Clara Haskill (1895-1960)
Há algum tempo, li, num artigo de Edward Said, que, para além de todos os seus outros talentos, era um crítico musical de rara qualidade – e insusceptível de se deixar impressionar pela mera expressão de destreza técnica que caracteriza tantos dos jovens intérpretes de hoje – que a marca dum grande pianista (mas as suas considerações podiam aplicar-se a qualquer intérprete) como Pollini, Rachmaninov, Schnabell, Brendel, Kempff, Richter, Gilels, Lipati, e outros poucos, era a de nos permitir aceder ao próprio acto de criação musical. Falando, por exemplo, das interpretações de Schumann por Rachmaninov, Said diz-nos que elas nos fazem tomar consciência do compositor no momento em que inventa as suas peças, em que lhes dá um significado, e tornam o que não seria senão uma partição morta escrita numa página em que se encontram desenhados símboloos colocados em conjunto de cinco linhas numa peça de música, que envolve de froma nova o intérprete, o compositor e o público. Por interpretações como estas, acedemos à visão do compositor (ele não diria a sua alma ou o seu espírito, mas é quase isso).
Clara Kaskill fazia parte desse grupo de pianistas. Quando a ouço em peças de Schumann, na última sonata de Schubert e em outras de Beethoven, nas sonatas e concertos de Mozart, ou nas sonats para piano e violino de Beethoven e Mozart (acompanhada por Arthut Grumiaux), sinto-me ligado a esses homens que nos deixaram a sua música, no que seria uma conversa na nossa linguagem comum mas que, no meu caso, e dada a miha ausência de cultura musical de base, é apenas num encontro de sensibilidades - ou, como se diz no poema que se segue, de alguma coisa que faz «o sublime dessas marginalidades da vida». E é através destes intépretes que encontro e partilho o sentido e a emoção da música.
Por isso, gostei de encontrar, quase por acaso, este poema de Vasco Graça Moura, sobre Clara Haskill (o Conceto em Ré menor é o Concerto No. 20. Para mim, a melhor interpretação é a de Martha Argerich):
Clara Haskill
e há sempre uma história das pessoas ouvida com o que somos,
uma narração a prolongar a acústica dos sóis interiores, destinos
quando a tarde esmorece, por exemplo, aos
sessenta e cinco anos, clara haskill caiu na plataforma
da gare de bruxelas. veio a morrer
das complicações da queda. mas antes já tivera
problemas da coluna e da vista, já
tivera de fugir da alemanha. estas notas
vêm na capa do disco em que ela, a intermediária
de mozart, toca o concerto em ré menor, numa aura
de densidades graves. você está deitada no sofá
a ler um livro, quando eu lhe digo isto. não
sei se presta atenção, ou se apenas sorri como a música requer
e a haskill desejaria. a música é sempre autobiográfica
para o ouvinte, uma acelerada angústia desmedindo o que
ousávamos saber. e uma íntima aliança com a luz
e o inominável da experiência fazem
o sublime dessas marginalidades da vida.
Vasco Graça Moura
A Furiosa Paixão pelo Tangível
Quetzal
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