quarta-feira, 30 de janeiro de 2008

Gergiev

Haverá disco mais magnífico do que este? Sim, sem dúvida. Mas não muitos. Tenho-o ouvido vezes sem conta e pergunto-me sempre: como é possível atingir o limiar da perfeição. A força, a energia, de um maestro que parece conduzir uma caravela em mar revolto. Um pouco mais de azul - eu era além... Aqui, não faltou o golpe de asa.

E, já agora, transcrevo de seguida o poema de Mário de Sá-Carneiro.



Quase

Um pouco mais de sol - eu era brasa,
Um pouco mais de azul - eu era além.
Para atingir, faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...
Assombro ou paz? Em vão... Tudo esvaído
Num grande mar enganador de espuma;
E o grande sonho despertado em bruma,
O grande sonho - ó dor! - quase vivido...
Quase o amor, quase o triunfo e a chama,
Quase o princípio e o fim - quase a expansão...
Mas na minh'alma tudo se derrama...
Entanto nada foi só ilusão!
De tudo houve um começo ... e tudo errou...
- Ai a dor de ser - quase, dor sem fim...
Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim,
Asa que se enlaçou mas não voou...
Momentos de alma que, desbaratei...
Templos aonde nunca pus um altar...
Rios que perdi sem os levar ao mar...
Ânsias que foram mas que não fixei...
Se me vagueio, encontro só indícios...
Ogivas para o sol - vejo-as cerradas;
E mãos de herói, sem fé, acobardadas,
Puseram grades sobre os precipícios...
Num ímpeto difuso de quebranto,
Tudo encetei e nada possuí...
Hoje, de mim, só resta o desencanto
Das coisas que beijei mas não vivi...
Um pouco mais de sol - e fora brasa,
Um pouco mais de azul - e fora além.
Para atingir faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...

Literatura Portuguesa

Memória de outras asneiras

Não tem muita importância mas, aqui,neste blogue, há algum tempo, ri-me dum artigo de Luís Delgado (na altura, colunista no Diário de Notícias e Presidente da Lusa; a propósito, que é feito dele?) que dizia que, no confronto do século (sic), Hillary Clinton e Rudy Giuliani disputariam a Presidência dos Estados-Unidos. Bom, Clinton não tem a certeza de ser candidata e, quanto a Giuliani, depois dos resultados de ontem na Florida, «já era». Espera-se ainda hoje que declare a sua desistência e o seu apoio a John McCain. O combate do século, seja ele qual for, não será o que previa Delgado. Mas isso nós já sabíamos. Marcelo ainda acerta às vezes - mas não muitas. Delgado quase nunca. Mas deve ser por ter acreditado em conselheiros de imagem deste género que Giuliani entrará na história das eleições americanas como o homem que deliberadamente recusou a luta em Iowa e New Hampshire para ser humilhado na Florida e desistir depois... Uma espécie de Bíblia do que não deve fazer-se. Requiem in pace. (E Luís Delgado que lhe siga o exemplo.)

segunda-feira, 28 de janeiro de 2008

Monarquia e República: Asneiras em boca real

Duarte Pio de Bragança, Chefe de uma vaga Casa Real Portuguesa – ou seja, traduzindo em termos de gente comum, pretendente ao trono de acordo com as regras de sucessão dinástica, se (grande «se») a Monarquia ainda existisse – vem dizer que não há, no nosso país, uma democracia madura porque a questão do regime, República ou Monarquia, não pode ser objecto de voto popular.

Conviria lembrar algumas coisas. Em primeiro lugar, que, antes de 5 de Outubro de 1910, data da implantação da República, isso também acontecia. Mesmo que os republicanos ganhassem eleições, a questão do regime não se poria: estaríamos em Monarquia – e é tudo. Talvez por isso, apareceu a muitos que a única forma de derrubar o Rei seria através de meios revolucionários.

