Campos e Cunha e os bónus dos gestores
Tenho uma grande admiração por Luís Campos e Cunha, o primeiro ministro das Finanças de José Sócrates, que se demitiu pouco meses após ter sido nomeado, com a decência de o fazer de forma discreta e não com o estrondo que é habitual nestas ocasiões. (Aliás, desde o início se tornou evidente que a sua postura não se coadunava com a forma como Sócrates gosta de exercer o poder: muita arrogância e pouca discussão!) Depois disso, Campos e Cunha escreve às sextas-feiras uma coluna de opinião no Público, que vale a pena seguir. As suas opiniões são equilibradas e bem argumentadas. Não se nota nele aquele espírito dos portugueses «vencidos da vida» deste início do século XX, cujo paradigma é António Barreto, que parecem ter desesperado de Portugal. Pelo contrário, Campos e Cunha dá a impressão de continuar empenhado na política - mas não na «politiquice» - nacional, discute problemas e propõe soluções, e os seus comentários, sempre bem escritos e pontuados duma não disfarçada ironia, são positivos mesmo quando são críticos. Por vezes, discorda das opções do Governo; noutras ocasiões, defende-as. Não há qualquer espírito partidário no que escreve.
O seu artigo desta sexta-feira não foge à regra. Trata duma questão actual, sobre o qual já muita gente se pronunciou, as mais das vezes de forma apressada: os bónus dos gestores. Foge à regra de os considerar, em si mesmos, como uma coisa «má». Mas se, no plano teórico, a sua argumentação é sólida, embora discutível, tenho que dizer que considero as suas propostas impraticáveis; de tal forma impraticáveis, que me parece que a discussão teórica perde grande parte do sentido. E principalmente, porque se limita a discutir os bónus e não considera a questão mais geral do carácter excessivo da remuneração global de certos administradores de empresas, Campos e Cunha limita artificialmente o problema e deixa de lado aspectos importantes que nos deviam preocupar a todos. É por isso que vale a pena dedicar algum tempo a este assunto.
Que nos diz Campos e Cunha? Que os bónus dos gestores, isto é, as remunerações contingentes em relação ao desempenho das empresas, são uma boa coisa que deveria, aliás, ser alargada aos restantes empregados, no que seria uma forma de transformar a flexibilidade numérica, que se traduz em despedimentos ou lay-offs, numa flexibilidade financeira que permitiria às empresas enfrentar as crises com menores custos sociais.
Para tanto, Campos e Cunha começa por criticar os argumentos que normalmente são avançados pelos que contestam esses bónus. São três: os bónus são vultuosos; assentam em indicadores de curto prazo, constituindo um entrave a estratégias empresariais que privilegiem a sustentabilidade financeira e a inovação; e os accionistas não os controlam.
Quanto ao primeiro argumento, Campos e Cunha conclui, um tanto ou quanto apressadamente, que o problema, se é certo que se coloca em certos países (dá como exemplos os americanos e ingleses), não se põe em Portugal. Ora, se bem que não tenha dados precisos para lhe contrapor, recordo-me que, no tempo de Jardim Gonçalves, as remunerações dos administradores do BCP constituíam mais de 80% da factura salarial total desse banco. É duvidoso que uma tão grande fatia não incluísse bónus particularmente elevados. Mas, em qualquer caso, a conclusão inevitável é que é necessário considerar o problema das remunerações excessivas na sua globalidade, integrando as suas componentes fixas e variáveis.
O segundo argumento, Campos e Cunha considera-o muito pertinente! Só que, do seu ponto de vista, não se trata dum argumento contra os bónus mas contra os critérios da sua atribuição. Estou de acordo. As minhas dúvidas, aqui, situam-se noutro plano, que tem também a ver com a resposta ao terceiro argumento: na prática, é possível alterar esses critérios?
O último argumento também é considerado importante por Campos e Cunha. Com efeito, em sua opinião, se não forem os accionistas a atribuir esses bónus, podem surgir, na ausência de um accionista de referência que de facto controle a empresa, situações de ineficiência. Mas, mais uma vez, considera que a crítica não se dirige aos bónus mas à falta de accountability da gestão das empresas em causa. Aliás, no caso das empresas cotadas em bolsa, uma tal situação aconselharia uma regulamentação mais cuidada e a intervenção das entidades de supervisão, por estar em causa o normal funcionamento dos mercados.
