Duas estátuas
A estátua de Pedro o Grande, em São Petersburgo, é uma das mais belas estátuas equestres do mundo. Obra do escultor francês Falconet, encomenda da grande Catarina, Imperatriz de todas as Rússias, e por ela inaugurada em 1782, a estátua domina a Praça dos Dezembristas, esses nobres idealistas que tentaram instaurar uma monarquia constitucional por ocasião da subida ao trono de Nicolau I, que sucedia ao seu irmão Alexandre I, o vencedor de Napoleão (a última parte do Guerra e Paz de Tolstoi refere-se a esta revolta). A estátua inspirou Puchkine, o criador da própria língua russa, o seu primeiro grande escritor, extraordinário poeta, prosador notável, que, no seu célebre poema O Cavaleiro de Bronze, reflecte sobre o destino europeu do seu país ao mesmo tempo que afirma o seu amor à cidade de São Petersburgo. Este destino europeu foi construído à força por Pedro – quase como se o tivesse modelado com as suas próprias mãos. Pedro era um gigante. As suas reformas ousadas, a verdadeira revolução que impôs com a força da sua personalidade e a violência dos seus propósitos e das suas acções, afastaram a Rússia da Ásia (e de Moscovo, cidade que detestava) e arrimaram-na à Europa. Durante os dois séculos seguintes, até à Revolução de Outubro, a tensão entre a Rússia civilizada, europeia, residente em São Petersburgo, e a Rússia do regime patrimonial, centrada em Moscovo, foi uma constante da vida política.
Claro que houve reacções – as reacções dos sectores mais conservadores da Rússia czarista e ortodoxa, os boiardos de longas barbas e vestidos de grosseiras túnicas de cafetã. Pedro obrigou-os a rapar as barbas e a vestirem-se como ocidentais, com cabeleiras polvilhadas e maquilhagem. Não era um santo mas um visionário, indiferente ao custo humano dos seus desejos. A construção da nova Rússia, saída directamente do espírito do seu chefe, ou a construção de São Petersburgo, por ele arquitectada, eram obras desmedidas. A vida humana não tinha para si qualquer valor. Só nas obras de São Petersburgo, estima-se que tenham morrido mais de 250.000 servos.
A estátua impressiona pela sua leveza, pelo extraordinário sentido de movimento que transmite. Assenta num bloco de granito de aproximadamente 660 toneladas, doze metros de altura e trinta metros de circunferência. Para a transportar por um percurso de treze quilómetros, foi necessário o trabalho de mais de mil homens durante dezoito meses. Há que confessar que, a seu lado, mesmo outras de grande prestígio, parecem pesadas e artificiais. Quase me atreveria a falar da nossa estátua de D. José, no Terreiro do Paço, da autoria de Machado de Castro, mas isso seria claramente antipatriótico. Há, no entanto, claras afinidades, ressalvadas as proporções, entre a obra desmesurada de Pedro o Grande no estuário do Neva e a reconstrução de Lisboa pelo Marquês de Pombal: a mesma inspiração iluminista, o mesmo conceito de racionalidade na distribuição do espaço, a mesma exigência de uniformidade.
Em contrapartida, a estátua de Alexandre III, da autoria do príncipe P.N. Trubetskoy, é apenas um denso, robusto, compacto bloco de pedra assente no solo, sem nenhuma beleza ou graça. Os habitantes da antiga capital russa não se deixaram enganar. Chamavam-lhe O Hipopótamo. E diziam os seguintes e deliciosos versos:
Nesta praça está uma cómoda.
Sobre a cómoda, um hipopótamo;
Sobre o hipopótamo, um idiota.
