sexta-feira, 22 de dezembro de 2006

David Mourão-Ferreira (1927-1996)

Este blogue sempre se caracterizou pelo espaço importante dado à poesia e principalmente aos poetas portugueses. Nos últimos tempos, a sua orientação tem sido mais familiar, com acento em acontecimentos íntimos e quotidianos. Quando se aproxima o Natal – e o inevitável fecho para férias – é altura de retomar um pouco a tradição. E nada melhor que fazê-lo com David Mourão-Ferreira. Ainda por cima, uma amiga enviou-me há dias este poema, que eu pensava erradamente já ter aqui transcrito:


E POR VEZES

E por vezes as noites duram meses
E por vezes os meses oceanos
E por vezes os braços que apertamos
nunca mais são os mesmos E por vezes

encontramos de nós em poucos meses
o que a noite nos fez em muitos anos
E por vezes fingimos que lembramos
E por vezes lembramos que por vezes

ao tomarmos o gosto aos oceanos
só o sarro das noites não dos meses
lá no fundo dos copos encontramos

E por vezes sorrimos ou choramos
E por vezes por vezes ah por vezes
num segundo se envolam tantos anos.

(In A Matura Idade - 1966-1972)

Contudo, não penso que este poema seja o mais representativo de David Mourão-Ferreira. Há nele um jogo das palavras que quase se fica pelo jogo da inteligência. Mas normalmente, neste poeta, a forma é servida por emoção e sensualidade. Mourão Ferreira é um sábio: homem de cultura que se obriga a seguir os caminhos do amor e da viagem e guarda em relação às coisas sérias uma saudável distância. Por isso, as frases, mesmo complicadas, mesmo tortuosas, nunca reflectem meras pirotecnias verbais: há nos seus versos, e principalmente nos seus versos de amor, um apelo a um quotidiano visto à luz duma cultura que não necessita de se mostrar ou demonstrar. Para outros poetas menores, não há finalidade na forma; para Mourão Ferreira, não há forma sem objectivo. O belíssimo poema escolhido por Eugénio de Andrade para a sua Antologia Pessoa da Poesia Portuguesa parece-me, assim, mais adequado para exprimir a originalidade poética de David Mourão-Ferreira:

NOCTURNO

Eram, na rua, passos de mulher.
Era o meu coração que os soletrava.
Era, na jarra, além do malmequer,
espectral o espinho de uma rosa brava...

Era, no copo, além do gin, o gelo;
além do gelo, a roda de limão...
Era a mão de ninguém no meu cabelo.
Era a noite mais quente deste verão.

Era, no gira-discos, o «Martírio
de São Sebastião», de Debussy...
Era, na jarra, de repente, um lírio!
Era a certeza de ficar sem ti.

Era o ladrar dos cães na vizinhança.
Era, na sombra, um choro de criança...


O que há de extraordinário neste poema é a sobreposição de registos. As principais imagens são imagens com que todos deparamos na nossa vida: uma jarra com uma rosa ou um malmequer, o copo de gin com gelo e roda de limão, o gira-discos, a jarra com um lírio. E depois a música de Debussy dá entrada a imagens de um filme negro (cães que ladram, uma criança que chora) que sublinham a perda, a privação, o descaminho. E até a frase, precisamente porque é corriqueira «Era a noite mais quente deste Verão», surge como um chicotada a acordar-nos para a força do dia-a-dia.

Miguel Veiga escolheu, para uma antologia que preparou, um poema mais caracterizadamente erótico:

PRESÍDIO

Nem todo o corpo é carne... Não, nem todo.
Que dizer do pescoço, às vezes mármore,
às vezes linho, lago, tronco de árvore,
nuvem, ou ave, ao tacto sempre pouco...?

E o ventre, inconsistente como o lodo?...
E o morno gradeamento dos teus braços?
Não, meu amor... Nem todo o corpo é carne:
é também água, terra, vento, fogo...

É sobretudo sombra à despedida;
onda de pedra em cada reencontro;
no parque da memória o fugidio

vulto da Primavera em pleno Outono...
Nem só de carne é feito este presídio,
Pois no teu corpo existe o mundo todo.


Estes dois últimos poemas fazem parte de Infinito Pessoal ou A Arte de Amar (1959-1962) que considero ser um dos maiores livros de poesia publicado em Portugal no século XX. Não resisto a inserir aqui, também, a introdução. Ela exprime um certo equívoco entre o amor e a experiência poética - ou musical - do amor, que é outra das chaves da poesia de Mourão-Ferreira.

