Só para dizer que estou vivo e leio
Um romance formidável sobre o qual espero dizer muito mais coisas mais tarde. Um professor suíço-alemão de línguas antigas (as chamadas línguas mortas mortas, latim, grego, hebraico!), solitário e enfadonho, descobre numa livraria espanhola de Berna um livro dum escritor português e decide, num repente, partir para Lisboa à procura desse tal Amadeu Inácio de Almeida Prado, escritor, médico, resistente à ditadura, cujas frases lhe parecem fotografar a sua própria vida e, ao mesmo tempo, lhe espalham uma esperança há muito posta de lado. Quando, há alguns meses, li o quatrième de couverture, convenci-me de que se tratava dum mero pastiche de Fernando Pessoa e do Livro do Desassossego. E não o comprei. Vi-o agora, na edição de bolso, e como quem não quer a coisa, barato, acessível, trouxe-o para casa. Em boa hora o fiz. Trata-se de um romance profundamente original em que as relações entre o que resta de vidas incompletas, com anos para viver mas sem nada que nos leve a desejá-los, e a morte que, nessas condições, se quer próxima mais do que longínqua, são tratadas duma forma profundamente inteligente e sensível. As longas transcrições do livro de Prado são surpreendentes: obviamente, fazem lembrar Fernando Pessoa mas mais como uma glosa de temas que se encontram na sua prosa e poesia do que como cópias ou imitações. As suas descrições de Lisboa têm, por vezes, algo de artificial e irrita-nos particularmente a utilização dos nossos nomes (por exemplo, entre nós, uma mulher que se chama Maria João nunca é conhecida por Maria). Este desencanto é particularmente sentido quando, ao nome estranho de Estefânia Espinhosa, é associada uma poesia e um encanto que nenhum português compreenderá (a ponto de me perguntar se o autor não quer divertir-se um pouco à custa dos poucos portugueses que terão a oportunidade de lê-lo). Mas o livro é esplêndido e apenas me pergunto por que não foi ainda traduzido.
Daniel Mendelsohn vai, numa viagem que o leva longe, no tempo e no espaço, à procura de seis membros da sua família, o irmão, a cunhada, e as quatro sobrinhas do seu avô, que morreram no Holocausto. O que dá força especial a este livro é a recusa de diluir o destino dessas seis pessoas no dos seis milhões das vítimas dos nazis. Por isso, a sua reacção a uma vista a Auschwitz é negativa: o sofrimento atestado, por dentes, cabelos, objectos pessoais diversos, de milhões de judeus parece-lhe calar os gritos de dor de cada indivíduo morto ou torturado. É uma ideia que me é cara: sempre considerei que este tipo de massacre só são imagináveis porque somos incapazes, a partir de dez ou quinze pessoas, de dar caras diferentes, corpos diferentes, às pessoas cuja morte imaginamos. Para além desse ou doutro número parecido, todas as caras são iguais, todos os corpos se assemelham, a individualidade perde-se, e é isso que permite aos carrascos, mas a nós também, testemunhas de acusação, encarar, sem tremer, sem cair, sem vomitar, mantendo o domínio do nosso corpo e da nossa alma, e guardando alguma distância emocional, o horror absoluto que foi o destino dessas vítimas. As pessoas concretas perdem-se nas estatísticas. O que é extraordinário nesta busca é essa incessante tentativa de descobrir o que aconteceu a cada um dos seis membros dessa família, àqueles sujeitos particulares (um homem, uma mulher, quatro filhas, que amaram, riram, desejaram, choraram, discutiram, se zangaram entre si e se reconciliaram depois, como acontece com nós todos), em suma, a seis pessoas com as suas qualidades, defeitos e manias, lágrimas e sorrisos, a sua individualidade, em suma. Mendelsohn, acompanhado por vezes dos seus irmãos e, principalmente, de Mathew, o fotógrafo, desloca-se à Austrália, a Israel, à Suécia, em busca desses elementos da vida ordinária que podem dar vida às fotografias familiares. O livro é, ainda, uma homenagem ao seu avô, cuja fotografia, com a sua forma de vestir rigorosa e um pouco désuète, aparece em destaque na capa da edição francesa. A ajudar a busca do autor, encontram-se alguns comentários particularmente relevantes sobre as leituras talmúdicas do início da Bíblia hebraica: a história da expulsão do Paraíso, a história de Caim e Abel, a história de Noé, a história de Abraão... Raramente, uma obra sobre o Holocausto terá adquirido este carácter ao mesmo tempo tão profundamente pessoal e colectivo.