sexta-feira, 6 de novembro de 2009

O cronista Alberto Gonçalves e o casamento dos homossexuais

Agora que José Manuel Fernandes deixou a direcção do Público, privando-me do prazer de comentar alguns dos seus editoriais mais polémicos, será que lhe encontrei substituto em Alberto Gonçalves, sociólogo (ao que parece, amigo de Filomena Mónica, que lhe prodiga conselhos), cronista no Diário de Notícias? O seu último artigo, sob o título Os Casamenteiros, publicado a 26 de Outubro, dá-me fartas razões de esperança.

Alberto Gonçalves considera que a prioridade dada pelo Governo ao reconhecimento do casamento homossexual é um disparate. Está no seu direito – embora apeteça dizer que não deve ser grande disparate para os mais interessados, ou seja, os homossexuais. Onde a porca torce o rabo é quando se consideram os seus argumentos.

Diz então o conceituado sociólogo que, se é verdade que parece absurdo que alguém pretenda condicionar a "felicidade" de sujeitos "que se amam" e aspiram a consagrar esse "amor" na instituição matrimonial (aspas suas não minhas), não o é menos que uma tal situação «é também uma maçada recorrente no mundo real». Ou seja, os direitos dos cidadãos são estabelecidos pela lei e «a lei não anda, ou não deveria andar, longe de um relativo "consenso" acerca do seu objecto». (O que quer isto dizer? Akguém pode explicar-me o que significa concretamente esta frase?) E continua com esta pérola: «É por isso que, independentemente dos respectivos sexos, três (ou quatro, ou quinze) criaturas adultas e livres não conseguem casar mutuamente: porque a sociedade condena a poligamia e a lei determina em conformidade. A censura social, ou os "costumes", fundamenta igualmente a interdição penal do incesto, bem como obsta à pedofilia, aos pactos de suicídio e a inúmeras actividades que inúmeros indivíduos apreciam exercer e, por culpa de terceiros, legalmente não podem».

Não contente com isto, que já não é pouco, Alberto Gonçalves insiste em tornar a sua posição absolutamente clara. E, assim, para mal dos nossos ou seus pecados, continua: «Sei que as comparações não são inéditas e que os activistas gay se indignam imenso com elas. De acordo com o cliché, não é sério equiparar a homossexualidade ao incesto. Pergunto: porquê?»

A mim, a diferença parece-me simples, até mesmo de uma "cristalina simplicidade", como dizia alguém que conheci, de quem não gostava e que era jurista como eu (só os juristas usam estes termos). Ser homossexual não é uma escolha mas uma orientação da personalidade de certos indivíduos, no mais iguais a todos os outros, que preferem, emocional e sexualmente, desenvolver relações com pessoas do mesmo sexo. Ser homossexual faz parte da identidade sexual de cada um. O incesto é, pelo contrário, um acto relativamente ao qual há margem de escolha; ou seja, de que, num sentido ético, as pessoas podem abster-se. Há nele um momento de liberdade – e consequente responsabilidade – que não existe, nem tem que existir, no facto de alguém ser homossexual ou heterossexual.

A diferença é comprovada, se necessário, por este facto elementar: admitirmos casamentos entre pessoas do mesmo sexo não significa que aceitemos que dois irmãos ou duas irmãs se possam casar entre si. Aceitarmos o casamento homossexual não significa que aceitemos que um homossexual se possa casar com três ou quatro pessoas.

Por outro lado, a proibição da pedofilia assenta na evidência de que uma das partes nessa relação impõe a outra, que, em razão da sua menor idade, se apresenta indefesa, um dado comportamento que se traduz em prejuízos imensos para a criança ou adolescente que o sofre e fere a nossa sensibilidade e sentido de justiça. Mesmo que viesse alguém dizer que a atracção pedófila também faria parte da identidade sexual, nem mesmo assim a pedofilia poderia ser admitida porque atenta contra a dignidade e os direitos de outrém. O que não é, evidentemente, o caso dos homossexuais (ou heterossexuais) que desenvolvem relações com pessoas maiores ou equiparadas que nelas consentem. Para além do mais, não há razão nenhuma que permita ligar a pedofilia à homossexualidade: nem sequer razões estatísticas.

Quanto aos pactos de suicídio, eles não são para aqui chamados, nem de perto nem de longe.

Já agora, suponha-se, por absurdo, que alguém aparecia por aí a proibir o casamento entre heterossexuais. Utilizaria Alberto Gonçalves os mesmos exemplos para se opor a uma tal medida? Obviamente que não. Bastar-lhe-ia dizer que os heterossexuais teriam direito à "felicidade" e aspirariam a consagrar "o seu amor" através do casamento. E decerto não concordaria com alguém que lhe chamasse a atenção para o facto de essas e outras proibições serem "uma maçada recorrente no mundo real".

Pior ainda é que a argumentação de Alberto Gonçalves roça a indecência. Porque ele bem sabe – ou então é brincadeira pretender que é sociólogo – que tratar da mesma forma a homossexualidade e os outros comportamentos que se refere, a que está associada, seja por que razão for (mas, pelo menos no caso da pedofilia, com toda a razão), uma valoração social negativa, é uma forma clara de fazer equivaler algo que é perfeitamente normal a acções vergonhosas e, por esta via, fazer transbordar sobre os homossexuais uma tal indignidade. Se não fosse isto, os seus argumentos seriam sobretudo risíveis ou meramente estúpidos.

Quanto a mim, estou moderadamente contente. Excepto nos seus piores momentos, quando a ideologia lhe toldava o espírito (como, por exemplo, contestou a nomeação de uma mulher grávida para Ministra da Defesa espanhola, com o argumento de se tratar de mera manobra de propaganda), era agradável contestar as opiniões de José Manuel Fernandes. Quase nunca concordava com ele, irritava-me aquela sua mania de ter (uma certa) resposta para tudo e considerava-o perigosamente parcial para um jornalista; mas reconhecia-lhe a qualidade da inteligência. Não tenho a certeza de que o mesmo aconteça com este novo candidato ao título pouco invejável de pessoa mais comentada no meu blogue.