Como se de repente ao coração do Sol
as raízes da luz alguém as arrancasse...
Como se de repente as hélices do vento
arranhassem o ar, e o mar estivesse perto...
Como se de repente o Mundo entontecesse...

Foi tudo de repente e tudo ao mesmo tempo:
escuridão, rumor, frescura, movimento.

Mas de entre as espirais confusas quem sabia
se era de novo amor, se era só melodia.


Outra faceta importante da vida de David Mourão-Ferreira foi a sua colaboração com Amália. Ele foi, para ela, o poeta de Lisboa. Os seus fados Madrugada de Alfama, Nome de Rua e Maria Lisboa reinventam o fado popular. Outros, e principalmente Libertação ou Abandono (Fado Peniche) são mais claramente canções de intervenção (como se dizia na década de 70) embora se conte, certamente a brincar, que Amália sempre interpretou o último como se tratasse dum simples poema de amor, sem querer compreender (ou fingindo que não compreendia) que as palavras que lançava ao vento eram as palavras de um prisioneiro.

Com Alain Oulmain, músico francês que a pôs a cantar os nossos poetas (Camões, José Régio, Alexandre O’Neill, Manuel Alegre, Pedro Homem de Mello, tantos outros: os grandes fados de uma certa fase da vida de Amália são fados dum francês), David Mourão Ferreira deu ao fado de Amália um novo fulgor (na fotografia, Amália aparece acompanhada por ambos.) Nessa época, Amália começara a cantar o repertório tradicional de uma forma diferente «subordinando o ritmo regular da melodia ao sabor da dicção poética, com suspensões inesperadas e acrescentando ornamentos novos.» Ultrapassa assim todas as fronteiras e preconceitos culturais. Amália tem a arte de conjugar o que é urbano e rural, o que é popular e erudito através de uma voz de timbre único, cheia de emoção sensual e musical. É nessa altura da sua vida que canta os grandes poetas da língua portuguesa, dos trovadores a Camões, de Bocage aos poetas contemporâneos. Oulmain obriga os guitarristas de fado a aprender harmonias novas que não tinham nada a ver com o fado porque o fado é, diz Amália, pobre em harmonia. E Amália acrescentava: «O Alain nasceu no Dafundo, nasceu em Portugal, apesar de ser francês. Tem uma sensibilidade grande de artista, foi criado num certo ambiente. Depois, ouviu-me cantar, sentiu que a minha sensibilidade estava muito perto da sua. Deu-me a possibilidade de voar.»

Nem tudo serão elogios nesta crónica! Não gosto muito da obra em prosa de Mourão-Ferreira e Um Amor Feliz, que ganhou o prémio da Associação Portuguesa de Escritores em 1986, sempre me pareceu artificial.

Nos anos setenta, apresenta na televisão Imagens da Poesia Europeia e torna-se assim conhecido do grande público, com o seu inseparável cachimbo, numa altura em que ainda não era proibido fumar na televisão, embora o programa, incensado pelos críticos, nunca tenho obtido grande sucesso (nada que se compare, por exemplo, a Se Bem me Lembro, de Vitorino Nemésio.) A título de curiosidade, registe-se que, em grande maioria, os poemas apresentados eram lidos por Rosa Lobato de Faria (ou por Mourão-Ferreira). A sua carreira política foi breve: Secretário de Estado da Cultura nos primeiros governos de Mário Soares, de quem era amigo, e, mais tarde, director-adjunto do jornal O Dia, com Vitorino Nemésio como director.

Principais livros de poesia: Secreta Viagem (1954), Tempestade de Verão (1954, Prémio Delfim Guimarães), Os Quatro Cantos do Tempo (1958), In Memoriam Memoriae (1962), Infinito Pessoal ou A Arte de Amar (1962), Do Tempo ao Coração (1966), A Arte de Amar (1967, reunião de obras anteriores), Lira de Bolso (1969), Cancioneiro de Natal (1971, Prémio Nacional de Poesia), Matura Idade (1973), Sonetos do Cativo (1974), As Lições do Fogo (1976), Obra Poética (1980, inclui À Guitarra e À Viola e Órfico Ofício), Os Ramos e os Remos (1985). A Obra Poética 1948-1988 (publicada em 1988) inclui todos estas obras. Posteriormente, apenas publicou Música de Cama (1994, antologia erótica com um livro inédito).

