sexta-feira, 28 de março de 2008

Só para dizer que estou vivo e leio

Um romance formidável sobre o qual espero dizer muito mais coisas mais tarde. Um professor suíço-alemão de línguas antigas (as chamadas línguas mortas mortas, latim, grego, hebraico!), solitário e enfadonho, descobre numa livraria espanhola de Berna um livro dum escritor português e decide, num repente, partir para Lisboa à procura desse tal Amadeu Inácio de Almeida Prado, escritor, médico, resistente à ditadura, cujas frases lhe parecem fotografar a sua própria vida e, ao mesmo tempo, lhe espalham uma esperança há muito posta de lado. Quando, há alguns meses, li o quatrième de couverture, convenci-me de que se tratava dum mero pastiche de Fernando Pessoa e do Livro do Desassossego. E não o comprei. Vi-o agora, na edição de bolso, e como quem não quer a coisa, barato, acessível, trouxe-o para casa. Em boa hora o fiz. Trata-se de um romance profundamente original em que as relações entre o que resta de vidas incompletas, com anos para viver mas sem nada que nos leve a desejá-los, e a morte que, nessas condições, se quer próxima mais do que longínqua, são tratadas duma forma profundamente inteligente e sensível. As longas transcrições do livro de Prado são surpreendentes: obviamente, fazem lembrar Fernando Pessoa mas mais como uma glosa de temas que se encontram na sua prosa e poesia do que como cópias ou imitações. As suas descrições de Lisboa têm, por vezes, algo de artificial e irrita-nos particularmente a utilização dos nossos nomes (por exemplo, entre nós, uma mulher que se chama Maria João nunca é conhecida por Maria). Este desencanto é particularmente sentido quando, ao nome estranho de Estefânia Espinhosa, é associada uma poesia e um encanto que nenhum português compreenderá (a ponto de me perguntar se o autor não quer divertir-se um pouco à custa dos poucos portugueses que terão a oportunidade de lê-lo). Mas o livro é esplêndido e apenas me pergunto por que não foi ainda traduzido.

Daniel Mendelsohn vai, numa viagem que o leva longe, no tempo e no espaço, à procura de seis membros da sua família, o irmão, a cunhada, e as quatro sobrinhas do seu avô, que morreram no Holocausto. O que dá força especial a este livro é a recusa de diluir o destino dessas seis pessoas no dos seis milhões das vítimas dos nazis. Por isso, a sua reacção a uma vista a Auschwitz é negativa: o sofrimento atestado, por dentes, cabelos, objectos pessoais diversos, de milhões de judeus parece-lhe calar os gritos de dor de cada indivíduo morto ou torturado. É uma ideia que me é cara: sempre considerei que este tipo de massacre só são imagináveis porque somos incapazes, a partir de dez ou quinze pessoas, de dar caras diferentes, corpos diferentes, às pessoas cuja morte imaginamos. Para além desse ou doutro número parecido, todas as caras são iguais, todos os corpos se assemelham, a individualidade perde-se, e é isso que permite aos carrascos, mas a nós também, testemunhas de acusação, encarar, sem tremer, sem cair, sem vomitar, mantendo o domínio do nosso corpo e da nossa alma, e guardando alguma distância emocional, o horror absoluto que foi o destino dessas vítimas. As pessoas concretas perdem-se nas estatísticas. O que é extraordinário nesta busca é essa incessante tentativa de descobrir o que aconteceu a cada um dos seis membros dessa família, àqueles sujeitos particulares (um homem, uma mulher, quatro filhas, que amaram, riram, desejaram, choraram, discutiram, se zangaram entre si e se reconciliaram depois, como acontece com nós todos), em suma, a seis pessoas com as suas qualidades, defeitos e manias, lágrimas e sorrisos, a sua individualidade, em suma. Mendelsohn, acompanhado por vezes dos seus irmãos e, principalmente, de Mathew, o fotógrafo, desloca-se à Austrália, a Israel, à Suécia, em busca desses elementos da vida ordinária que podem dar vida às fotografias familiares. O livro é, ainda, uma homenagem ao seu avô, cuja fotografia, com a sua forma de vestir rigorosa e um pouco désuète, aparece em destaque na capa da edição francesa. A ajudar a busca do autor, encontram-se alguns comentários particularmente relevantes sobre as leituras talmúdicas do início da Bíblia hebraica: a história da expulsão do Paraíso, a história de Caim e Abel, a história de Noé, a história de Abraão... Raramente, uma obra sobre o Holocausto terá adquirido este carácter ao mesmo tempo tão profundamente pessoal e colectivo.

