Albert Camus

A posição moderada de Camus relativamente ao conflito argelino explicava-se pelas suas origens. Nascido e criado na Argélia Francesa, de família imigrante e pobre, órfão de um pai que apenas conheceu a França para nela morrer na Grande Guerra, Camus estava sempre pronto a deixar Paris para, com um sentimento de inacreditável plenitude e indisfarçável júbilo, se imbuir do, do sol, do mar e do espaço africanos. Opondo conscientemente o carácter fechado e opressivo dos salões metropolitanos ao movimento de luz, liberdade e sensualidade das paisagens argelinas, Camus demonstrava que não fazia parte dessa intelectualidade vagamente pretensiosa que tanto agrada aos franceses. Na sua célebre frase, «entre la justice et ma mère, je préfère ma mère», e embora, como é normal nestes casos, a frase não seja absolutamente exacta e, sobretudo, não reflicta toda a complexidade do seu pensamento, Camus tentou exprimir também este sentimento de inadaptação relativamente ao mundo literário em que tinha penetrado depois de ter conseguido uma bolsa para prosseguir os seus estudos secundários, arrancado a ferros da sua família pela força de vontade do seu professor da escola primária, Louis Germain, a quem dedicou o seu discurso de aceitação do Prémio Nobel. Porque Camus era, também um puro produto da III República Francesa, duma sociedade em que era possível, mesmo para os mais pobres (e o tema da pobreza, da nua, crua, pobreza que, como ele dizia, conduz à ausência de memória, de passado e de História, porque os pobres se preocupam essencialmente com a sobrevivência no quotidiano, surge como um persistente pano de fundo em toda a sua obra), através dum extraordinário sistema de bolsas, escapar, através da educação, aos constrangimentos impostos pelo nascimento. (Embora muitas vezes pagassem um preço alto por isso...)
Note-se que Camus não era um simples colonialista, um defensor impenitente da presença francesa na Argélia. Já na década de trinta, muito antes de os espíritos bem-pensantes de Paris se preocuparem com o problema argelino, Camus explicava «qu'une grande, une éclatante réparation doit être faite (...) au people Arabe». Simplesmente, considerava que essa reparação era devida «par la France toute entière et non avec le sang des Français d'Algérie». Contudo, no final dos anos cinquenta, esta procura de um compromisso liberal (Tony Judt) tornou-se irrelevante. Camus murou-se no interior do seu silêncio. Estava sobretudo cansado. Não queria ser o porta-estandarte de ninguém, o guia de pessoa nenhuma: «Je ne sais pas, ou je sais mal, où je vais».

Em primeiro lugar, está a sua recusa inapelável da violência. «Il y a des moyens qui ne s'excusent pas». Este absolutismo de intenção toca-nos hoje profundamente porque pertencemos a uma geração que viu e percebeu, como a de Camus tinha visto mas só entendido em parte (escapava-lhe a União Soviética, a China, mais tarde Cuba, o Vietname e o Cambodja) a que inferno nos levam mesmo as boas intenções se não houver cuidado na escolha dos métodos. Para além disso, um tempo que, como o nosso, discute indecentemente a legalidade ou ilegalidade da tortura deve encontrar algum conforto nesta clara linha de demarcação entre o bem e o mal.
Em segundo lugar, está a liberdade, a sensualidade, a poderosa atracção física e sexual que se liberta dos seus livros. (Esta é, sobretudo, uma característica de Camus enquanto escritor). Em cada página dos seus romances somos confrontados com um apelo mágico a formas, cheiros, imagens, sons, à beleza, ao sexo. Não consigo compreender como há idiotas (Pierre Bergé, o antigo amante de Yves St-Laurent) que dizem que Camus é "un écrivain pour instituteurs". É claro que algumas das suas obras têm um cunho didáctico - La peste ou La chute (de que gosto menos) são exemplos. Porém, mesmo nestes livros, as personagens estão vivas, as paisagens movem-se, as sensações inundam o leitor. Camus é, nesta perspectiva, um escritor decididamente moderno.
E, depois, há a tragédia duma existência ceifada, uma vida brilhante que um acidente transforma em destino (Bernard Fauconnier). Como todos os que morrem jovens (os que os Deuses amam), a nossa memória de Camus é, para sempre, a do homem ainda novo com o cigarro ao canto da boca, a face dos seus quarenta e seis anos, com a inerente promessa de um futuro incumprido, a aventura incomparável duma existência que não sofreu nem os compromissos da maturidade tardia, nem a indignidade da velhice.
Para mim, que mergulhei fascinado no L'homme revolté, e que nunca, mesmo quando era jovem, me desviei da sua mensagem principal de recusa de qualquer violência, para mim que sempre defendi, com unhas e dentes, a ideia de que os fins nunca justificam os meios, afastando-me tantas vezes dos meus amigos mais à esquerda ou (bastante) mais à direita, para mim que devorei L'étranger e quase aprendi La peste de cor, este retorno a Camus é consolador. A vingança duma História que se reconhece nos seus homens bons e dignos. A afirmação dum pensamento que recusava a violência e a imposição, baseado na modéstia conferida por uma enorme inteligência mas também pela abnegação e atenção aos outros.
Não me importa nada saber se o seu corpo repousará no Panteão como, ao que parece, pretende Nicolas Sarkozy. (Parece que não porque uma parte da família se opõe). Mas gostaria que a sua lição persistisse entre nós, nesta espécie de Panteão espiritual definido pela comunidade do saber e da cultura de que, à minha medida, gosto de pensar que faço parte.
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