A recente tentativa de redourar o brasão de D. Carlos, transformando-o num Rei moderno e bem intencionado, decidido a fazer a felicidade do povo e impedido, nessa nobre tarefa, pela camarilha política da época – se é verdade que contribui para a degradação da imagem dos nossos políticos modernos, sendo este afinal o seu objectivo inconfesso, não deixará de se revelar como aquilo que, realmente, é: uma leitura particular e parcial da nossa história, tão parcial como as que, nos meus tempos de menino e moço, por oposição à ditadura salazarista, levavam aos píncaros da fama Afonso Costa, democrata, republicano e anticlerical.

Mas, por outro lado, e com maior importância, a implantação da República, em 1910, tinha por si o sinal dos tempos – a tal ponto que Salazar, íntimo partidário da Monarquia, sempre recusou a «restauração». Não seria o caso nos nossos dias de um retorno à Monarquia. Nada de sinal dos tempos. Pelo contrário, um retorno a um passado que, nos dias de hoje, pareceria simplesmente ridículo.

Voltar a um regime onde uma família, pelo simples facto da sua ascendência, se arroga o privilégio de assumir o mais alto cargo da hierarquia política e de representar o país, contradiz o espírito do tempo. Haveria algo de repugnante nesta situação – o que é mesmo compreendido pela maioria dos homens da direita liberal. Para além do mais, folclore excluído, os exemplos das monarquias ainda existentes não parecem particularmente edificantes.

Com efeito, os únicos proponentes duma solução deste tipo – chamemos-lhe os discípulos portugueses de Maurras e da Action française, dignos sucessores de Salazar com maior coerência do que este – esquecem que os portugueses, se são, ainda hoje, submissos e prontos a vender a alma por um arremedo de autoridade que lhes pareça trazer a segurança por que tanto anseiam, também têm tendência para recusar benefícios não assentes numa qualquer forma, mesmo leve, de mérito pessoal. A tradição tem actualmente, e ainda bem, menos força do que o esforço e valor individuais. (Muito da popularidade de Salazar resultou do facto de não ter tido o privilégio de ter nascido rico ou nobre.) E isto é um factor positivo mesmo se, como acontece às vezes, estes juízos se revelam falsos na prática porque esforço e valor são aferidos em função de critérios que nada têm a ver com o valimento e qualidade das pessoas de que se trata mas tudo com a posição social, carreira política ou força financeira dos que são assim alcandorados a posições de destaque.

Bem prega Frei Tomás; e Duarte Pio. Mas as frases do herdeiros dos Braganças (raça degenerada, na opinião de Oliveira Martins, que dizia deles que eram estúpidos e porcos) são, ou irrelevantes ou ridículas. Se eu fosse mauzinho, diria que a personalidade do pretendente é mais uma boa razão de recusar a Monarquia.

domingo, 27 de janeiro de 2008

A China en África - Vingança da história?

Henning Mankell, genro de Ingmar Bergmann, é um escritor sueco conhecido principalmente pelos seus excelentes livros policiais (mas autor também duma comovente Comédia Infantil que teve certo sucesso em Portugal e põe em cena Nélio, um rapaz africano apanhado nas malhas da guerra civil e da pobreza dos meninos de rua). Mankell divide o seu tempo entre a Suécia e Maputo, Moçambique, onde é director do Teatro Avenida.

