou funcionário da Comissão Europeia. Devo dizer, de forma expressa, que considero este blogue como uma forma particular de comunicação com a minha família e os meus amigos. Não sou uma figura pública e não penso que venham bisbilhotar o que escrevo ou que o que escrevo tenha alguma importância para além desse círculo fechado. Normalmente, não sentiria necessidade de clarificar a minha posição. Mas, nos tempos que correm, todo o cuidado é pouco para além de que, gato escaldado... de água fria tem medo.