O casamento dos homossexuais - Um artigo de Esther Mucznik
Podemos discordar uns dos outros e comportarmo-nos como pessoas civilizadas? Claro que sim; e, se o fizermos, muitas vezes descobrimos que até há assuntos sobre os quais podemos concordar.
Não estou de acordo com muitos dos artigos que Esther Mucznik tem publicado no Público – nomeadamente com aqueles que se referem a Israel. Defendo a constituição de dois Estados na actual área da Palestina mas, ao mesmo tempo, não consigo deixar de pensar que a questão do Médio Oriente, que aflige há tanto tempo a paz mundial, teve a sua origem, em 1948 e já antes, em actos terroristas dirigidos contra a população palestiniana levados a cabo pelo Estado de Israel então recém-constituído – actos que se perpetuaram no tempo, como acontece, nos nossos dias, com os ataques a Gaza e a continuação do processo de construção de colonatos judaicos em território palestiniano.
Por isso, é com muito gosto que saliento a qualidade do último artigo desta autora publicado na edição da passada quinta-feira, 19 de Novembro, do mesmo jornal, sob o título A Homossexualidade em Debate. Esther Mucznik analisa o problema da homossexualidade – e, em particular, do casamento entre homossexuais e da adopção por homossexuais – com rigor, elevação e humanidade. O seu texto é merecedor de aplauso ainda mais porque, como afirma, «não (defende) nenhum direito especial, nenhum privilégio para nenhuma minoria, seja ela étnica, religiosa ou sexual» e «não (gosta) das manifestações de orgulho gay».
Isso não a impede de tratar este assunto de forma muito inteligente. Em primeiro lugar, recusa-se a considerar o problema do casamento dos homossexuais em si mesmo, separado da questão mais geral da orientação ou identidade (identidade não é, contudo, uma expressão utilizada por Mucznik) sexuais. Isso leva-a a considerar acertadamente que a sua aceitação não deve depender primordialmente de quaisquer eventuais efeitos positivos na redução dos preconceitos contra os gays ou as lésbicas. A simples aprovação duma lei na Assembleia da República não teria, segundo Mucznik, qualquer efeito nessa matéria. Como não bastam, acrescento eu, outros argumentos utilitaristas, relativos a situações cuja solução é certamente essencial mas que não justificam, por si só, a consagração legal do casamento homossexual. Com efeito, quase todas essas questões práticas (o direito à protecção social, o direito à casa de morada da família; eventuais direitos sucessórios) poderiam ser resolvidas através de regimes diferentes, por exemplo, semelhantes às uniões de facto do direito francês (os célebres PACS – Pacte Civil de Solidarité) que, aliás, se aplicam tanto a homossexuais como a heterossexuais que não pretendam casar-se ou até a pessoas que pretendam apenas organizar a sua vida em comum, sem necessária referência à ideia de família baseada no sexo.
Se a questão não é, nem apenas nem principalmente, legal, continua Mucznik, também não é religiosa. O seu argumento chocará alguns. Esther Mucznik afirma, em suma, que nada do que faça o legislador pode ter efeito na forma autónoma como as diferentes religiões encaram este problema; em contrapartida, qcrescento eu, as religiões também não podem pretender que as suas regras tenham efeitos civis. «A igreja, a sinagoga e a mesquita têm as suas próprias normas». Consequência: o Estado tem também as suas. As águas devem ser cuidadosamente separadas.
Excluídas todas estas razões – ou não-razões – para a aceitação do casamento homossexual (e da adopção por homossexuais que, como Mucznik afirma com lucidez, logicamente se seguirá, se não agora, pelo menos mais tarde – e seja dito que os dados empíricos existentes, embora reconhecidamente escassos, não permitem sustentar a ideia de que a família homossexual seja prejudicial às crianças), somos assim colocados perante a questão que é, na verdade, fundamental. Discutir o casamento dos homossexuais é, afinal, discutir a aceitação da própria homossexualidade. Não têm razão aqueles que dizem que não aceitam o casamento homossexual mas aceitam a homossexualidade. Porque do que se trata é, em suma, de discutir o direito à diferença.
Claro que se trata duma questão difícil – pode mesmo dizer-se fracturante em termos sociais. Mas isso decorre de mexer «com o tipo de certezas estruturantes nas quais somos educados e que radicam essencialmente na questão da sexualidade». Rejeitamos «à partida o que nos parece "anormal"; assusta-nos um mundo em que o "anormal" possa ser tratado como "normal"». E Mucznik engrena então uma série de perguntas: «Quais serão as regras então? Onde estará o bem e o mal? Como educar os nossos filhos? Qual o futuro de uma sociedade em que uma parte significativa da população não procria ou procria de forma não "natural"?» Para responder desapaixonadamente que «o anormal sempre existiu. Apenas era (e ainda é, embora cada vez menos) remetido para as margens escuras da sociedade, na pior das hipóteses estigmatizado como vergonhoso, sujo e perverso, na melhor como doença a extirpar. Em qualquer dos casos, objecto de rejeição e de chacota, de exclusão e de perseguição.»
O judaísmo de Mucznik – uma aguda consciência da perseguição de que foram alvo os judeus, pela simples razão de o serem, ao longo da sua imensa história – permite-lhe compreender, de forma particularmente aguda, o que está em causa. Por isso, parece-me importante terminar transcrevendo pura e simplesmente o último parágrafo do seu belo artigo. Ele diz, em poucas palavras, o essencial do que deve ser dito sobre este tema – mas também, e principalmente, sobre todas as formas de discriminação em que "o outro" é posto em causa por não se conformar com a nossa ideia de "normalidade" ou "naturalidade":
« (...) Apenas a liberdade e um tratamento igual perante a lei, sem discriminações negativas ou positivas, pode acabar com o "marranismo", ou seja, uma existência dupla, fonte de sofrimento individual intenso e de fragmentação social. Porque "marranos" são todos os que têm de esconder, de recalcar uma parte da sua identidade profunda por esta ser estigmatizada pela sociedade - sejam eles conversos judaizantes ou homossexuais praticantes...»
Não podia ser melhor dito.
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