quinta-feira, 20 de março de 2008

Parada da vergonha

Porque é que os políticos americanos que enganam as suas mulheres sentem a necessidade de as humilharem ainda mais obrigando-as a assistir as seus públicos pedidos de desculpa? Mas o melhor comentário a estas práticas encontra-se aqui, neste video retirado do programa de Jon Stewart na CNN e que não consegui transferir para o meu blogue:
http://zerodeconduta.blogs.sapo.pt/579070.html

terça-feira, 18 de março de 2008

Angela Merkel no Parlamento Israelita

Pela primeira vez desde a criação do Estado de Israel, um chanceler alemão foi recebido no Knesset, o Parlamento Israelita. Agradecendo, em hebreu, essa honra, Angela Merkel disse depois, em alemão, palavras que devem ser meditadas. «A nós, Alemães, a Shoah enche-nos de vergonha. Inclino-me diante das vítimas, dos sobreviventes e de todos aqueles que os ajudaram a sobreviver. Alemães e Israelitas permanecem, e permanecerão sempre, ligados de uma maneira especial pela memória da Shoah.» Não é preciso concordar com a política israelita para saudar estas palavras. O que é lamentável é que um povo que sofreu o que sofreu o povo judeu seja agora incapaz de compreender o sentimento de humilhação que a sua política inflige a outro povo - o povo palestiniano. E, neste sentido, Merkel, para além de ter reafirmado o apoio histórico da Alemanha à existência do Estado de Israel, bem podia ter dirigido algumas críticas ou, para lhe permitir exprimir-se com delicadeza diante do Knesset, alguns avisos amigos aos seus hóspedes no que respeita às suas relações com os restantes povos do Médio-Oriente.

segunda-feira, 10 de março de 2008

Viva Zapatero

Esta imagem está datada porque se refere às eleições de 2004 mas uma Espanha mais moderna, capaz de se adaptar à realidade das suas diferentes regiões e de se libertar da influência pesada da Igreja Católica – este foi o balanço de José Luís Zapatero que, quatro anos depois, ontem, 9 de Março de 2008, os espanhóis ratificaram contra o sucessor de Aznar, Mariano Rajoy. Nem tudo foram rosas: a ETA não deu tréguas e o Governo não conseguiu resolver o problema do terrorismo basco. (Mas os espanhóis não acreditaram que a oposição conservadora fizesse melhor). Porém, Zapatero persistiu em defender o modelo de sociedade em que acreditava: a paridade homens/mulheres no Governo (sem, como eu digo sempre, nenhuma quebra na qualidade do trabalho), a legalização do casamento e da adopção homossexuais (por muito que eu mantenha algumas dúvidas relativamente a esta última), a liberalização do divórcio, o reconhecimento das uniões de facto – isto corresponde a uma dada forma das relações inter individuais que devem caracterizar a sociedade moderna. A lei sobre a memória histórica, reconhecendo o contributo para a história da Espanha dos homens perseguidos por Franco e rejeitando, sem concessões, o passado fascista, foi outro dos marcos do primeiro mandato do primeiro-ministro socialista. Mais do que a situação económica, que se degradava lentamente, foi esta a mensagem de Zapatero: aquilo a que poderia chamar-se um certo entendimento da modernidade. Gostaria de não ser cáustico: mas não resisto a comparar as suas reformas com o que faz Sócrates em Portugal. Há, em Zapatero, uma sinceridade que falta entre nós. Uma coragem, um propósito! Contrariamente ao que pensam Sócrates e acólitos, isso é bastante, se a franqueza e a lealdade forem reconhecidas, para ganhar e voltar a ganhar eleições. Viva Zapatero...

