Meu doce torrão lusitano
Julgo que regressar a Portugal deve ser assim como deixar de comer mostarda de Dijon e voltar à nossa Savora. Um amigo da minha filha e do meu genro, que deixou Bruxelas há poucas semanas, mandou-lhes uma carta com as suas primeiras impressões. Transcrevo-a com a sua autorização mas sem o identificar porque, no caso contrário, e segundo ele, ainda se arriscava a ir ao programa do (Manuel Luís) Goucha para justificar algumas afirmações que faz e dispor dos 15 minutos de fama a que todo o português tem direito (nem que seja, acresscento eu, a vociferar «linchem-na, linchem-na» numa multidão filmada pela televisão no exercício do seu dever de informar).
Eis a mensagem:
«Aproveito o entre feriados para dar algumas notícias (não é o prometido diário, mas apenas alguns comentários sobre como é regressar ao nosso belo Portugal).
É claro que é bom (sobretudo nos primeiros dias), mas depois a coisa arrefece, perde-se o vapor das saudades e nem os 33º ajudam.
Primeiro conselho: evitar Lisboa. Parece óbvio, mas mesmo assim vou tentar ser claro: é importante evitar locais onde muitos portugueses se juntam. Assim, Lisboa é ponto negro a evitar. E porquê, perguntam vocês? Como já sabem temos a sorte (?) de viver a 10m a pé do Jean Monnet (não do próprio mas do edifício), onde passo longas horas dos meus dias (com uma bela vista sobre o castelo, a baixa e a colina do bairro alto, única coisa boa que consigo encontrar neste sítio para além do ar condicionado). Num dos percursos pedestres diários, de ida e volta, este vosso amigo ia sendo atropelado por várias vezes! "Claro, atravessas à papo-seco, fora da passadeira e com sinal vermelho!", exultam vocês. Errado! É verdade que qualquer idoso português, com uma bengala ou graves dificuldades de locomoção, atravessa assim qualquer estrada e em diagonal para demorar mais tempo. Mas eu, parvo que nem um estrangeirado, atravesso sempre nas passadeiras e mesmo assim (talvez por ter esse estranho comportamento!) arrisco-me a levar com um carro nos costados. Conduzir e andar a pé em Lisboa é o que há de mais parecido com a roleta russa.
A cidade é bonita, a luz fantástica, mas isso só serve para nos ajudar a evitar os cocozinhos que habitam os passeios da bela cidade (e são muitos cocós por metro quadrado).
Também já fui alvo da célebre modalidade do lançamento da escarreta, que se fosse modalidade olímpica seria ganha por um tuga, sem dúvida alguma. E pensam que foi durante um jogo de futebol com ânimos mais exaltados depois de ter fraturado a tíbia a um adversário? Nada disso! Foi num desses passeios onde um senhor se encontrava tranquilamente encostado à porta de um prédio, provavelmente a dar ao petardo a consistência necessária para ultrapassar os 15 metros.
Verdade seja dita, em qualquer destes quase-atropelamentos e do ataque à escarreta, a mão no ar e o pedido de desculpa serviram de alívio de consciência aos idiotas.
Conclusão: sabemos que fazemos asneiras mas mesmo assim continuamos a fazê-las, porque ser javardo (ler em múltiplos sentidos) compensa.
Segundo conselho: isto é o paradigma do desrespeito, da impunidade e do caos. Se muitas razões houvesse para (nos) irmos embora (proximamente), chegar, ver e escarnecer dar-nos-ia muitas mais. Uns amigos com quem jantámos esta semana contaram que na fila de um supermercado, depois de uma outra caixa ter sido aberta e a senhora ter dito "podem passar para aqui, mas por ordem", só não morreram pessoas esmagadas por sorte, tal foi a fúria para ser o primeiro. Em Portugal a palavra ordem tem sempre o prefixo "des".
Fica sempre bem dizer que quem vem de fora tem a mania de só ver o que é mau e não o que está bem. Devo estar a ficar cada vez mais míope. Portugal não é mau, é muito mau.
Mas tirando isto tudo está óptimo.»
Pois é! Tenho a impressão de que o sentido da palavra «saudade» mudou singularmente nestes últimos anos. Dantes era a nostalgia de estar longe da nossa terra; agora é a doce lembrança dos momentos que passámos fora dela!
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