sábado, 21 de fevereiro de 2009

Clara Haskill (1895-1960)

Há algum tempo, li, num artigo de Edward Said, que, para além de todos os seus outros talentos, era um crítico musical de rara qualidade – e insusceptível de se deixar impressionar pela mera expressão de destreza técnica que caracteriza tantos dos jovens intérpretes de hoje – que a marca dum grande pianista (mas as suas considerações podiam aplicar-se a qualquer intérprete) como Pollini, Rachmaninov, Schnabell, Brendel, Kempff, Richter, Gilels, Lipati, e outros poucos, era a de nos permitir aceder ao próprio acto de criação musical. Falando, por exemplo, das interpretações de Schumann por Rachmaninov, Said diz-nos que elas nos fazem tomar consciência do compositor no momento em que inventa as suas peças, em que lhes dá um significado, e tornam o que não seria senão uma partição morta escrita numa página em que se encontram desenhados símboloos colocados em conjunto de cinco linhas numa peça de música, que envolve de froma nova o intérprete, o compositor e o público. Por interpretações como estas, acedemos à visão do compositor (ele não diria a sua alma ou o seu espírito, mas é quase isso).

Clara Kaskill fazia parte desse grupo de pianistas. Quando a ouço em peças de Schumann, na última sonata de Schubert e em outras de Beethoven, nas sonatas e concertos de Mozart, ou nas sonats para piano e violino de Beethoven e Mozart (acompanhada por Arthut Grumiaux), sinto-me ligado a esses homens que nos deixaram a sua música, no que seria uma conversa na nossa linguagem comum mas que, no meu caso, e dada a miha ausência de cultura musical de base, é apenas num encontro de sensibilidades - ou, como se diz no poema que se segue, de alguma coisa que faz «o sublime dessas marginalidades da vida». E é através destes intépretes que encontro e partilho o sentido e a emoção da música.

Por isso, gostei de encontrar, quase por acaso, este poema de Vasco Graça Moura, sobre Clara Haskill (o Conceto em Ré menor é o Concerto No. 20. Para mim, a melhor interpretação é a de Martha Argerich):

Clara Haskill

e há sempre uma história das pessoas ouvida com o que somos,
uma narração a prolongar a acústica dos sóis interiores, destinos
quando a tarde esmorece, por exemplo, aos

sessenta e cinco anos, clara haskill caiu na plataforma
da gare de bruxelas. veio a morrer
das complicações da queda. mas antes já tivera

problemas da coluna e da vista, já
tivera de fugir da alemanha. estas notas
vêm na capa do disco em que ela, a intermediária

de mozart, toca o concerto em ré menor, numa aura
de densidades graves. você está deitada no sofá
a ler um livro, quando eu lhe digo isto. não

sei se presta atenção, ou se apenas sorri como a música requer
e a haskill desejaria. a música é sempre autobiográfica
para o ouvinte, uma acelerada angústia desmedindo o que

ousávamos saber. e uma íntima aliança com a luz
e o inominável da experiência fazem
o sublime dessas marginalidades da vida.


Vasco Graça Moura
A Furiosa Paixão pelo Tangível
Quetzal

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

A Igreja e a homossexualidade

D. José Saraiva Martins, Prefeito Emérito da Congregação para as Causas dos Santos, considerou na Figueira da Foz (nos mesmos colóquios em que D. José Policarpo fez as suas afirmações polémicas sobre os casamentos de mulheres cristãs com homens muçulmanos, com as quais o augusto prelado também declarou concordar, recomendando «cautela»), que a homossexualidade não é normal. «Não é normal no sentido de que a Bíblia diz que quando Deus criou o ser humano, criou o homem e a mulher». (O Cardeal esqueceu-se de referir que Eva proveio duma costela de Adão, argumento que foi tantas vezes utilizado para provar (?) a sua natural inferioridade, da mesma forma que a história da maçã e da serpente foi usada para demonstrar (?) a sua irrepremível luxúria!) E acrescentou «que (os homossexuais) não podem providenciar a formação das crianças, porque uma criança para ser formada normalmente precisa de um pai e de uma mãe e não de dois pais ou de duas mães», já que o pai e a mãe «são diferentes, têm diferentes qualidades, completam-se mutuamente de uma maneira maravilhosa». Pela minha parte, tinha-me esquecido que os homossexuais são todos iguais e apresentam rigorosamente as mesmas qualidades, e ainda que duas pessoas do mesmo sexo são evidente e absolutamente incapazes de se completarem mutuamente de forma maravilhosa.

Mas já agora, por que é que Deus criou os homossexuais? Não lhe teria sido mais fácil, nas sua extrema sabedoria e no seu extremo poder (omnisciência e omnipotência), e se realmente «essa gente» não é normal, ter-se abstido de lhes dar existência? Porque, de duas, uma: ou Deus anda a gozar com eles, criando-os apenas para os condenar, ou então há uma razão divina que justifica a sua inclusão na humanidade, cuja compreensão foge aos senhores da Igreja.

Estes argumentos são, mesmo dum ponto de vista católica, duma assustadora indigência. Deixem os homossexuais em paz: afinal, eles também fazem parte do plano da criação! E, como dizia António Alçada Baptista, (cito de memória) «eu não percebo muito bem esse argumento de a homossexualidade não ser natural porque, afinal, a natureza faz maricas com o mesmo à-vontade com que faz os outros».

Eu não sei bem o que faz a Congregação para as Causas dos Santos mas atrevo-me a pensar que, com este cardeal a dirigi-la, o trabalho não deve ser de grande qualidade.

PS. Já agora o Público podia escrever a palavra homossexualidade de forma correcta, ou seja, com dois «s».