sábado, 8 de março de 2008

O Ministro Santos Silva e a manifestação de professores

Que o país deva a liberdade a pessoas como Mário Soares, Salgado Zenha ou Manuel Alegre, é indubitável. Mas é também justo recordar que a deve também a pessoas como Humberto Delgado, assassinado por ordem de Salazar e símbolo dum movimento popular que quase derrubou o ditador ou, para citar gente menos conhecida, como Barbosa de Magalhães, professor de Direito, arbitrariamente demitido da Universidade. Podíamos ainda citar Norton de Matos, Piteira Santos, Cunha Leal e todo um enorme conjunto de pessoas, duma ou doutra orientação política, que, na altura certa, souberam dizer «não» (e, por razões familiares, gostaria de citar o meu sogro, Ângelo de Almeida Ribeiro, bastonário e organizador do Primeiro Congresso dos Advogados Portugueses, que constituiu, em 1973, um poderoso aviso à navegação destinado a mostrar a toda a gente a impossibilidade de os advogados portugueses desenvolverem o seu trabalho em situação de ditadura). E como pode falar-se da luta contra Salazar sem mencionar os comunistas: como pensá-la sem Álvaro Cunhal, José Tengarrinha, Aboim Inglês e outros? O que fizeram, ou quiseram fazer, depois do 25 de Abril, não pode ocultar essa realidade. Em suma, ninguém, nenhum partido ou organização, tem o monopólio da luta contra o fascismo e, depois do 25 de Abril, contra o comunismo (Sá-Carneiro e Ramalho Eanes, que nem se entendiam, podiam ser facilmente citados neste último contexto).

Agora, o que espanta é que o Ministro Santos Silva (que sempre me pareceu, mas deve ser erro de perspectiva, pessoa inteligente) venha falar do combate histórico dos socialistas a propósito da manifestação de hoje dos professores portugueses. E ainda menos se aceita que venha dizer que tal gente não sabe distinguir entre Salazar e os democratas. Porque o sentido da vida e da obra de Soares, Zenha e Alegre é precisamente o de permitir que as pessoas manifestem a sua opinião mesmo quando essa opinião é contrária à do Governo ou de ministros incomodados sem correrem o risco de serem apelidados de anti-democráticos, tal como antigamente qualquer pessoa que se protestasse contra Salazar era catalogado como comunista e, durante o PREC, quem discordasse do Partido Comunista era inevitavelmente considerado como fascista.

Com toda a sinceridade (e bastante pena por as palavras terem sido ditas por Santos Silva), acho que quem não compreende o sentido da luta dos socialistas históricos é este ministro socialista.

