quinta-feira, 21 de maio de 2009

Tortura

Enoja-me este debate sobre os resultados da tortura em interrogatórios a suspeitos como se a questão pudesse ser resolvida apenas em termos barbaramente quantitativos: quantas vidas salvo, se torturar a pessoa que está diante de mim, com as mãos amarradas atrás das costas, em posição de clara vulnerabilidade? Enoja-me esta maneira de encarar as coisas, que esquece o carácter degradante da tortura, não só sobre o torturado, mas sobre o torturador – e que esquece que a sensação de poder que se dá a este é perigosa para a democracia e para a liberdade. E enoja-me que os modernos defensores públicos da tortura se encontrem hoje, quase exclusivamente, nos Estados Unidos – em certas franjas conservadoras do Partido Republicano, de que o principal porta-voz é o antigo Vice-Presidente Dick Cheyney – porque me habituei a considerar que os Estados Unidos constituíam um exemplo jurídico, embora não político, para o mundo, com as garantias que rodeiam os processos judiciais americanos (embora reconheça que, nos últimos tempos, tudo por lá funciona na base das possibilidades financeiras dos réus – e da cor da sua pele!)

O argumento quantitativo não pode ser utilizado por nenhum americano. Pode criticar-se a decisão de Truman de bombardear Hiroshima e Nagasaki ou concordar-se com ela – mas é evidente que o Presidente americano aceitou a possibilidade de matar muitos milhares de japoneses para evitar a morte de muito menos americanos que teriam provavelmente perecido no caso duma invasão armada do Japão. E como pode um homem como Cheney brandir uma tal justificação – uma vez mais, sem e pronunciar sobre a razão de qualquer dos lados – quando apoia os ataques israelitas na banda de Gaza ou contra os alvos protegidos pela Hamas, que provocaram centenas de mortos em represália pela morte de, no máximo, duas dezenas de israelitas?

Mas é importante dizer que, mesmo que fosse correcto, mesmo que, com a tortura dum homem se conseguisse evitar a morte de muitos, este fundamento da tortura não é suficiente. Porque estamos aqui a tratar com aquilo que nos define como história – nesse processo que nos levou a considerar a dignidade humana, mesmo que seja a dignidade de um criminoso, como um valor fundamental da nossa concepção do mundo. Como, há anos, dizia José Miguel Júdice, pese embora o que pensam certos polítcos prontos a tudo para se tornarem populares, as garantias do processo penal, por exemplo, não estão lá para defender os inocentes – mas para proteger os possíveis criminosos. É que as sociedades a que nos orgulhamos de pertencer – e que invocamos nesta chamada guerra das civilizações, aliás, a mais sinistra forma de dividir o mundo entre os «nós», a quem tudo se permite, e os «eles», a quem tudo é negado, característica essencial dos totalitarismos – decidiram, há pelo menos dois séculos, que os fins não justificam os meios.

Outro aspecto que não podemos esquecer é que a tortura se exerce sobre suspeitos – ou seja, sobre pessoas que, em princípio, de acordo com as regras das nações que chamamos civilizadas, ainda são inocentes! Quando vejo juristas a definir, especiosamente, o que pode ou não ser considerado como tortura, para justificar as acções das suas forças armadas ou dos seus serviços secretos, quando a hipocrisia vai ao ponto de aceitar que, já que há métodos que nem mesmo assim se podem utilizar, então a solução é entregar os suspeitos a países onde a prática (ou melhor, na ausência das nossas regras) tudo permite – belisco-me para tentar compreender se vivo no mundo em que cresci, onde coisas destas apenas eram aceites – e em segredo – por regimes totalitários e ditatoriais.

Até Estaline nunca aceitou publicamente que os seus presos fossem torturados; e Hitler preparava os campos de concentração para as visitas da Cruz Vermelha, de forma a esconder o que lá verdadeiramente se passava. Mas é verdade que Dick Cheney tem alguma companhia: Pol Pot, o carrasco do Cambodja, por exemplo, orgulhava-se do que fazia. Que lhe faça bom proveito!

O que os Estados Unidos fizeram, na época de Bush, foi simplesmente uma vergonha. Até posso compreender a posição de Obama quando se recusa a tornar públicas as fotografias dos principais abusos de oficiais americanos nas diferentes prisões, com a justificação de que, se elas viessem a público, soldados em guerra, no Iraque e Afeganistão, poderiam, se fosse feitos prisioneiros, sofrer horríveis represálias. Afinal, ele tem uma responsabilidade, que eu não tenho, relativamente aos membros das forças armadas americanas, de quem é o chefe supremo. Mas isso só leva a que nos perguntemos o que há de tão terrível nessas imagens que pudesse levar a tais retaliações. Pelo que se vê na fotografia que aqui juntei, a resposta não é, infelizmente, muito difícil!