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

Certos empresários portugueses – e a crise

O patrão da Jerónimo Martins, um senhor que se chama Alexandre Soares dos Santos, afirmou hoje, a propósito da proposta de José Sócrates de aumentar os impostos sobre os ricos para distribuir aos pobres, que a actual crise está a ser agravada pela «demagogia que o senhor primeiro-ministro está empregando neste momento (e que) é absolutamente intolerável». Mais grave ainda, segundo o mesmo senhor, seria o facto de termos um Parlamento que nada discute e nada controla. Mais moderado e inteligente, Philippe de Botton, outro empresário conhecido e membro do Compromisso Portugal, afirmou não ser contra um aumento de impostos sobre os rendimentos mais elevados, limitando-se a afirmar que, para corrigir a actual situação económica, são necessárias medidas que produzam efeitos imediatos – e que o aumento de impostos nunca seria eficaz antes de 2010.

Podem criticar-se as opções de política económica do Primeiro-Ministro e considerar ineficaz o conjunto de respostas à crise propostas pelo Governo. Mas por que raio será assim tão escandalosa uma correcção limitada do sistema fiscal, desonerando os que ganham menos e agravando a contribuição dos que mais recebem, entre salários, bónus e outros benefícios diversos (como a garantia de reformas elevadas)? De um ponto de vista meramente económico, parece fazer algum sentido: as pessoas de menores rendimentos terão tendência a consumir o que ganharem a mais enquanto as mais ricas se encontram em fase de poupança (e, no caso dos empresários, de despedimentos) – ora, aumentar o consumo parece uma medida razoável, se bem que, por si só, insuficiente, de combate à crise. Mas, ainda que fosse uma medida errada, esgrimir contra ela esta forma de terrorismo verbal só mostra que, mesmo na situação de crise actual por que é a principal responsável, a chamada elite económica e financeira não vê com bons olhos que lhe toquem nos seus privilégios. Ganhar quando o mercado vai bem, continuar a ganhar quando o mercado vai mal. O problema não é que José Sócrates vá demasiado longe, o problema é que nunca compreenderá que não percorreu nem vai percorrer nem metade do caminho necessário. Em 1933, Franklin Roosevelt disse aos americanos ricos que deviam compreender que o país exigia deles sacrifícios – e, mesmo assim, que esses sacrifícios não eram, nem de perto nem de longe, comparáveis aos que eram impostos às famílias pobres ou da classe média. Mas a simples referência a Roosevelt mostra a que distância se encontra José Sócrates dum homem político com dimensão e personalidade – e leva-nos a compreender a qualidade do debate político no nosso torrão lusitano: o único aspecto em que Soares Santos tem razão é quando fala da total irrelevância do Parlamento. Mas é tudo isso que leva alguns dos empresários a sentirem-se à vontade para dizer este e outros tipos de asneiras.

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

O Tribunal da Boa-Hora

Em Julho próximo, o Tribunal da Boa-Hora sai da Baixa de Lisboa para o Parque das Nações. O Governo decidiu concentrar a maioria dos serviços judiciais da capital no chamado campus da Justiça (sem relvados, ao contrário dos campus das principais Universidades americanas), um bloco de escritórios situado na zona da Expo.

Tem-se levantado vozes contra esta decisão, considerando que a Boa-Hora tem um significado simbólico porque nela se realizaram os principais julgamentos políticos do Antigo Regime e funcionaram os nefandos tribunais especiais encarregados de perseguir os opositores à Ditadura. Sinto-me tocado por este argumento mas julgo que a posição governamental faz todo o sentido.

De há muito que a Boa-Hora deixou de preencher os requisitos mínimos de decência (e a palavra não é muito forte) que são exigíveis num Tribunal. Há uma imensa promiscuidade entre réus, testemunhas, advogados e magistrados, alguns sentados lado a lado e todos obrigados a passarem pelos mesmos corredores. As casas de banho disponíveis para o público são indescritíveis, pela exiguidade das instalações e pela falta de asseio. Nos dias de calor, não pode nem abrir-se a janela nem usar-se o ar condicionado, porque o barulho da rua ou dos aparelhos impede a gravação das audiências; nos dias de frio, é assistir a juízes, advogados e funcionários embrulhados em pesados sobretudos, sobre os quais, atabalhoadamente, colocam as togas. Os réus e as testemunhas, esses, que se acautelem porque se vão para lá convencidos de que aquele local é aquecido passarão o tempo a tremer!

Poderia, talvez, encontrar-se um destino para o edifício que o conservasse como local de memória: uma espécie de Museu da Resistência. (Já se falou disso a propósito da antiga sede da PIDE). Mas o mais certo será, como afirmou o Secretário de estado da Justiça, na sua enorme sabedoria e candura (aliás, comum, neste Governo), que, como tantos outros antigos conventos, tudo aquilo acabe transformado em hotel ou condomínio de luxo. Mas isso deve-se às (más) finanças do Estado e da Câmara – e não é razão para obrigar todos aqueles que agora utilizam o Tribunal a continuar a trabalhar em condições degradantes.

Resta saber se o novo espaço é adequado. Já se ouvem algumas críticas: falta de estacionamento privativo (juízes atrasados para as audiências à procura de lugar para o carro!); falta de refeitório; inexistência de entradas próprias para os juízes nas salas de audiência, etc.. Tudo isto resulta de se tratar de um edifício de escritórios que não foi construído, de raiz, para acolher tribunais. Mas, sejam quais forem os seus defeitos, é impossível que a nova localização não constitua um progresso relativamente à Boa-Hora. Quanto a esta, requiescat in pace!