quinta-feira, 6 de março de 2008

Histórias do meu irmão

O meu irmão João, com todos os seus defeitos, e muitos eram, tinha piada. Uma das suas histórias mais engraçadas tem a ver com uma vez em que, em 2004, se dirigiu ao BCP, onde devia algum dinheiro, e pediu uma certidão destinada a provar, segundo ele, que, numa dada data, a sua conta apresentava saldo suficiente para pagar um cheque que tinha sido devolvido. O banco prontificou-se a passar a dita certidão (embora o tivessem prevenido de que levaria algum tempo, medido em semanas, o que é difícil de compreender porque se tratava apenas de tirar uma fotocópia dum extracto) mas o empregado acrescentou que um documento desse tipo custaria mais de 100 euros. O João virou-se para ele e, com calma (uma calma de que ele era capaz e eu nunca), perguntou-lhe onde estava afixada a lista de preços e comissões que os bancos, como qualquer estabelecimento comercial, devia ter visível e à disposição dos clientes. O empregado indicou-lhe a vitrina e o João lá foi confirmar o montante pedido. Para azar do Banco, a tabela colada no vidro datava de 2002. O João voltou para o seu lugar e perguntou ao senhor que o atendia se conhecia o número de telefone da GNR das Caldas. Sem esperar, como uma das personagens de Astérix, que o céu lhe fosse cair em cima da cabeça, o homem deu-lhe o número que, diante dele, o João ligou, dizendo em voz alta que queria denunciar uma situação de falta de afixação de preços num estabelecimento comercial. De início, segundo contava, o agente que lhe atendeu a chamada adoptou um ar enfastiado, convencido de que se tratava duma das frequentes queixas deste tipo, dirigidas a pastelarias, cafés, supermercados e mercearias. Foi só quando o João lhe explicou que a queixa tinha a ver com um banco que o homem se mostrou interessado: em boa verdade, parecia, mesmo do outro lado do telefone, ter saltado da cadeira. Seria talvez a primeira vez que um banco era denunciado! Passados menos de dez minutos, uma brigada passou pelo BCP, Caldas da Rainha, para (nos seus termos) processar a ocorrência. O banco foi, mais tarde, condenado a uma multa de mais de 5000 euros, mesmo depois de uma sua advogada ter contactado o João para que ele retirasse a queixa. Só que, como ele explicou, não se tratava de queixa mas apenas da denúncia duma situação ilegal... O banco ficou furioso e nós rimos à gargalhada.

quarta-feira, 5 de março de 2008

John Burnside e Jorge Volpi - A diferença entre ser grande e simplesmente médio

Acabei de ler Le Temps des Cendres, um livro de Jorge Volpi, escritor mexicano com predilecção por temas científicos, que será certamente traduzido em breve no nosso país. Neste romance, fala-se do fim da União Soviética e da ascensão ao poder da camarilha de liberais à outrance dirigida por Gaidar e, principalmente, Tchoubaïs, que aproveitaram as fraquezas de Yeltsin para conseguir acumular, para si e para os oligarcas que os apoiavam, fabulosas riquezas. Talvez por isso os russos se voltam hoje para Putin e os seus acólitos ou herdeiros e se declaram prestes a aceitar nova ditadura desde que a honra nacional seja salvaguarda. Mas, se o livro de Volpi nos explica algo sobre a decadência da União Soviética e sobre o tempo paralelo das fraudes e da loucura que se abateu sobre a América e Wall Street, na mesma altura do célebre filme com Michael Douglas, nessa espécie de selva onde todos se comiam uns aos outros por causa de uns graúdos tostões, a minha desilusão não foi menor. Não se trata verdadeiramente de literatura mas de uma espécie de jornalismo histórico e fictício: acumulam-se factos conhecidos, sobrepõem-se-lhes uns cenários imaginários e um enredo romântico, e distribui-se o resultado. Nada de censurável nisso – até eu gostaria de ganhar dinheiro dessa maneira – mas, desculpem, com toda a boa vontade do mundo, não se trata de literatura.

Se, pelo contrário, quiserem verdadeiros romances, leiam, como eu fiz duma assentada, com um prazer há muito inigualado, dois livros de John Burnside, autor escocês que, esses, provavalemente não encontrará editor em Portugal: Living Nowhere e The Devil’s Footprints. O primeiro, excepcional, fala-nos da desesperança e deixa-nos embasbacados diante da capacidade do autor de descrever a vida cinzenta e a violência (sem que nada disto seja contraditório) duma cidade industrial dos finais da década de setenta e a viagem da única das suas personagens que foge desse quotidiano pontuado de ácido e de morte; e o segundo é, eu diria, mais leve mas duma indescritível beleza, embora os temas sejam semelhantes: a viagem, o desaparecimento, o retorno, o repúdio do estranho e do estrangeiro. Um grande, grande escritor. Um grande poeta, também, ao que parece, e se é verdade que não conheço a sua poesia, não tenho dificuldade em acreditar que assim seja, tal a beleza das suas frases e a certeza das suas palavras. Só é pena que não seja melhor conhecido. Leiam-no...