quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Lobo Antunes - Assuntos a tratar depois de ter morrido

Volto ao texto de Lobo Antunes para o qual o Carlos chamou a a minha atenção: "Assuntos a tratar depois de ter morrido", publicado na Visão, de 16 a 22 de Setembro.

O que vou dizer de seguida é polémico e, por exemplo, não seria do agrado do próprio Lobo Antunes se este por mero acaso visse o que escrevo: é que prefiro as suas crónicas aos seus romances. Nestes, o extremo cuidado na elaboração do texto, a subordinação às exigências formais essenciais para o autor (que confessa que escreve e reescreve interminavelmente os seus textos) parecem-me abafar a respiração das frases, o arfar das palavras e a sua beleza. Nas crónicas, a escrita liberta-se e as palavras e frases correm pelo texto, deixam-se arrastar na corrente, frescas e molhadas. Em Assuntos a tratar depois de ter morrido, o carácter trágico e, ao mesmo tempo, lúcido do texto não é escondido por nenhuma convenção e surge, maravilhoso, em plena claridade.

Para não haver confusões, digo apenas que o meu estado físico ou psíquico não é, nem de perto nem de longe, o de Lobo Antunes na altura do seu tratamento e que, portanto, o que trago aqui, senão muito brevemente nos momentos finais deste texto, não é uma comparação de vivências mas o simples testemunho da sua.

"Quando há três anos e tal estive muito doente não sentia medo da morte, sentia um vazio absoluto em que tudo me era indiferente menos os livros que escrevi. De fraldas e algália, cheio de tubos, incapaz de mexer-me, levava as noites sem dormir a olhar para a janela, nem sequer à espera, um trapo exausto que para ali estava. As pessoas foram boas para mim porém o que diziam não significava nada: percebia-lhes o afecto mas não era capaz de corresponder, ouvia os assuntos de que falavam, tentava construir um sorriso e verificava, espantado, como é difícil construir um sorriso, alguns músculos da cara obedeciam-me, outros não, desistia. Não imaginava que um sorriso fosse um trabalho tão difícil. Meio afogado num charco de sofrimento físico, a observar a monotonia das gotinhas de soro, a forma como tremem, se desprendem, caiem, pensava que se me propusessem a saúde em troca do meu trabalho, recusava. E, tirando isso, não existia fosse o que fosse dentro da cabeça. A incapacidade de reagir contra o monstro que habitava o meu corpo revoltava-me. Em África, o inimigo estava fora e podia destruí-lo: no hospital, roía-me as vísceras, deixava-me à mercê dos outros, sem coragem de lutar. E no interior dos ruídos e das vozes alheias, que silêncio. Não observava a minha morte: percebia-a a rondar sem a ver, aproximar-se, afastar-se, passear por ali e nenhuma curiosidade da minha parte, nenhum interesse. Não tinha sequer forças para alcançar a enfermeira: chamá-la para que? Não havia nada a contar, o trapo cessara de possuir palavras, ideias, desejos. Achava-me a meio de um livro com o título de O Arquipélago Da Insónia e, ironicamente, o título aplicava-se ao meu estado. Sentia-me ilhazinhas dispersas, impossíveis de se unirem e formarem um homem, vagas ilhas despovoadas, só pedra e areia, nenhuma erva, nenhum caniço a crescerem. Tiravam-me as fraldas, lavavam-me, tornavam a pô-las, a humilhação de me pegarem nas vergonhas tocava-me um momento, desaparecia. O tubo da algália pingava para um saco de plástico graduado, aplicavam-me o termómetro no ouvido, enfiavam-me comprimidos boca abaixo. Acendiam a luz a meio da noite para se ocuparem um instante de mim, e a luz chicoteava-me numa brutalidade impiedosa. Não moravam mais infelizes no quarto, apenas eu e a janela para tardes cinzentas de março, cuja melancolia se imobilizava contra os vidros, não entrando sequer. Emagreci uma porção de quilos, lembro-me um amigo a chorar e de me surpreender que chorasse, para quê chorar, qual a razão de chorar, o que se passava com ele, de onde lhe viria o desgosto perante o tal trapo que perdera o nome, com a nuca dissolvida na almofada? Sempre me supus de uma matéria diferente dos restantes, orgulhoso, em certas ocasiões intratável, em certas ocasiões terno, permanentemente solitário no interior da alma: uma espécie de árabe. A infância não me visitava, a idade adulta não me visitava. (…). Custava-me não ir escrever mais, faltava ainda tanto para completar o mundo que decidira tecer, porém o vazio absoluto protegia-me do desespero e limitava-me a flutuar na minha incapacidade física, sem grandes desejos, sem grandes angústias, enquanto me lavavam o rabo de pobre bebé serôdio, desprovido de espaço para piedade de si mesmo. E depois durante meses e meses, na melhor das hipótese, o calvário da radioterapia, da quimioterapia, de uma convalescença (convalescença?) interminável. (…).

E agora? Não preciso de esferográfica para compor a crónica, o dedo basta. Hoje, 16 de Julho de 2010, às onze e cinquenta e seis da manhã, termino isto. Um dia sujo como os de março de há três anos e tal. Não uso fraldas. Engordei. Posso comer pela minha mão, sou mais ou menos quem fui antes de me transformar em trapo. Mais ou menos o tanas. Oiço um saxofone no prédio em frente, que hesita e recomeça. Ando às voltas com um livro, sem algália. Mas não esqueças o vazio, António, nunca esqueças o vazio: continua a tentar enchê-lo devagar
".

Para além do texto sublime, o que me toca mais de perto nas palavras de Lobo Antunes? Não o sentimento da "imensa dor humana" (Camilo Pessanha) porque penso que a sua realidade nos é vedada antes de a experimentarmos, no mesmo sentido que a minha cunhada Clara dizia que não se conhece a dor antes de efectuarmos uma punção lombar e que, depois, todas as dores nos parecem suportáveis por comparação. Mas o sentimento de trapo, de despojo, que compreendo sem o ter sentido, a sensação de vazio, o desapego, o desagregar-se uma pessoa nas tais ilhazinhas sem possibilidade de se unirem. Esta ideia de desagregação e a insónia. E o silêncio que nenhuma voz externa pode quebrar.

E, principalmente, aquilo em que muito tenho pensado ultimamente: que esta doença nos afoga, que se avoluma como um monstro e toma de assalto todo o nosso castelo, todos os lugares, todos os recônditos, todos os esconderijos do nosso ser, e o temor de que a partir de certa altura seja tudo isso que seremos, o cancro, que o cancro se torne nós mesmos.

1 Comments:

Blogger Gubi said...

querido ZéPedro, obrigada pela partilha de mais esta pérola de ALA, também eu as saboreio há muito.. ao ler aqui o que eele escreve, antes de chegar aos teus comentários, a cada linha pensei sem esforço na Clara, ocorreram-me imagens vividas em close-up, desabafos, receios intuídos e partilhados... também sei que ela foi uma castelã valente, para me reportar à tua metáfora feliz -mas detenho a analogia aqui. Alento, mimos e beijinhos virtuais daqui até aí, H*

23 setembro, 2010 20:17  

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