domingo, 30 de abril de 2006

Mãe, ainda

Mãe,
Faltou-nos o tempo... Quem diria?
Se nos dissessem que choraríamos tantas lágrimas,
Que a ausência nos doeria desta forma física e fatal...
Quem acreditava?
Lembro-me de a ouvir dizer:
Ainda terão saudades minhas!
E de rir consigo porque sabíamos que era imortal.
(E é-o, mas de um modo que não nos consola!)
Foi-se embora como esteve na vida:
Discretamente. Sem incomodar ninguém.
Pensar que não vem aquela chamada matinal...
E que tantas coisas ficaram por dizer!

sábado, 29 de abril de 2006

Nunca é tarde para bem-fazer: ainda o discurso de Cavaco Silva

No «Público» de hoje
(http://jornal.publico.clix.pt/noticias.asp?a=2006&m=04&d=29&uid=&id=76051&sid=8312 – penso que acessível apenas a assinantes),
José Manuel Fernandes corrige um editorial anterior do mesmo jornal, já aqui criticado em 26 de Abril. Afinal, o discurso de Cavaco «merece ser relido depois da surpresa que tivemos ao ouvi-lo». É que o Presidente não fala para os jornalistas, nem para os analistas. «Fala por cima deles directamente para os cidadãos». Deve ser por isso que os analistas do «Público» demoram tempo a perceber o sentido de certas mensagens.

Nunca é tarde para bem-fazer. Se não fosse um certo tom de enfado – habitual – perante o papel do Estado, desta vez em matéria de solidariedade social, eu poderia subscrever, excepcionalmente, quase tudo o que diz José Manuel Fernandes. Principalmente, a referência aos «esquecidos», ou seja, aqueles para quem o contrato social que, em Portugal, actualmente lhes é proposto, é pura e simplesmente iníquo. As causas desta injustiça são muitas e nem a esquerda nem a direita estão isentas de culpas. A direita, porque a ideologia neo-liberal que define o novo pensamento único, conduz à exclusão. Diz-se muito mal, hoje, dos «Trinta Gloriosos» (os anos a seguir à guerra, de recuperação e progresso económico) mas nunca, como então, os excluídos da sorte tiveram acesso a condições de vida humanas e seguras. A esquerda, porque ainda não compreendeu que a administração pública (e o Estado) não é naturalmente amiga dos cidadãos mais desfavorecidos. Pelo contrário, nas actuais circunstâncias, qualquer exigência burocrática (e elas ainda pululam, embora se espere que o trabalho de Maria Manuel Leitão Marques tenha rapidamente resultados positivos) se traduz num verdadeiro imposto – uma corveia – que afecta os mais fracos.

Correspondência entre Sophia de Mello Breyner e Jorge de Sena

A primeira impressão que nos vem da leitura destas cartas é de serena emoção e recolhimento. E, mais tarde (mais deixemos isso por agora), chegam ainda raiva e incredulidade.

Maria Andresen de Sousa Tavares tem razão em sublinhar a «beleza (...) de uma amizade apaixonadamente crente no seu próprio valor e, como tal, incondicionalmente fiel a si mesma». É, afinal, o que fica claro na última carta publicada, de Sophia a Mécia de Sena, quando morre Jorge de Sena e que resume o encontro dos dois poetas: «Para além do desgosto e da saudade sinto um profundo acabrunhamento. Do Jorge oiço o grande rio em cheio da sua poesia passando através do espaço e do tempo em que vivo. (…) E quero escrever sobre o Jorge – sobre o que foi a sua obra, a sua presença e a sua ausência – mas só quando tiver podido superar a desolação deste primeiro tempo em que é preciso compreender plenamente que o Jorge não voltará a Lisboa em nenhuma viagem.»

As cartas de Sophia são mais serenas; as de Jorge de Sena, mais amarguradas ou furiosas. O exílio, a distância, a ausência, marcaram Jorge de Sena, e fizeram‑no tantas vezes duvidar, se não do seu valor, como escritor, poeta, historiador, ensaísta, pelo menos do objectivo da sua arte e da sua vida: «Então (…) não chegara ainda totalmente à experiência de vácuo que nem o quotidiano nem a família me desdizem; e à amarga e insuportável conclusão de que escrevo sem saber porquê, para o deserto linguístico. É a minha experiência real: onde a língua não é a nossa, como aqui, ninguém se interessa por nós…» (Carta de 9 de Janeiro de 1968).

Gostava de voltar a comentar estas cartas mas, agora, ficam apenas um excerto e dois poemas, tirados deste livro editado pela «Guerra e Paz».

