Retorno à Correspondência entre Sophia de Mello Breyner e Jorge de Sena
(Escultura de Salvador Dali)
Esta correspondência continua a fascinar-me. Fico contente por poder assinalar que Guilherme de Oliveira Martins (http://www.cnc.pt/Artigo.aspx?ID=435) se lhe refere também com imensa admiração, salientando, como eu fiz, os poemas escritos por cada um dos poetas a respeito do outro e a carta de Sophia a Mécia de Sena quando Jorge de Sena morreu.
Mas o motivo deste novo artigo é outro.
Numa carta datada de Abril / Maio de 1964, Sophia pergunta a Jorge se recebeu o seu «postal da Grécia». E noutra, de Novembro desse ano, diz: «Mandei-lhe, pela Maria de Lurdes Belchior, um retrato meu na Grécia. Recebeu?»
A viagem à Grécia foi, para Sophia, uma imensa experiência espiritual, que deixou traços em muitos dos seus poemas. Viajando acompanhada de Agustina Bessa Luís, Sophia confessa a Jorge de Sena, na primeira carta, que nem sequer «tento descrever-lhe a Grécia nem tento dizer-lhe o que foi ali a minha total felicidade. Foi como se eu me despedisse de todos os meus desencontros, todas as minhas feridas e acordasse no primeiro dia da criação num lugar desde sempre pressentido. Sobre a Grécia só o Homero me tinha dito a verdade: mas não toda. O primeiro prodígio do mundo grego está na Natureza: no ar, na luz, no som, na água. É uma natureza mitológica onde as montanhas e as ilhas têm um halo azul que não é imaginado, mas sim fenómeno físico objectivo que, segundo me disse o Padre Antunes (...), já era um fenómeno notado e discutido na antiguidade. Sob o sol a pique, numa claridade azul indescritível, o ar é tão leve que nos torna alados e o menor som se recorta com uma inteira nitidez. As enormes e constantes montanhas povoam tudo de solenidade. Cheira a resina e a mel e há uma embriaguez austera e lúcida. (...) Tanto como a natureza (...), espantou-me incrível religiosidade de tudo. Depois da Acrópole, São Pedro de Roma pareceu-me mundano e fútil e pesado. É uma religiosidade tão nua, tão funda, tão intensa, tão solene como eu nunca tinha encontrado. É uma atitude de ligação com o real que está presente em todas as coisas.»
(Numa nota pessoal, o Padre Antunes aqui mencionado é o Padre Manuel Antunes, jesuíta e professor, que, segundo creio, me fez exame oral de Filosofia, nas provas de aptidão à Faculdade de Direito, em 1972.)
Mais tarde, Sophia visita Creta e, em Outubro de 1970, escreve um longo poema, onde aquela primeira impressão da Grécia ainda ressoa, em certas frases, em certas maneiras de dizer (a solenidade do lugar, os olores, os sabores, a luz, a cor):
O Minotauro
(Outubro de 1970. Publicado em «Dual», 1972)
Em Creta
Onde o Minotauro reina
Banhei-me no mar
Há uma rápida dança que se dança em frente de um toiro
Na antiquíssima juventude do dia
Nenhuma droga me embriagou me escondeu me protegeu
Só bebi retsina tendo derramado na terra a parte que pertence aos deuses
De Creta
Enfeitei-me de flores e mastiguei o amargo vivo das ervas
Para inteiramente acordada comungar a terra
De Creta
Beijei o chão como Ulisses
Caminhei na luz nua
Devastada era eu própria como a cidade em ruína
Que ninguém reconstruiu
Mas no sol dos meus pátios vazios
A fúria reina intacta
E penetra comigo no interior do mar
Porque pertenço à raça daqueles que mergulham de olhos abertos
E reconhecem o abismo, pedra a pedra, anémona a anémona, flor a flor
E o mar de Creta por dentro é todo azul
Oferenda incrível de primordial alegria
Onde o sombrio Minotauro navega
Pinturas ondas colunas e planícies
Em Creta
Inteiramente acordada atravessei o dia
E caminhei no interior dos palácios veementes e vermelhos
Palácios sucessivos e roucos
Onde se ergue o respirar de sussurrada treva
E nos fitam pupilas semi–azuis de penumbra e terror
Imanentes aos dia –
Caminhei no palácio dual de combate e confronto
Onde o Príncipe dos Lírios ergue os seus gestos matinais
Nenhuma droga me embriagou me escondeu me protegeu
O Dionysos que dança comigo na vaga não se vende em nenhum mercado negro
Mas cresce como flor daqueles cujo ser
Sem cessar se busca e se perde se desune e se reúne
E esta é a dança do ser.
Em Creta
Os muros de tijolo da cidade minoica
São feitos de barro amassado com algas
E quando me virei para trás da minha sombra
Vi que era azul o sol que tocava o meu ombro
Em Creta onde o Minotauro reina atravessei a vaga
De olhos abertos inteiramente acordada
Sem drogas e sem filtro
Só vinho bebido em frente da solenidade das coisas –
Porque pertenço à raça daqueles que percorrem o labirinto
Sem jamais perderem o fio de linho da palavra.
Jorge de Sena, que deverá ter tido conhecimento do poema directamente por Sophia, responde-lhe, a 13 de Outubro do mesmo ano, de forma ligeira e sorridente. Este poema seria mais tarde publicado por Mécia de Sena, em «Visão Perpétua» (1ª edição: 1980):
Sophia da monarquia
(13 de Outubro de 1970)
Sophia da monarquia,
sofia republicana,
recebi a antologia,
corrigida e ampliada,
com sua dedicatória
de antiga amizade grada
em que anotas a história
e para a História registas
que em Creta tu te banhaste
no esplendor da maresia,
com o meu velho Minotauro.
Em Creta, com o Minotauro,
por onde andamos, Sophia!
Que outros poetas se banhem
em Estorises e Cascaises
de água turva lusitana.
A nós as ilhas da Grécia!
A nós a fonte do dia!
A nós o leite que mana
de ser-se sófia e Sophia!
E assim se falavam dois poetas que eram dois dos maiores do século de ouro da nossa poesia (Eugénio de Andrade), unidos, à distância, por uma segura e comovente amizade.
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