Ora, em tudo isto, e pesem embora alguns aspectos correctos da argumentação de Campos e Cunha, o que me preocupa é o seguinte: estes bónus – como a remuneração total dos gestores – são sempre decididos em circuito fechado. Uma comissão de remunerações de uma empresa é constituída, na maioria dos casos, por administradores de outras empresas cujos vencimentos são, por sua vez, determinados por aqueles cujas remunerações estão encarregados de decidir. Trata-se de uma pescadinha de rabo na boca: uma situação em que «eu decido o que tu ganhas, tu, pela tua parte, decide o que eu ganho». É difícil ver como, nestes casos, se podem evitar exageros e ineficiências. E a verdade é que não há regulamentação que nos valha. Porque a questão será, sempre, a de saber quem decide essas remunerações. O Estado? As entidades supervisores? Disparate! Os accionistas? Na prática, impossível. Campos e Cunha fala de «introduzir regras que garantam um efectivo controlo pelos accionistas da decisão de remuneração dos gestores». Mas que regras, se todos sabemos que, em nenhuma empresa, a massa dos accionistas decide seja o que for e nem sequer tem, na maioria dos casos, capacidade para bloquear qualquer decisão do Conselho de Administração? (Muitas vezes, nem sequer os fundos de investimento, com todo o poder de que dispõem, o conseguem.) Mesmo que fosse viável introduzir normas com o objectivo de assegurar esse controlo – e Campos e Cunha não indica nenhum exemplo –, seria sempre um grupo restrito de grandes accionistas a definir o vencimento dos gestores. E estes accionistas são, por sua vez, controlados por administradores que querem, também, por razões de interesse pessoal, aumentar as suas próprias remunerações, não tendo qualquer incentivo para diminuir as dos seus pares.
Se, por outro lado, alargarmos a discussão ao carácter excessivo da maioria destas remunerações, então devemos questionar-nos como é possível que o leque salarial na generalidade das empresas se tenha alargado de forma tão dramática nos últimos tempos – isto é, que os gestores ganhem proporcionalmente muito mais hoje do que num passado ainda recente mas já esquecido (os tempos de antes de Reagan e Thatcher) do que a maioria dos seus empregados? Ou como aceitamos injustiças flagrantes como, por exemplo, que as pensões atribuídas a gestores da Caixa Geral de Depósitos por três anos de actividade sejam escandalosamente mais elevadas das que são dadas aos seus empregados por quarenta? Quando se exige o aumento da idade da reforma (proposta com a qual concordo) ou a diminuição das pensões e restantes contribuições sociais (de que discordo totalmente), é indecente que se mantenham situações deste tipo.
E porque será que tenho a sensação de que essa flexibilidade financeira, que defende Campos e Cunha (a diminuição dos salários – da sua parte contingente – em tempos de crise), se aplicará muito mais facilmente aos trabalhadores do que aos administradores? Talvez porque tenha assistido no passado, em certas empresas, a despedimentos massivos ao mesmo tempo que se renovava a frota de jactos ao serviço do conselho de administração ou que se garantiam golden parachutes - incluíndo, por vezes, o direito a viajarem nesses mesmos jactos e a hospedarem-se em hóteis de luxo, sem limite de tempo, à sua custa – a dirigentes afastados por ineficiência? (Num caso, em França, o Le Monde afiançava que os montantes envolvidos correspondiam a mais cinco séculos do salário mínimo!)
Em suma, mesmo com a melhor das intenções, não vejo como possa resolver-se esta questão dos bónus e, principalmente, a das remunerações excessivas, a não ser através do imposto. Neste, como noutros casos, parece-me urgente voltar aos princípios da social-democracia tradicional. Até porque estou mesmo convencido de que não exageram os que dizem que os capitalistas perderam a cabeça e que esta situação, a prazo, coloca em risco a coesão das nossas sociedades.
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