Há duas semanas, Mankell deu uma entrevista ao Nouvel Observateur em que falou de uma nova colonização de África, desta vez com origem na China. Segundo o escritor sueco, esta colonização obedece a uma filosofia diferente da colonização tradicional dos grandes países neste Continente e, como se verá, mais próxima da que presidiu à expansão europeia na América do Norte e do Sul. O que importa aos chineses é exportar a sua mão-de-obra agrícola – os seus camponeses em suma. A China confronta-se com um problema, irresolúvel em termos nacionais, de sobrepopulação rural. A única possível solução para este pesadelo dos dirigentes chineses (porque se trata de 200 milhões potenciais revoltosos) consiste em exportar homens – ou seja, em favorecer a emigração em massa dos seus habitantes. Por isso, os investimentos chineses em África situam-se normalmente no sector agrário (compra de largos domínios agrícolas) e acompanham-se duma transplantação enorme de indivíduos da China para os países de acolhimento. «Les dirigeants chinois envisagent donc d'exporter le problème et de transplanter en Afrique les paysans les plus pauvres (pas moins de 4 millions d'entre eux !) pour qu'ils y cultivent la terre. C'est une forme terrible de colonisation, et c'est exactement ce qu'ont fait les Portugais autrefois au Mozambique. On peut faire subir n'importe quoi aux pauvres.» A referência a Portugal explica-se pelo facto de, na altura da colonização, este ser um país pobre incapaz de oferecer aos seus habitantes um nível mínimo de riqueza ou bem-estar e, consequentemente, interessado em mandar para longe a sua população. Mas a dimensão, em brutos termos dos números em causa, é completamente diferente. Portugal tinha, no início do século XX, 3 ou 4 milhões de habitantes... A China tem mais de um bilião.

Esta entrevista interessou-me porque, há algum tempo, num artigo neste blogue, eu dava conta de um livro que na altura teve um enorme sucesso, propondo uma nova direcção para os trabalhos sobre o «milagre europeu», ou seja, sobre a questão difícil de saber por que foi na Europa, continente que nada, em princípio, fadava para tanto, que tiveram lugar as transformações excepcionais que conduziram ao extraordinário desenvolvimento económico que nos levou aos nosso tempos. Esse livro chamava-se The Great Divergence e o seu autor é um historiador de méritos firmados, Kenneth Pomeranz. O que é que um livro centrado sobre o desenvolvimento paralelo da China e da Europa em tempos já longínmquos tem a ver com a entrevista de Mankell?

Quase tudo. Porque Pomeranz tenta provar que, nos séculos XVII e XVIII, nada de essencial distinguia a China da Europa. Nem uma classe económica europeia particularmente dinâmica, nem arbitrárias formas de intervenção na vida económica por parte dos imperadores ou mandarins (como acontecia no Império Otomano), nem outros factores que tantas vezes têm sido apontados para explicar esta «divergência». Mas um factor a que Pomeranz atribui grande importância é, precisamente, a ausência de pressão demográfica, nomeadamente no campo, de que a Europa beneficiou por poder exportar a sua mão-de-obra excedentária para a América e, depois, para África, no âmbito da experiência colonial. Os chineses, que, por razões internas, se tinham fechado sobre si próprios, definindo-se como potência estruturalmente continental, depois de umas raras tentativas de expansão marítima, não tiveram essa possibilidade.

O que nos poderá levar a concluir que, por um lado, a China terá aprendido a lição e, por outro lado, que o futuro não se afigura róseo para os países e Continente africanos.

segunda-feira, 14 de janeiro de 2008

As Sinfonias de Mahler por Bernstein

As minhas filhas, o meu filho e os meus genros leram o meu blogue, falaram comigo e ofereceram-me, este Natal, o DVD das sinfonias completas de Mahler dirigidas por Leonard Bernstein. Tenho mergulhado devagarinho neste universo estranhamente belo e incómodo - incómodo no sentido nobre da palavra - que nunca conseguiria deixar-me indiferente. Uma vez, ouvi um crítico musical (Charles Rosen, se não me engano) a dizer que nunca tinha chorado diante de uma obra gravada - que só chorara perante interpretações ao vivo, que só essas verdadeiramente o emocionavam. Pela minha parte, já chorei uma vez ao ouvir, em CD, Alfred Cortot a interpretar os Impromptus de Chopin. E agora, ao assistir a esta formidável Quinta Sinfonia de Mahler, por Bernstein, voltou-me a atingir essa emoção que nos deixa perplexos diante de tanta beleza.

