Aproveitei os dias em que estive em casa, com a cara um bocado inchada e algumas dores e, agora, algo deprimido por razões que não vem ao caso relatar, para ver algumas gravações em DVD de concertos de Leonard Bernstein. Não pude ainda comprar as Sinfonias de Mahler (um
coffret de 6 discos a 123 € – estou à espera de que o preço desça ou que uma alma caridosa mo ofereça) mas vi as suas interpretações de Brahms (Sinfonias e Concertos para piano, estes com Krystian Zimmerman). Lembro-me de aqui ter descrito Carlos Kleiber, outro maestro de quem gostava imenso, como um bailarino. Tento encontrar um qualificativo para Bernstein mas acabo a pensar que o seu génio é a versatilidade. Em Brahms, por exemplo, umas vezes (4ª Sinfonia) parece um general, mas um general que protege as suas tropas e que desenvolve com elas uma relação de profunda canaradagem; outras vezes (2ª Sinfonia), transmite-nos a imagem dum amante, preocupado com as mais pequenas reacções dos membros da orquestra, sorrindo para aprovar, levantando os olhos para salientar um ponto, desenhando com a mão uma melodia, marcando um ritmo, duma forma que nunca encontrei noutro maestro. Em todos os momentos, vê-se nele uma dádiva total – que o público e a orquestra admiram. São raros os casos em que é quase palpável uma espécie de amizade, de ternura, de comunhão, entre maestro, de um lado, e orquestra e público, do outro. E, com a Filarmónica de Viena, Bernstein é mais comedido nos gestos do que com outras formações, como que a sublinhar o seu respeito pela qualidade desta formação que, não me canso de o repetir, foi já considerada a melhor do mundo.
Para as pessoas da minha idade, Bernstein entrava-nos em casa, aos domingos à tarde, nos famosíssimos
Concertos para Jovens (
Young People’s Concerts), com a
New York Philharmonic, que dirigiu entre 1958 (ou 1959) e 1968 e com quem sempre manteve uma relação privilegiada. Estes concertos, estas aulas, estas lições, estes momentos de experiência musical, de prazer e de comunhão, que nunca eram monótonos, nunca aborrecidos, que a RTP transmitia, se não me engano aos domingos à tarde, eram formidáveis. A minha paixão pela música clássica começou aí. As obras musicais eram explicadas, certos aspectos da teoria da música eram clarificados, e tudo numa linguagem simples e acessível. Sobre a
Eroica, de Beethoven, dizia-nos ele que ela se baseava numa forma de trio – ou seja, a mesma forma das melodias da nossa infância. Seguia-se a audição dum andamento ou peça breve. Um regalo, que ainda hoje seguimos com admiração nas gravações esparsas a que, por vezes, temos acesso.
Nessa altura não o sabíamos – ou não o sabia eu – mas Bernstein foi talvez a mais importante figura da música clássica na segunda metade do século XX. Ele não foi apenas um dos maestros mais populares desse tempo (Karajan gozou também de inegável fama e prestígio embora fosse, para mim, uma personagem bastante menos simpática, com traços de personalidade autoritária, a lembrar o seu passado nazi, sempre a assomar) mas ainda compositor, autor, professor, conferencista e personalidade mediática. Principalmente, a sua actividade como compositor levou-o, seguindo ou invertendo o exemplo de Gershwin mas com outro tipo de talento, do recinto, na altura fechado a sete chaves, da música clássica e da ópera ao teatro musical e ao cinema, com sucessos tão conhecidos como
West Side Story (um dos melhores musicais produzido na Broadway e em Hollywood, e de que, entre parênteses, se deve preferir a versão musical original à versão mais clássica gravada pelo compositor com Kiri Te Kanawa, José Carreras – que Bernstein não considerava adequado para o papel de Tony – e Maryln Horne) e
On the Town. Diz-se que estas suas criações definiram uma nova forma de relação entre música clássica e música popular que, infelizmente, não tem tido continuadores (Pavarotti tentou fazê-lo mas não era um criador mas apenas, e já era imenso, um intérprete com uma voz dada pelos deuses, que só existem para as coisas belas. Lembro-me, a propósito, de um crítico italiano que dizia que a única prova irrefutável da existência de Deus era a pintura de Miguel Ângelo).
No
Curtis Institute, de Philadelphia, Bernstein estudou piano com Isabel Vengerova, direcção de orquestra com Fritz Reiner (de quem não gostava: e como poderia gostar dum maestro que praticamente não se mexia quando dirigia a
sua Orquestra de Chicago) e orquestração com Randall Thompson. Mas foi Serge Koussevitsky, o maestro russo exilado nos Estados Unidos, de quem se dizia que ensaiava diante do espelho para escolher os gestos mais expressivos, que foi o seu verdadeiro mentor. Durante algum tempo, foi o seu maestro assistente na Orquestra de Boston. Com ele partilhou a admiração por Sibelius e Shostakovich.
Como todos os grandes artistas, teve sorte. Em 1943, substituiu, à última hora, Bruno Walter num concerto que, retransmitido pela telefonia, foi alvo de críticas entusiastas. Mais tarde, em Itália, foi também chamado de urgência para dirigir Maria Callas na
Medea de Cherubini, no que é ainda hoje um memorável momento de ópera, dominado pela fúria furiosa do maestro e pela garra da soprano. Foi, aliás, o primeiro americano a dirigir uma ópera no
Scalla.
Deixou um número impressionante de gravações, que têm sido entretanto publicadas em conjuntos de discos a preços razoáveis. Nas suas gravações mais recentes, a lentidão dos tempos é impressionante. A Sinfonia No.2 de Sibelius, com a Filarmónica de Viena, que a maioria dos intérpretes despacha em 14 minutos, leva mais de 17 nesta última versão de Bernstein e não perde nem o seu carácter expressivo (principalmente no último movimento) nem a tensão.
Foi um intérprete privilegiado de Mahler
(a sua única gravação com a Filarmónica de Berlim, de que Karajan sempre o afastou, é da 9ª Sinfonia deste compositor) e ainda há pouco Pierre Boulez, numa entrevista, dizia que o renascimento do interesse por Mahler se ficara a dever, quase exclusivamente, a Bernstein e à gravação da integral das sinfonias com a
New York Philharmonic, nos anos sessenta. Um dos seus colaboradores depositou-lhe no caixão a partitura das 5ª sinfonia deste compositor com que o maestro se identificava, pela paixão da sua música, feita de extraordinários contrastes, e pelo judaísmo de ambos.
Mas estava também à vontade no repertório clássico e as suas gravações de Beethoven, Mozart e, principalmente, Haydn (especialmente, das
Sinfonias Parisenses e de
A Criação), são extremamente conseguidas.
Perto da morte, em Dezembro de 1989, dirigiu em Berlin o histórico concerto que comemorou a reunificação da cidade, tendo substituído, na famosa
Ode à Alegria de Schiller, a palavra Freund (Alegria) pela palavra Freiheit (Liberdade). Uma forma adequada de deixar a sua marca, numa vida pautada por um intenso envolvimento em causas públicas e na vida política, nacional e internacional, de que o seu constante apoio à
Amnesty International é outro exemplo marcante. Desta colaboração, ficou-nos o extraordinário concerto em favor desta organização, em 1960, que resultou numa estupenda gravação do 4º Concerto para piano e orquestra de Beethoven, com Cláudio Arrau.
Não há lápides que cheguem para uma vida como a sua. Fica o seu talento, mas também a sua probidade como intérprete, a concentração e o entusiasmo com que dirigia as orquestras, e é magnífico que o DVD nos permita preservar esta sua inconfundível presença.