sábado, 20 de maio de 2006

Ganimedes – A propósito de um poema de Jorge de Sena





















Rubens - «Ganimedes»
«O Rapto de Ganimedes» - Mosaico Romano

A história é conhecida. Robert Graves, em Os Mitos Gregos, conta-nos que Ganimedes, filho do Rei Tros, que deu o nome a Tróia, era o mais belo adolescente que vivia na terra. Por isso, foi escolhido pelos deuses como escanção de Zeus. Mais o deus desejava-o e, não se preocupando com cerimónias, transformou-se em águia, mergulhou sobre Ganimedes, que pastoreava o seu rebanho nas planícies de Troada, e raptou-o, tomando-o pelo bico, para depois tomá-lo propriamente, de forma física e vitoriosa. Para compensar Tros pela perda do filho, Hermes, o mensageiro dos deuses, actuando em nome de Zeus, ofereceu-lhe um cepo de vinha em ouro e dois corcéis, e assegurou-lhe que Ganimedes se tinha tornado imortal e que a sua juventude se manteria sempre, sem as indignidades da velhice.

O mito de Zeus e Ganimedes era extremamente popular na Grécia e em Roma como justificação religiosa da pederastia, ou seja, do amor (físico) de um homem maduro por um adolescente. De forma mais profunda, o mito consagra (ainda segundo Robert Graves) a vitória do sistema patriarcal sobre o matriarcal e permite a transformação da filosofia grega num jogo intelectual a que os homens podem dedicar-se sem o concurso das mulheres – na medida em que dispunham dum novo campo de experiências: a homossexualidade. Platão explorará o mito para justificar os seus sentimentos a respeito dos seus discípulos mas, em outras passagens da sua obra, condenará a sodomia, qualificando a fraqueza de Zeus como uma «pérfida invenção cretense». Esta referência a Creta resulta de uma outra história, segundo a qual o Rei Minos teria, por sua vez, raptado Ganimedes para o seduzir, desculpando a sua luxúria com o exemplo do deus.

Ao longo dos séculos, este mito inspirou vários artistas. Mas o seu significado mudou. Rubens, de que deixo aqui a reprodução do quadro «O Rapto de Ganimedes», a acompanhar uma reprodução de um antigo mosaico romano, é disso um exemplo. Na sua obra (sinal dos tempos!), o carácter homosexual da história perdeu-se. Ganimedes substitui Hebe, a deusa da juventude, como escanção dos deuses e recebe dela a taça de Zeus. Ao fundo, os deuses divertem-se! Santa inocência. Nessa altura, já os comentadores cristãos tinham convertido o episódio de Ganimedes numa alegoria do rapto da alma humana por Deus e da sua ascensão ao reino dos céus.

(Tudo isto explica ainda, mais prosaicamente, que o nome de Ganimedes tenha sido dado a um satélite de Júpiter, que é, como se sabe, o nome romano de Zeus).

O poema de Jorge de Sena, que Eugénio de Andrade inclui na sua Antologia Pessoal da Poesia Portuguesa, vai mais longe e parece-me questionar, em geral, o valor dos mitos como de qualquer representação genérica das relações pessoais. Dito doutro modo: nas relações humanas, os mitos não nos permitem aceder ao essencial (ao «decisivo») porque, aí, são os aspectos individuais, as ligações reais e afectivas entre as personagens que verdadeiramente importam. Sem dúvida que os mitos, estas «histórias sobre o mundo dos deuses e a sua relação com o mundo dos homens» (Peter Rietbergen «Europe: A Cultural History»), nos ensinam alguma coisa: neles se plasma uma orientação global, social, e eles constituem representações colectivas da forma como, subconscientemente, os homens encaram a natureza e o sobrenatural, as relações sociais e familiares, o sexo e o desejo, etc.. Mas, se quisermos conhecer a verdade de uma situação concreta, são os detalhes, os pormenores, é o único e individual, e não o abstracto, que devemos procurar. O que temos que saber é, no dizer do poeta, «quem avança em quem? se o deus se entrega, ou é quem viola, e como, o corpo arrebatado? quem é o senhor de quem? ou por acaso foi que o deus se apaixonou? e essa paixão durou? e que destino teve o rebanho dispersado em susto? e a flauta que entre a verdura mal se vê, perdida?». A nada disto, o mito responde.

Aqui fica o poema.

Ganimedes
(1969)

Os pensamentos pastam na verdura,
balindo mansamente em torno dele,
e o rio corre sussurrante em pedras
que as sombras do arvoredo fazem negras.

Numa árvore se encosta o tronco magro
que os cotovelos finca nos erguidos joelhos,
enquanto as finas ancas pousam na verdura
e de uma sombra entre elas pende uma brancura.

Delicados e firmes, os lábios se contraem
na tersa flauta em que os seus dedos dançam
ao mesmo tempo segurando-a leves.
Quase é silêncio a curta melodia.

Do fundo e vítreo azul que imobiliza
o campo e o arvoredo, um ponto negro vem
crescendo em asas, garras, bico adunco
entreaberto à frente de sanguíneos olhos.

E adeja no alto, imensa e monstruosa,
uma ave gigantesca. Os pensamentos sentem-na,
que os faz fugir, dispersos, assustados.
A melodia se suspende. O pastor olha.

Numa surpresa vê que as asas se desabam
sobre ele, escurecendo e recobrindo tudo.
Quando abre os olhos, elas voam vastas
entre ele e o azul, e as garras pela cinta o cingem.

Lá em baixo o rio brilha entre o arvoredo,
e pontos brancos, vagos, são o seu rebanho.
O bico hiante à sua boca chega
numa doçura a atormentá-lo inteiro.

E a negridão se acende pouco a pouco
de um resplendor de carne que é o do céu em volta,
e que o rodeia e rasga de um calor ardente
em que o seu corpo avança como um róseo dardo.

Mas quem avança em quem? O deus se entrega,
ou é quem viola, e como, o corpo arrebatado?
Quem é o senhor de quem? Ou sempre, ou mutuamente?
Ou cada um se humilha à sujeição do outro.

E mais: sem que o soubesse, aquele humano estava
já destinado às garras longamente curvas?
Ou por acaso foi que o deus se apaixonou?
E essa paixão durou? E que destino teve

o rebanho dispersado em susto? E a flauta
que entre a verdura mal se vê, perdida?
E o corpo do pastor, que pensa agora?
Só isto – o decisivo – não sabemos.