Embora a Vanda, com o seu tacto habitual, já me tenha criticado por não ter dado notícia, no blogue, da morte da Tia Paule (aqui, na única fotografia que consegui encontrar, com o seu neto Pedro), a verdade é que não me foi fácil escrever as linhas que se seguem. Quando se gosta mesmo duma pessoa, as palavras exactas custam a chegar. Eis o que consegui alinhavar.
No discurso que fez em homenagem a Philippe Séguin, o Presidente francês falou dum
devoir d'orgueil que era sentido pelo homem político francês, filho de militar morto na frente de combate, pupilo da Nação.
A frase ficou-me gravada na memória e tenho pensado nela a propósito da Tia Paule. Claro as situações são muito diferentes. Mas havia na jovem francesa chegada muito nova a Portugal, também ela órfã de Pai, uma espécie de
fierté que se impunha aos outros. Nós, que a conhecemos mais tarde, não podemos imaginar o que deve ter sido, para ela, aos dezanove anos, desembarcar num país tradicional, numa sociedade tradicional, numa família tradicional, e, pelo menos nesses primeiros tempos, dar a toda essa gente que a rodeava, como depois deu às suas filhas e ao seu filho, uma alegria e uma descontracção fora do vulgar. Como o Tiago lembrou, na missa do trigésimo dia, a ela, que vinha da terra do biquíni, nada a escandalizava. Não deixava de ser conservadora; só que era uma forma de ser conservadora que não tinha nada a ver com o provincianismo das gentes cá do burgo.
Ainda a conheci nos seus tempos áureos. Foi sempre essa imagem, a de uma mulher activa, conversadora, determinada, inteligente, que me acompanhou. Nos últimos anos, isolou-se e fechou-se em casa, na sua sala, em frente da televisão, a fazer as suas intermináveis palavras cruzadas (em francês e português); mas, pelo menos comigo, guardou essa capacidade de se mostrar como sempre tinha sido. E os momentos que partilhámos foram sempre de comunhão. Sei que ela gostava de mim; e eu gostava muito dela. Os defeitos, de um lado e doutro, têm pouca importância em coisas de coração.
É aos seus netos, sobretudo aos seus netos mais novos, que me dirijo. Porque eles, ao contrário dos seus filhos e mesmo dos seus netos mais velhos, não tiveram talvez a oportunidade de a conhecer como realmente era. A memória que gostava que os meus filhos guardassem dela é a de uma grande senhora que o final da vida (a Clara, o Zé Maria) maltratou.
Talvez não se lembrem da genica, da garra, da alegria. É natural! Deixou de ir a Nice, ao seu
Beau Rivage; deixou de ver o Mediterrâneo, que acompanhara a sua juventude e que sempre lhe retemperava a alma. Ficou-lhe o sorriso experiente, a compreensão de quem muito viveu; talvez acompanhada por uma compreensível amargura – como me disse uma vez, de uma pessoa que viveu para além do seu tempo – que às vezes a assomava mas nunca a dominava. Mas antes de se instalar nessa tristeza, foi uma pessoa cheia da vida, capaz de agarrar com todas as suas forças as oportunidades que lhe apareciam, capaz de distribuir, por quem a rodeasse, força, graça, e uma simpatia irónica ou uma ironia simpática que lhe era natural. Vinda do Sul de França, onde a vida parece fácil porque o clima é clemente, o mar calmo e o calor acolhedor, para este país que, na altura em que cá chegou, não passava de um canto obscuro, afastado da Europa, passou a falar português como uma portuguesa, com a excepção do seu "fazer a louça" –
faire la vaisselle – que as suas filhas ainda usam. Todos os que a conheciam a admiravam. Na missa, a Vanda falou dos comerciantes do bairro, que estavam tristes, e podia ter falado de muita gente mais. Guardou sempre uma independência de espírito, e uma agudeza da inteligência, que a distinguiam. Lembro-me da festa que as suas filhas organizaram para os seus setenta anos. Uma senhora, comovida, mas sorridente, risonha, surpreendida e contente. Essa é a imagem que lhe corresponde.
Morreu como eu gostaria que a minha Mãe tivesse morrido. Em casa, e não no hospital acompanhada de enfermeiras distraídas e médicos pouco atentos. Recusou tratamentos; recusou paliativos. Tenho a certeza de que sentiu que o seu tempo tinha chegado ao fim; e morreu com a dignidade com que sempre viveu.
E tenho pena, uma pena imensa, de sentir que nos deixou. Gostávamos imenso um do outro. Talvez porque soubéssemos que, nestes tempos em que toda a gente anda à procura de benesses, nós nos contentávamos com a amizade. Morreu há tão pouco tempo e já tenho saudades da sua forma de falar e de sorrir. Espero que os meus filhos, seus netos, possam guardar dela a mesma recordação que eu guardo, feita de ternura, às vezes, de exasperação (porque ninguém podia dizer que a Tia era uma pessoa fácil), mas sobretudo de afeição e estima. Que fique bem, onde quer que esteja. Nós continuaremos, deste lado, a falar consigo, de preferência naquele francês meridional que ninguém consegue verdadeiramente imitar.
Bonne chance.