Duas estátuas

Claro que houve reacções – as reacções dos sectores mais conservadores da Rússia czarista e ortodoxa, os boiardos de longas barbas e vestidos de grosseiras túnicas de cafetã. Pedro obrigou-os a rapar as barbas e a vestirem-se como ocidentais, com cabeleiras polvilhadas e maquilhagem. Não era um santo mas um visionário, indiferente ao custo humano dos seus desejos. A construção da nova Rússia, saída directamente do espírito do seu chefe, ou a construção de São Petersburgo, por ele arquitectada, eram obras desmedidas. A vida humana não tinha para si qualquer valor. Só nas obras de São Petersburgo, estima-se que tenham morrido mais de 250.000 servos.

Em contrapartida, a estátua de Alexandre III, da autoria do príncipe P.N. Trubetskoy, é apenas um denso, robusto, compacto bloco de pedra assente no solo, sem nenhuma beleza ou graça. Os habitantes da antiga capital russa não se deixaram enganar. Chamavam-lhe O Hipopótamo. E diziam os seguintes e deliciosos versos:
Nesta praça está uma cómoda.
Sobre a cómoda, um hipopótamo;
Sobre o hipopótamo, um idiota.

É estranho – um grande sorriso do destino – que Alexandre III tenha sido representado a cavalo porque ele tinha medo de cavalos e detestava montar. Aliás, no final da sua vida (morreu aos 49 anos com problemas de fígado motivados pelo seu gosto exagerado da bebida – principalmente cognac, ao que parece), gigante de 1 metro e noventa e gordíssimo, já era quase impossível encontrar um cavalo que suportasse o seu peso.
Alexandre III foi o penúltimo czar, pai do célebre Nicolau II, o último dos Romanov, assassinado pelos bolcheviques, com toda a sua família, em Ekaterimburgo, na madrugada de 16 para 17 de Julho de 1918. Alexandre III, se bem que impenitente autocrata, ainda era um homem capaz; o filho era, nas suas próprias palavras, "um asno", para além de "maricas" – no sentido, não de homossexual (ele nem devia saber o que isso era) mas de, como se dizia pudicamente na altura, "efeminado". O Pai chamava-lhe "fifille".
Não é possível duvidar da incompetência do último czar. Nicolau II ("Nicky") era indeciso, estúpido e inculto mas trabalhador esforçado e homem bem-parecido, se bem que baixo (1 metro e setenta) e de porte feminino. Teria dado um excelente monarca constitucional. O problema é que pretendia manter a tradição da autocracia. Assim, a Rússia de antes da revolução viu-se confrontada com um problema para o qual não havia solução: um czar inapto mas absolutamente determinado a exercer o governo do país, a governar, ou administrar, em vez de simplesmente reinar. Além disso, para o czar, governar era tratar da intendência. Preocupava-se com os orçamentos das escolas de província ou com as carreiras de funcionários públicos mas quando um dos seus poucos ministros capazes tentava despertar a sua atenção para importantes assuntos políticos desviava rapidamente a conversa e falava do tempo. O drama da Rússia foi esse: quando seria necessário um homem capaz de compreender a necessidade de liberalização do Estado e do Governo – incentivando uma sociedade que dava tímidos sinais de modernidade – os dois últimos czares eram convictos autocratas e impenitentes conservadores, e o último era um incapaz.
Os que ainda hoje pretendem que a revolução era evitável (o exemplo típico é Hélène Carrére d'Encausse, secretária perpétua da Academia Francesa e especialista em assuntos russos, autora de biografias de Nicolau II e de Lenine) e que o regime teria evoluído no sentido de uma monarquia liberal e constitucional, como acontecera, mas pelo menos um século antes, com os restantes regimes europeus, esquecem este facto. É claro que as consequências da Revolução bolchevista foram desastrosas. Mas qualquer observador imparcial sabe que o regime czarista se tinha entrincheirado numa posição, da qual, por meios pacíficos, não havia saída. A violência foi o efeito inevitável da alarvidade e teimosia dos últimos czares. A estátua de Alexandre III é apenas um exemplo dessa incapacidade de encarar a realidade.
(O conteúdo desta entrada baseia-se em dois livros estupendos de Orland Figes: A People's Tragedy, sobre a Revolução de 1917, mas cobrindo o período 1891-1924; e Natasha's Dance, sobre a história cultural da Rússia. Por sua vez, a última obra de Figes, The Whisperers - Private Life in Stalin's Russia, é uma investigação perturbante sobre as famílias de homens e mulheres perseguidos pelo regime: as mentiras que eram obrigadas a contar, o engano em que viviam, a dor e sofrimento duma vida escondida. Lê-se como um grande romance. Extraordinário).
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