Passámos quase cinquenta e dois anos juntos – e de certeza mais de trinta a discutir. Nunca berrei com ninguém como contigo, nunca berraste ou berrarás agora com ninguém como comigo. Durante muito tempo, não nos demos bem: a rivalidade natural entre dois irmãos de idades muito próximas, eu, o filho mais velho, tu, o mais novo e, depois, com o nascimento do Kiko, o filho do meio. A morte do Pai, quando éramos ainda adolescentes, não contribuiu para melhorar as nossas relações: foste para um lado, eu segui outro caminho. Mas foi a morte da Mãe que nos aproximou e reuniu. E imagino o seu sorriso, João, ao pensar que nos tínhamos tornado amigos, que nos falávamos quase todos os dias, que nos ajudávamos e, milagre, que já não discutíamos. Passámos, com o Kiko, uns bons momentos juntos nestes dois últimos anos. Estavas numa fase boa, sentias-te bem, mesmo com a diálise e os problemas dos rins. Os meus filhos aprenderam a gostar de ti e recordam agora o teu feitio cáustico, a tua ironia destrutiva, nos nossos almoços nessa marisqueira de Lisboa a que nos levaste pela primeira vez. Fico tão contente, tão contente, de que a nossa reconciliação tenha permitido que a Sofia, a Inês, a Teresinha e o Diogo (e até os meus genros, Diogo e João) guardem de ti esta imagem de ternura que não teriam se tivesses desaparecido mais cedo. Eu próprio só muito recentemente compreendi o que nos unia, a nós e ao Kiko. Devemos à Mãe essa certeza de que mais tarde ou mais cedo nos aproximaríamos e que a ternura que, em sua opinião, tinha que existir entre nós viria ao de cima. Veio. Foi só pouco o tempo de a vivermos, de partilharmos esse amor. Daí a minha desolação, o meu pesar, até o meu remorso.
Se o céu existe (e, nestas alturas, dá imenso jeito pensar que sim), já terás ido esta manhã tomar a bica com a Mãe e contar-lhe as tuas intermináveis histórias. Não te alongues muito na conversa, deixa-a sossegar um bocadinho e habituar-se à tua presença. A Mãe foi a pessoa que sempre, sempre, te ouviu. Se o céu existe, como disse, ao menos estarás acompanhado.
Amo-te, meu irmão. E vais fazer-me falta. A tua vida foi complicada, dolorosa e dura (digam o que disserem, perder o Pai aos dezoito anos, é difícil!) Passaste por muito, muitas vezes por tua culpa, outras nem tanto. Mas sempre te levantaste, sempre continuaste. Eras um batalhador, um homem teimoso. Nunca deitaste para trás das costas a responsabilidade que sentias perante a Isabel, tua mulher, o Luís Maria e o Manuel, teus filhos. Nunca fugiste de batalhas e combates: sempre renasceste. Mal ou bem, enfrentando maiores ou menores obstáculos, nunca desististe! Eu não teria tido essa força...
Descansa agora, João. Um beijo. Que era a forma que tínhamos de nos despedir. Que foi a última palavra que nos dissemos quando falámos ao telefone na quinta-feira passada. Descansa, meu irmão, meu amigo.