terça-feira, 10 de novembro de 2009

Corrupção e Impunidade

O artigo do Director do "i", Martim Avillez de Figueiredo, na edição de sábado desse jornal, é importante porque afirma a existência de uma ligação clara entre a impunidade do poder e a solidariedade social. Esta é o resultado mais importante dum artigo reflectido, sereno, objectivo e implacável no seu diagnóstico e nas suas conclusões.

O principal problema de Portugal "não é a economia, estúpido!" É a justiça, que se atrasa, que hesita, que tropeça, que cai. É a justiça que deve constituir a prioridade, "a urgência", de qualquer governo. Pela razão simples de que a solução do problema da justiça em Portugal é essencial se quisermos assegurar a existência do sistema democrático.

Podiam acrescentar-se outras razões. Há muitos anos, fui ouvido num inquérito organizado por uma universidade americana, a pedido, creio, do Ministério da Economia, destinado a identificar os principais entraves à criação de empresas e, em particular, ao investimento directo estrangeiro no nosso país. Já nessa altura, identifiquei a lentidão da justiça, neste caso, a justiça cível e laboral, como o principal obstáculo à melhoria da situação nesse domínio. Não mudei de opinião.

Na justiça penal, o caso é mais grave. Trata-se de homens e mulheres acusados que factos que, por definição (por serem considerados crimes), violam os princípios elementares que devem reger a vida em sociedade. Não só esses homens e mulheres têm direito a não serem considerados suspeitos por mais do que o tempo estritamente necessário às necessidades da investigação – por exigências de justiça e protecção dos direitos fundamentais – como o corpo social, ou seja, todos nós, deve poder saber em tempo útil se as acusações se confirmam e, em caso afirmativo, que exigir que sejam tornadas públicas as penas aplicadas.

Mas na justiça cível, estes atrasos também têm consequências. Assim, durante muito tempo, em Portugal, era quase impossível para a maioria dos fornecedores conceder crédito aos seus clientes, a não ser em circunstâncias bem definidas ou a taxas de juro bastante elevadas (que, às vezes, se escondem por detrás dum aumento importante do preço de aquisição das mercadorias ou serviços fornecidos a crédito). Com efeito, a perspectiva de passar anos em tribunal para reaver o montante dos seus créditos desencorajaria a maioria. Mesmo que algumas das mais recentes alterações ao Código do Processo Civil tenham melhorado, senão corrigido, este estado de coisas, durante muito tempo ele foi um travão claro ao desenvolvimento das relações económicas entre empresas. O mesmo se diga do crédito e do mercado laboral. Uma justiça rápida é condição essencial do desenvolvimento económico. Há uma clara correlação positiva entre os países mais ricos e aqueles em que a justiça funciona, depressa e bem.

Nos casos de corrupção, de que fala particularmente Martim Avillez de Figueiredo, baseando-se nas obras de Ulrich Beck e Barbara Hudson, a situação é ainda mais grave. Com efeito, como diz, não podemos continuar indefinidamente a pedir sacrifícios a uma população que vive em condições extremamente difíceis se esta se convencer de que existem indivíduos ligados ao poder, esses mesmos indivíduos que decidem, ao mesmo tempo, os impostos que aquela paga e as prestações que recebe, mas que se comportam como uma quadrilha de malfeitores.

É claro que, em grande parte, estas razões também se aplicam às chamadas elites económicas – que se oferecem bónus escandalosos ao mesmo tempo que despedem trabalhadores. Mas é mais grave no caso das elites políticas porque o comportamento destas atinge os próprios fundamentos do contrato social. E, mesmo se não aceitarmos a ideia do contrato social, na sua formulação moderna, proposta por Rawls, e lhe preferirmos uma posição diferente, como, por exemplo a que nos propõe Amartya Sen, no seu recente livro, The Idea of Justice, que prefere considerar realizações em vez de regras e instituições, aplicando os métodos da social choice theory (simplificação extrema de um argumento muito complicado, que ainda não tenho a certeza de ter bem digerido), a conclusão de Martim de Figueiredo impõe-se seja qual for a concepção adoptada: é o sentimento de justiça da comunidade que é mortalmente ferido por situações daquela natureza.

É por isso que, para além de ineficiente porque impede uma utilização óptima dos recursos sociais, a corrupção é o dissolvente mais poderoso da unidade e solidariedade sociais (o mesmo podia dizer-se da desigualdade económica, pelo menos quando se ultrapassam certos patamares, mas não é disso que se trata agora).

Como já tinha dito numa entrada anterior neste blogue, seria bom que o Governo dedicasse algum tempo a estas preocupações. Porque, repetindo Martim de Figueiredo: "É a justiça, estúpido". Sócrates deveria ter cuidado. Vem aí uma nova direcção do PSD que bem poderia fazer deste e doutros casos idênticos a sua bandeira. Isso seria perigoso para o Governo e poderia abafar esta tentação de provocar novas eleições que parece animar o executivo; mas também supõe que o PSD conseguisse afirmar uma linha política coerente – ou, pelo menos, que as cabeças que por lá pudessem chegar a acordo sobre qualquer coisa que seja. O que não é certo nem sequer provável. É pena. Um país no estado em que se encontra Portugal precisa duma oposição forte e, sobretudo, credível. Até para evitar a repetição destas situações.

1 Comments:

Anonymous Inês said...

Olá, fico muito contente que tenha voltado a escrever no seu blog com regularidade. É sempre maravilhoso ler as suas opiniões, gosto sempre do tom jocoso (e, por vezes, sarcástico) de alguns dos seus posts. Welcome back e bjs

11 novembro, 2009 19:25  

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