De Jorge de Sena, uma frase dessa carta de 9 de Janeiro de 1968, sobre «as mortes sucessivas de parentes e amigos»:

«A impressão que cada vez mais tenho é a de que, de certa altura em diante, na vida, nós começamos a viver como o Rilke dizia que os anjos se sentiam: sem saber se estamos entre vivos ou entre mortos, porque as pessoas desaparecem, transformam‑se em memória, e a gente vai ficando numa cada vez mais estranha irrealidade em que a maioria dos vivos não faz parte do nosso mundo que atravessam como espectros secundários, enquanto o espaço vazio se acumula de espectros autênticos que precisamente são os que deixaram de existir.»

Sobre Sophia, em 1950, Jorge de Sena escreveu o seguinte poema:

A Sophia de Mello Breyner enviando‑lhe um exemplar de «Pedra Filosofal»:

Filhos e versos, como os dás ao mundo?
Como na praia te conversam sombras de corais?
Como de angústia anoitecer profundo?
Como quem se reparte?
Como quem pode matar‑te?
Ou como quem a ti não volta mais?
(1950)


E, cumprindo a promessa da carta a Mécia de Sena, Sophia escreveu em 1978:

Carta(s) a Jorge de Sena

I
Não és navegador mas emigrante
Legítimo português de novecentos
Levaste contigo os teus e levaste
Sonhos fúrias trabalhos e saudade;
Moraste dia por dia a tua ausência
No mais profundo fundo das profundas
Cavernas altas onde o estar se esconde
II
E agora chega a notícia que morreste
E algo se desloca em nossa vida.
III
Há muito estavas longe
Mas vinham cartas poemas e notícias
E pensávamos que sempre voltarias
Enquanto amigos teus aqui te esperassem –
E assim às vezes chegavas da terra estrangeira
Não como filho pródigo mas como irmão prudente
E ríamos e falávamos em redor da mesa
E tiniam talheres loiças e vidros
Como se tudo na chegada se alegrasse
Trazias contigo um certo ar de capitão de tempestades
Grandioso vencedor e tão amargo vencido –
E havia avidez azáfama e pressa
No desejo de suprir anos de distância em horas de conversa
E havia uma veemente emoção em tua grave amizade
E em redor da mesa celebrávamos a festa
Do instante que brilhava entre frutos e rostos.
IV
E agora chega a notícia que morreste
A morte vem como nenhuma carta.

quinta-feira, 27 de abril de 2006

Arthur Schlesinger, Jr.


Arthur Schlesinger Jr nasceu em 1917. Intelectual americano, foi assistente especial de Kennedy e colaborou na redacção de alguns dos seus mais importantes discursos. A sua autobiografia «A Life in the Twentieth Century: Innocent Beginnings» já foi considerada a versão do século XX da famosa obra de Henry Adams «The Education of Henry Adams»: dois testemunhos de historiadores americanos fascinados pela política, conhecendo os seus meandros (Adams era bisneto de John Adams, segundo Presidente dos Estados‑Unidos, e neto de John Quincy Adams, o sexto Presidente) mas mantendo independência de espírito e sentido crítico. Arthur Schlesinger Jr. publicou estudos biográficos sobre Jackson, Roosevelt, John e Robert Kennedy. O seu livro «A Thousand Days» é ainda hoje considerado a melhor obra escrita sobre a presidência de Kennedy.

O seu recente artigo na NY Review of Books (http://www.nybooks.com/articles/18913) é uma maravilha. Breve reflexão sobre a escrita da história, aceitando que os historiadores são prisioneiros da sua própria experiência e dos seus preconceitos, mas mesmo assim (ou precisamente por isso, pela liberdade de argumentação e pelo poder do confronto de ideias) defendendo o estudo da história como antídoto contra tentações de omnipotência e omnisciência, termina com um sinal de optimismo: «This is the endless fascination of historical writing: the search to reconstruct what went before, a quest illuminated by those ever‑changing prisms that continually place old questions in a new light. As the great Dutch historian Peter Geyl was found of saying, "History is indeed an argument without end." That, I believe, is why we love it so much».

Para reflectir nestes tempos em que há tanta gente que parece considerar a história como disciplina dispensável.

quarta-feira, 26 de abril de 2006

Discurso de Cavaco Silva

O principal problema de Portugal tem a ver com o facto de, crescentemente, uma parte da população portuguesa se ver excluída das prestações sociais que uma sociedade moderna e desenvolvida lhe devia proporcionar. Isto é assim nas áreas cruciais da saúde (e só quem nunca recorreu aos serviços dos hospitais públicos pode duvidar) e educação (onde a perversão do sistema é tal que os mais pobres, nomeadamente se vivem fora de Lisboa, têm que suportar muito mais encargos do que os mais ricos, se quiserem mandar os filhos para as Universidades). O caso dos mais jovens, chegados a um mercado de trabalho rígido e incapaz de lhes oferecer caminhos ou oportunidades, é particularmente difícil. O caso dos velhos também, neste caso agravado pela indignidade de certas pensões de reforma.