Em suma, um dos nossos grandes poetas e, provavelmente, com Jorge de Sena, aquele em que a inteligência, a cultura e o saber melhor definem os contornos da poesia. Sugestão de (re)leitura para estas férias de Natal.

quinta-feira, 21 de dezembro de 2006

Trezzu e Clara

Este é o cartão que a Teresinha desenhou para a tia Clara. Que dizer? Apenas que as pessoas morrem mas ficam um pouco por cá, na nossa memória, a fazer parte do conjunto de afectos sem os quais nada somos. Faz-nos falta a Clara, perdemos o seu inimitável sentido de humor, a sua presença sólida, a constância da sua amizade. Mas há uma pequena parte dela que continua a viver, uma parte infelizmente muito pequena, que não chega, nem de longe, para nos satisfazer, mas mesmo assim um pedaço dela a que podemos recorrer nos dias de maior cansaço ou tristeza para falarmos outra vez, como nesses tempos felizes em que, como dizia o poeta, ninguém estava morto. Este cartão da Teresinha comoveu-me imenso principalmente porque significa que a imagem da Clara permance na sua sobrinha, que tinha apenas treze anos quando ela morreu. O que dá bem a ideia da pessoa que a Clara era. Neste ano que, para a minha família, foi ano de luto, esta certeza de que as pessoas ainda ficam connosco - sem esquecer as saudades, o degosto, as lágrimas - é reconfortante.

terça-feira, 19 de dezembro de 2006

Gente decente

Porque nem tudo é mau na Comissão, porque há pessoas decentes e simpáticas, aqui fica esta mensagem de Marta Cygan, que é chefe de gabinete adjunta da comissária responsável pela Política Regional, a senhora Hübner, e com quem frequentemente trabalho. Será necessário acrescentar que as suas palavras me deram enorme conforto num ano difícil? e que é para isso, para nos tratarmos bem, que estamos aqui - ou que devíamos estar aqui? Obrigado Marta.

Dear Jose Pedro,
Thank you very much for your e-mail and for your nice words. I am not sure if I manage to be polite enough in this difficult environment. At least I try and I have good intentions.
Your contribution is extremely important to me and it helped me a lot in difficult moments. I am sorry for all your difficult experiences last year and I hope there is a moment in life when things have to be only better and better. This certainly does not remedy certains losses but it can make a good starting point for the rest of your life adventure.
I wish you a calm Christmas and a New Year of Hope.
Very best regards
Marta


(Calm - Desenho em papel de Monica Yougel)

Ex-chefe

Esta é, talvez, a entrada mais desdenhosa deste blogue. Normalmente, não digo mal das pessoas com quem convivo. As minhas críticas dirigem-se a personagens que assumiram algum protagonismo, histórico ou actual: como Pinochet, por exemplo, nestes tempos recentes. Mas hoje, não consigo deixar de registar aqui que o homem que fingiu de meu chefe durante dois anos deixou de o ser. Não sei o que me reserva o destino: mas o destino destes últimos anos, felizmente, desaparece. Fica o nome, para que, mais tarde, não me escape (já que tenho tendência para esquecer as ofensas): Olivier Brunet. Um homem mesquinho: gente pequena, pouca gente... Parecido com a fotografia: sabujo e mauzinho. Agora, deixa de ser personagem na peça da minha vida. Afinal, 2006 não podia ser todo mau.

segunda-feira, 18 de dezembro de 2006

Bridge






Regresso às vitórias (até parece uma declaração do Paulo Bento!) com o Nuno, que voltou de férias na África do Sul, em plena forma. 64%. Magnífico. Ao contrário do Sporting e Benfica, quase campeões.

sexta-feira, 15 de dezembro de 2006

Prison Break



















Cá por casa, ficámos entusiasmados com esta série. Michael Scofield, interpretado por Wentworth Miller, assalta um banco para poder entrar na prisão onde o seu irmão aguarda a pena de morte, por um crime que não cometeu. No corpo de Michael as tatuagens representam os planos da prisão, que lhes permitirão escapar. Outros condenados juntam-se ao grupo e, durante vinte e um episódios, assistimos aos diversos sobressaltos do enredo. Muito suspense, ritmo infernal, alguma inverosimilhança mas dentro dos limites do aceitável: uma série que prende. A Trezzu, o Dico e eu vimo-la em doses de cavalo, à média de quase quatro episódios por dia, em separado por causa dos nossos diferentes horários. Estamos agora à espera da segunda série, que se estreou em Agosto nos Estados Unidos e deve chegar à Europa pela Primavera.

quinta-feira, 14 de dezembro de 2006

No ifs or buts

O título e o subtítulo do artigo na última edição do Economist a propósito da morte de Pinochet merecem ser realçados: «The passing of a tyran: No ifs or buts. Whatever the general did for the economy, he was a bad man». E a conclusão ainda mais: «Even if history bothers to remember that he privatised the pension system, that should not wipe away the memory of the torture, the “disappeared” and the bodies dumped at sea. His defenders — who include Britain's Lady Thatcher — really should know better». Comme quoi se pode ser de direita e decente. Fica a fotografia, tirada em Londres quando Pinochet se encontrava sob prisão domiciliária, para provar a ignomínia da baronesa.