O pivot da RTP

Não sei se fui a única pessoa a sentir-se perplexa (ofendido seria exagerado dado o autor da graça) pela forma como José Rodrigues dos Santos terminou o Telejornal ontem, domingo, dia 13 de Janeiro. Depois de nos desejar «uma semana produtiva», o apresentador do Telejornal despediu-se com um piscar de olhos. Este à-vontade, esta displicência, incomodam-me. Nem o facto de considerar Rodrigues dos Santos como um rematado idiota me consola. Nem mesmo a sua cara de parvo, bem documentada na fotografia aqui ao lado.

Aproveito para lembrar que, há alguns anos, Rodrigues dos Santos convidou Fernando Pessa para o Telejornal e pediu-lhe que encerrasse a emissão. Pessa limitou-se a dizer: «Boa Noite, Senhoras e Senhores Telespectadores.» E Santos aproveitou para comentar brandamente que o idoso locutor estava desactualizado. Pois eu, pela minha parte, prefiro essa velha guarda, sem piscadelas de olho, sem acenos, sem sorrisos parvos. (Que, aliás, conduziriam a despedimento com justa causa, por exemplo, na BBC.) Sinal de que estou a envelhecer ou apenas uma nova forma da eterna querela lusitana do bom senso e do bom gosto?

terça-feira, 8 de janeiro de 2008

Eleições americanas

Até agora, a próxima eleição do Presidente dos Estados Unidos tinha-me deixado relativamente indiferente. Mesmo sabendo que as suas consequências ultrapassam, e de muito, as fronteiras do país, reflectindo-se sobre o mundo inteiro, a minha atitude tem sido a de pensar que os americanos bem podem cuidar dos seus assuntos intramuros – ou, dito de forma mais crua, que bem podem lixar-se sozinhos.

Mas gostava de dizer que não me rendo ao canto de sereia de Baruk (ou Barack) Obama e que, se votasse, a minha escolha seria certamente Hillary Clinton. Acima de tudo, preocupa-me o caminho que está a ser seguido pelo Supremo Tribunal dos Estados Unidos, sob o Chief Justice Roberts, nomeado por Bush. O futuro reserva-nos algumas surpresas desagradáveis, seja em matéria de defesa dos direitos humanos, seja, eventualmente, pelo que respeita à revogação da decisão Roe vs Wade em matéria de interrupção voluntária da gravidez. Creio que só Clinton pode inverter este estado de coisas. Para além disso, os Estados Unidos precisam de alguém de fortes convicções. Obama parece-me prisioneiro da sua própria imagem de «merchant of hope» e de um populismo perigoso. Nem todos os presidentes simpáticos são maus presidentes – mas a maior parte são-no. Nem todos os presidentes inexperientes são maus presidentes – mas Truman é ainda assim uma excepção. Eu votaria em Clinton – mas, já se sabe, tenho tendência para me enganar neste tipo de decisões...

segunda-feira, 7 de janeiro de 2008

Não há pachorra

Não há pachorra para esta telenovela presidencial: Nicolas e Carla, de mãos dadas e olhares cruzados, filho dela aos ombros dele, em terras do Egipto e da Jordânia. Parece que Sarkozy anunciará nos próximos dias o seu casamento com a actriz. Os franceses é que já estão fartos: as cotas de popularidade do Presidente começam a esboroar-se. Para uma população que tem cada vez maior dificuldade em aguentar o barco até ao fim do mês não deve ser agradável, com efeito, assistir a esta vanity fair protagonizada pelo seu Presidente. Mitterrand passou muitas vezes o fim do ano no Egipto (foi de lá que veio para morrer, em 1996) e Chirac gostava de ir para a ilha da Reunião. Mas um e outro eram mais discretos – qualidade que Sarkozy deverá aprender se não quiser que 2008 se transforme em ano quente. As perspectivas não são boas: preço do petróleo a atingir recordes; dificuldades dos bancos americanos e de alguns da zona euro; possível crise imobiliária em Espanha; greves previsíveis e a atingir agora todos os sectores... Não basta o glamour, nem mesmo o da nova namorada do Presidente.

E eu que gostava tanto da Cecília... que o mandou passear! Et pour cause...