Por isso, Cavaco Silva esteve bem ao centrar o seu discurso do 25 de Abril nos problemas da justiça social. Esperava‑se (ou desesperava‑se) do Presidente um discurso centrado sobre os problemas económicos; e muitos comentadores já esfregavam as mãos ao pensar que retomaria as críticas de diversas instituições sobre a política económica do Governo. Cavaco Silva surpreendeu positivamente entrando por caminhos onde não era esperado.

E, claro, logo o «Público» se emocionou, declarando o discurso «um pronunciamento (uf!) quase sem assunto, insignificante». Às vezes, dá‑me vontade de rasgar o «Público».

Em minha opinião, o que faltou no discurso de Cavaco foi uma referência à justiça: não apenas à justiça social mas à justiça «tout court». A situação de verdadeira impossibilidade de acesso à justiça (pela lentidão dos tribunais, pela dificuldade e custo dos processos, pelo labirinto burocrático e processual) em que se encontra uma grande maioria da população portuguesa constitui um dos principais factores de exclusão. Pense‑se no credor de quantias insignificantes, mas importantes no seu orçamento privado; no trabalhador injustamente despedido; no cidadão objecto de violência ou cujos direitos foram desprezados… Onde encontra essa gente solução para os seus problemas? Em lado nenhum porque o sistema judiciário não se encontra preparado para responder, a tempo, a tais preocupações. Gostaria que o Ministro Alberto Costa pensasse nisso: se é que ele pensa em alguma coisa, o que é duvidoso.

Mãe, Zé Maria, Teresinha

Quando comecei este blogue, a minha Mãe ainda vivia. Entretanto, a 4 de Março, a Mãe morreu e eu sinto-me muito mais pobre e sozinho, e só agora começo a recuperar da tristeza imensa que me dominou nessa altura. A Mãe faz‑me muita falta. E só agora compreendo como a sua presença iluminou a minha vida – e a dos meus irmãos. Há um certo remorso nesta confissão porque, enquanto foi viva, nem sempre me apercebi disso. Tantas vezes achei maçadoras certas conversas que, hoje, tudo daria para poder retomar. Dela vinha uma enorme ternura, e uma maneira especial de se preocupar connosco, aliada a um amor que nunca exigiu contrapartida. Pude passar com ela as últimas semanas da sua vida – e sei que morreu sabendo que os seus filhos a amavam. E também me conforta a ideia de que não sofreu e que, no próprio dia em que foi para o hospital, embora muito cansada, ainda se arranjou e tomou duche sozinha. Isso era muito importante para ela. Saiu da vida como nela esteve: sem incomodar ninguém. Deixa-nos a saudade, a tristeza e as lágrimas, mas também um imenso orgulho.

Quatro dias depois da Mãe, morreu o Zé Maria, meu sobrinho, filho da Vera e do Zé Maria. Sei que, se ainda estivesse viva, a Mãe teria ficado aflita com a morte do Zé e comungaria da dor que devastou os seus pais, a sua família, os seus amigos. O Zé Maria era um miúdo extraordinário, com uma graça incomparável e uma enorme força de viver que, por exemplo, o levou do Porto a St. Andrews, a Edinburgh, e finalmente a Bordéus, para tirar o curso de «Enologia» com o qual pretendia voltar a casa e começar a trabalhar. Como disse, no enterro, o David, seu primo, andou a reboque dos seus sonhos e estava a ponto de os concretizar. É isso que mais dói: a injustiça de uma vida cortada rente quando se tinha apenas anunciado; quando as promessas apenas se adivinhavam; quando ainda não havia senão esperança. Penso no Zé Maria com uma enorme ternura e uma raiva imensa. Só me apetece dizer «não há direito», mesmo sabendo que esta frase é inadequada e nada resolve. A nós, adultos, faz-nos mal ver chorar os jovens seus irmãos, sua irmã, seus primos, seus amigos: é-nos muito penoso assistir à tristeza dos jovens porque nada, nessa tristeza, é natural. A minha Mãe completou a sua obra de amor e partiu; mas o Zé nem sequer teve essa oportunidade. Penso na Vera e no Zé Maria Pai, e tento acompanhá-los, com a modéstia de quem sabe que só os que passam por estas coisas sabem do que falam quando falam de dor. E penso muito no Zé Sobrinho (ele assinava Zé Mano e Zé Primo quando se dirigia aos irmãos ou aos primos; para mim, assinaria Zé Sobrinho, se se lembrasse disso). Acho que ele vai ficar aqui por perto, mesmo se já não ouvimos aquela sua voz grossa com sotaque do Porto.

A minha neta cresce e está cada vez mais bonita. Tenho pouca prática em matéria de blogues e, por isso, ainda não consegui publicar aqui as fotografias mais recentes, tiradas sempre pela tia Inês (se a tia não existisse, o nosso álbum de fotografias da Teresinha seria muito pobre!). Vou tentar amanhã.