sexta-feira, 19 de junho de 2009

António Alçada Baptista (29 de Janeiro de 1927 - 9 de Dezembro de 2008)

Na altura em que morreu, em Dezembro passado, encontrava-me numa fase difícil e não consegui alinhar quaisquer frases que revelassem a dor que a sua morte me causou. António Alçada Baptista era, em nossa casa, conhecido por António Alfredo. Não sei se o nome lhe agradava: provavelmente, trazia-lhe memórias duma Covilhã que amava mas de que conhecia os defeitos. O meu pai era afilhado do seu pai, o médico Luís Baptista (e de Nossa Senhora de Fátima – por isso, se chamava Luís Maria, Luís e Maria, ou Luiz Maria, como sempre assinou). A sua mãe, Natividade Alçada, era a melhor amiga da minha avó. A minha mãe lembrava-se dos serões passados em casa do tio Chico Cruz, nas Penhas da Saúde, em que António Alfredo mostrava o seu talento de conversador – que nunca lhe faltou, mesmo quando os seus romances ficavam aquém das expectativas. Era magnífico quando se tratava de recordar, de lembrar, de contar histórias – numa espécie de trabalho de memória que, hoje e cada vez mais, nos faz falta. Os seus melhores livro são os que contêm pedaços da sua vida: autobiografias, livros de memórias. Menos, talvez, quando fazia apelo à imaginação! Mas havia nele uma sabedoria e um cultura incomparáveis.

Ainda me faltam palavras para falar dele. Tenho a primeira edição volume I da Peregrinação Interior dedicada com palavras que nunca esquecerei: «Ao Zé Pedro, à sua juventude interessada, num abraço que vai dos pais para o filho.» Quando o encontrei pela primeira vez, na Moraes, no seu escritório da avenida 5 de Outubro, porque o meu Pai achava que eu gostava bastante de livros e me enviou ao seu amigo de infância que sabia dessas coisas, saí do seu escritório carregado de volumes que ainda tenho: um deles, a célebre publicação daquela editora sobre o casamento. Recomendou-me que não lesse Marx: que lesse, em vez disso, alguns comentários sobre O Capital. Tinha razão: naquela altura, teria sido incapaz de o digerir.

Alçada Baptista era um sábio, no mais estrito sentido da palavra, no sentido que nos vem dos gregos e, em particular, de Sócrates. Mais tarde, namorei com uma sobrinha sua, a Manicha, prima de Luís Nobre Guedes (Alçada Baptista era casado com Maria José Nobre Guedes), e, por isso, conheci-o um pouco mais. Uma das suas filhas, a Rita, casou com Henrique Moller, meu primo afastado, filho da prima Ana Maria (era assim que se dizia na altura), irmã da célebre Minhana, Maria Alexandra Ranito de Almeida Eusébio, fundadora e directora da escola Avé-Maria, ambas primas direitas da minha avó pelo lado Ranito. A Inês Alçada Baptista casou com o Zé de Almeida Eusébio, cujo pai, era também irmão da Minhana e, consequentemente, primo da minha avó.

Concordo com Vasco Pulido Valente, que o conheceu bem melhor do que eu, quando diz que Alçada Baptista teria aspirado a mais: a mais do que tranformar-se numa espécie de consciência moral do regime democrático. Ele considerava-se como o homem capaz de levar a Igreja Católica e o Estado Novo para fora dos caminhos estreitos seguidos por políticos cristãos e beatos, como Salazar e Cerejeira. Daí a sua mais que estranha defesa de, e adesão a, Marcelo Caetano, condensadas nas célebres «Conversas com Marcelo Caetano», publicadas, se não estou em erro, em 1973, um ano antes da queda do regime – que muita gente nunca lhe perdoou, e com alguma razão. Nestas coisas do mundo, enganava-se com frequência. Nas coisas de Deus e da razão, muito menos! Mais tarde, o seu apoio a Mário Soares foi claro: era, depois de Sá Carneiro, e exceptuando Freitas do Amaral a quem sempre, penso, se manteve fiel, o único homem do novo regime em que, por razões de comunhão intelectual, podia confiar. Eram da mesma geração, pensavam da mesma maneira, tinham lido os mesmo autores e tinham, ambos, a mesma reverência diante da cultura literária que começava a escapar a todo o mundo. Gente diferente - longe das características da tecnocracia reinante, ainda hoje incarnada em Cavaco Silva. Gosto deles porque, se bem que separado por uma geração, é desse mundo, que já não existe, que faço parte. E, com João Bénard da Costa, que também morreu há poucas semanas, é mesmo esse mundo que desaparece, passo a passo, devagarinho, sem ninguém se preocupar demasiado, excepto quando se trata de escrever os necessários obituários.