O cronista Alberto Gonçalves e o casamento dos homossexuais

Alberto Gonçalves considera que a prioridade dada pelo Governo ao reconhecimento do casamento homossexual é um disparate. Está no seu direito – embora apeteça dizer que não deve ser grande disparate para os mais interessados, ou seja, os homossexuais. Onde a porca torce o rabo é quando se consideram os seus argumentos.
Diz então o conceituado sociólogo que, se é verdade que parece absurdo que alguém pretenda condicionar a "felicidade" de sujeitos "que se amam" e aspiram a consagrar esse "amor" na instituição matrimonial (aspas suas não minhas), não o é menos que uma tal situação «é também uma maçada recorrente no mundo real». Ou seja, os direitos dos cidadãos são estabelecidos pela lei e «a lei não anda, ou não deveria andar, longe de um relativo "consenso" acerca do seu objecto». (O que quer isto dizer? Akguém pode explicar-me o que significa concretamente esta frase?) E continua com esta pérola: «É por isso que, independentemente dos respectivos sexos, três (ou quatro, ou quinze) criaturas adultas e livres não conseguem casar mutuamente: porque a sociedade condena a poligamia e a lei determina em conformidade. A censura social, ou os "costumes", fundamenta igualmente a interdição penal do incesto, bem como obsta à pedofilia, aos pactos de suicídio e a inúmeras actividades que inúmeros indivíduos apreciam exercer e, por culpa de terceiros, legalmente não podem».
Não contente com isto, que já não é pouco, Alberto Gonçalves insiste em tornar a sua posição absolutamente clara. E, assim, para mal dos nossos ou seus pecados, continua: «Sei que as comparações não são inéditas e que os activistas gay se indignam imenso com elas. De acordo com o cliché, não é sério equiparar a homossexualidade ao incesto. Pergunto: porquê?»
A mim, a diferença parece-me simples, até mesmo de uma "cristalina simplicidade", como dizia alguém que conheci, de quem não gostava e que era jurista como eu (só os juristas usam estes termos). Ser homossexual não é uma escolha mas uma orientação da personalidade de certos indivíduos, no mais iguais a todos os outros, que preferem, emocional e sexualmente, desenvolver relações com pessoas do mesmo sexo. Ser homossexual faz parte da identidade sexual de cada um. O incesto é, pelo contrário, um acto relativamente ao qual há margem de escolha; ou seja, de que, num sentido ético, as pessoas podem abster-se. Há nele um momento de liberdade – e consequente responsabilidade – que não existe, nem tem que existir, no facto de alguém ser homossexual ou heterossexual.
A diferença é comprovada, se necessário, por este facto elementar: admitirmos casamentos entre pessoas do mesmo sexo não significa que aceitemos que dois irmãos ou duas irmãs se possam casar entre si. Aceitarmos o casamento homossexual não significa que aceitemos que um homossexual se possa casar com três ou quatro pessoas.
Por outro lado, a proibição da pedofilia assenta na evidência de que uma das partes nessa relação impõe a outra, que, em razão da sua menor idade, se apresenta indefesa, um dado comportamento que se traduz em prejuízos imensos para a criança ou adolescente que o sofre e fere a nossa sensibilidade e sentido de justiça. Mesmo que viesse alguém dizer que a atracção pedófila também faria parte da identidade sexual, nem mesmo assim a pedofilia poderia ser admitida porque atenta contra a dignidade e os direitos de outrém. O que não é, evidentemente, o caso dos homossexuais (ou heterossexuais) que desenvolvem relações com pessoas maiores ou equiparadas que nelas consentem. Para além do mais, não há razão nenhuma que permita ligar a pedofilia à homossexualidade: nem sequer razões estatísticas.
Quanto aos pactos de suicídio, eles não são para aqui chamados, nem de perto nem de longe.
Já agora, suponha-se, por absurdo, que alguém aparecia por aí a proibir o casamento entre heterossexuais. Utilizaria Alberto Gonçalves os mesmos exemplos para se opor a uma tal medida? Obviamente que não. Bastar-lhe-ia dizer que os heterossexuais teriam direito à "felicidade" e aspirariam a consagrar "o seu amor" através do casamento. E decerto não concordaria com alguém que lhe chamasse a atenção para o facto de essas e outras proibições serem "uma maçada recorrente no mundo real".
Pior ainda é que a argumentação de Alberto Gonçalves roça a indecência. Porque ele bem sabe – ou então é brincadeira pretender que é sociólogo – que tratar da mesma forma a homossexualidade e os outros comportamentos que se refere, a que está associada, seja por que razão for (mas, pelo menos no caso da pedofilia, com toda a razão), uma valoração social negativa, é uma forma clara de fazer equivaler algo que é perfeitamente normal a acções vergonhosas e, por esta via, fazer transbordar sobre os homossexuais uma tal indignidade. Se não fosse isto, os seus argumentos seriam sobretudo risíveis ou meramente estúpidos.
Quanto a mim, estou moderadamente contente. Excepto nos seus piores momentos, quando a ideologia lhe toldava o espírito (como, por exemplo, contestou a nomeação de uma mulher grávida para Ministra da Defesa espanhola, com o argumento de se tratar de mera manobra de propaganda), era agradável contestar as opiniões de José Manuel Fernandes. Quase nunca concordava com ele, irritava-me aquela sua mania de ter (uma certa) resposta para tudo e considerava-o perigosamente parcial para um jornalista; mas reconhecia-lhe a qualidade da inteligência. Não tenho a certeza de que o mesmo aconteça com este novo candidato ao título pouco invejável de pessoa mais comentada no meu blogue.
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