O artigo encontra-se disponível aqui: http://www.economist.com/opinion/displaystory.cfm?story_id=8413038)

quarta-feira, 13 de dezembro de 2006

Neta






Mais um fotografia da Teresinha que comprova (como se fosse preciso) que continua linda de morrer. Enviada pela avó Teresa (obrigado) e tirada no fim-de-semana, em Paris. Ando cheio de saudades mas vamos estar juntos muito em breve.

terça-feira, 12 de dezembro de 2006

Bridge






Farto-me de jogar bridge mas, ou é dos parceiros ou de mim, parece-me que jogo cada vez pior.

segunda-feira, 11 de dezembro de 2006

Pinochet

Normalmente a pergunta é: «Onde te encontravas quando Kennedy morreu?» A ideia é que estes acontecimentos constituem marcos relevantes na vida de cada um de nós. Ora, se eu sei precisamente onde me encontrava quando Robert Kennedy foi assassinado – na casa da Rua Saraiva de Carvalho, onde vivemos depois de termos regressado a Lisboa, numa altura em que já frequentava o D. João de Castro – ignoro, pelo contrário, o que me aconteceu quando John Kennedy foi morto em Dallas – e é a John Kennedy que a pergunta normalmente se refere. É natural: nessa altura, em 1963, tinha apenas 8 anos. Vivíamos ainda na Madeira ou já em Cascais? Nem disso me lembro.

Mas recordo-me exactamente de onde estava, e do que fazia, quando soube da morte de Salvador Allende: na quinta dos pais duma namorada minha, em Rio Maior, e a sentar-me à mesa para começar o almoço. Presumo, por isso, que a notícia apenas tenha chegado a Portugal no dia seguinte ao do golpe: a 12 de Setembro de 1973. Era o tempo de antes do 25 de Abril. Tínhamos seguido a experiência chilena com a esperança dos que acreditavam que a liberdade também nos chegaria. A morte de Allende e o fim da democracia chilena deixaram-nos devastados. Em casa dessa minha namorada, foi-me servido o prato habitual duma direita que, na altura, nem sequer se envergonhava de apoiar ditaduras: que a intervenção se justificava pelo estado caótico a que Allende conduzira o país. Ordem, ordem, ordem! Pinochet, Salazar: mesmo combate.

Na altura, não conhecíamos Pinochet. Ele apareceu-nos pouco depois, com os traços desta fotografia. Mais tarde, depois de ter deixado o poder, gostava de se apresentar com outra imagem: avô rico e anafado, homem de prestígio e paladino da honra militar. Desapareceram os óculos escuros, desapareceu a farda, substituída por fatos escuros, com as calças a subirem bem acima da cintura e as gravatas cuidadosamente ajustadas. O ar demente foi substituído por um sorriso forçado. Rodeado de filhos, rodeado de netos... Um homem normal, em suma.

Mas um homem normal que mandou para a morte, logo nas primeiras semanas depois do golpe de Estado, pelo menos 1800 pessoas. E cujas vítimas, algumas delas atiradas para o mar de aviões a mais de 3.000 metros de altura, com os olhos vendados, e depois de torturadas (por métodos iguais aos que George Bush agora pretende aplicar aos que considera terroristas), não puderam sequer, na sua maioria, ser enterradas. Um homem normal que dizia que os bons marxistas eram os marxistas mortos...

Morreu antes de ser preso, antes de condenado. Até desta justiça simples escapou. As condições que prevalecem no Chile levam a que seja enterrado com honras militares mas a Presidente Bachelet não estará presente no seu funeral. Pinochet tem mais sorte do que os homens e mulheres que assassinou, cujos corpos se encontram no fundo do mar. Fica a breve e triste consolação de saber que morre como um carrasco, morre como um assassino: mesmo os que o acompanham não deixarão de reflectir nisso.

A Baronesa Thatcher diz que se encontra «greatly saddened» pela morte de Pinochet e ofereceu à família as suas «deepest condolences». Triste pela morte do torcionário, nem sequer tem tempo para uma breve palavra dirigida às vítimas. Um pouco de vergonha não lhe ficaria mal.