Esta estátua foi sempre criticada, a ponto der se poder desconfiar das intenções do seu autor. O irmão do czar dizia que se tratava de uma caricatura. Logo após a revolução de Outubro, os bolcheviques deixaram-na no seu lugar, à laia de recordação severa do antigo regime. Em 1937, Staline mandou-a para uma arrecadação e foi apenas em 1994 que a estátua voltou às ruas de São Petersburgo, encontrando-se agora ironicamente em frente do Museu Lenine – dois autocratas reunidos nas suas representações simbólicas. (É certamente por causa desta história atribulada que não consegui descobrir na internet uma fotografia moderna da estátua).
É estranho – um grande sorriso do destino – que Alexandre III tenha sido representado a cavalo porque ele tinha medo de cavalos e detestava montar. Aliás, no final da sua vida (morreu aos 49 anos com problemas de fígado motivados pelo seu gosto exagerado da bebida – principalmente cognac, ao que parece), gigante de 1 metro e noventa e gordíssimo, já era quase impossível encontrar um cavalo que suportasse o seu peso.
Alexandre III foi o penúltimo czar, pai do célebre Nicolau II, o último dos Romanov, assassinado pelos bolcheviques, com toda a sua família, em Ekaterimburgo, na madrugada de 16 para 17 de Julho de 1918. Alexandre III, se bem que impenitente autocrata, ainda era um homem capaz; o filho era, nas suas próprias palavras, "um asno", para além de "maricas" – no sentido, não de homossexual (ele nem devia saber o que isso era) mas de, como se dizia pudicamente na altura, "efeminado". O Pai chamava-lhe "fifille".
Não é possível duvidar da incompetência do último czar. Nicolau II ("Nicky") era indeciso, estúpido e inculto mas trabalhador esforçado e homem bem-parecido, se bem que baixo (1 metro e setenta) e de porte feminino. Teria dado um excelente monarca constitucional. O problema é que pretendia manter a tradição da autocracia. Assim, a Rússia de antes da revolução viu-se confrontada com um problema para o qual não havia solução: um czar inapto mas absolutamente determinado a exercer o governo do país, a governar, ou administrar, em vez de simplesmente reinar. Além disso, para o czar, governar era tratar da intendência. Preocupava-se com os orçamentos das escolas de província ou com as carreiras de funcionários públicos mas quando um dos seus poucos ministros capazes tentava despertar a sua atenção para importantes assuntos políticos desviava rapidamente a conversa e falava do tempo. O drama da Rússia foi esse: quando seria necessário um homem capaz de compreender a necessidade de liberalização do Estado e do Governo – incentivando uma sociedade que dava tímidos sinais de modernidade – os dois últimos czares eram convictos autocratas e impenitentes conservadores, e o último era um incapaz.
Os que ainda hoje pretendem que a revolução era evitável (o exemplo típico é Hélène Carrére d'Encausse, secretária perpétua da Academia Francesa e especialista em assuntos russos, autora de biografias de Nicolau II e de Lenine) e que o regime teria evoluído no sentido de uma monarquia liberal e constitucional, como acontecera, mas pelo menos um século antes, com os restantes regimes europeus, esquecem este facto. É claro que as consequências da Revolução bolchevista foram desastrosas. Mas qualquer observador imparcial sabe que o regime czarista se tinha entrincheirado numa posição, da qual, por meios pacíficos, não havia saída. A violência foi o efeito inevitável da alarvidade e teimosia dos últimos czares. A estátua de Alexandre III é apenas um exemplo dessa incapacidade de encarar a realidade.
(O conteúdo desta entrada baseia-se em dois livros estupendos de Orland Figes: A People's Tragedy, sobre a Revolução de 1917, mas cobrindo o período 1891-1924; e Natasha's Dance, sobre a história cultural da Rússia. Por sua vez, a última obra de Figes, The Whisperers - Private Life in Stalin's Russia, é uma investigação perturbante sobre as famílias de homens e mulheres perseguidos pelo regime: as mentiras que eram obrigadas a contar, o engano em que viviam, a dor e sofrimento duma vida escondida. Lê-se como um grande romance. Extraordinário).
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