A primeira impressão que nos vem da leitura destas cartas é de serena emoção e recolhimento. E, mais tarde (mais deixemos isso por agora), chegam ainda raiva e incredulidade.
Maria Andresen de Sousa Tavares tem razão em sublinhar a «beleza (...) de uma amizade apaixonadamente crente no seu próprio valor e, como tal, incondicionalmente fiel a si mesma». É, afinal, o que fica claro na última carta publicada, de Sophia a Mécia de Sena, quando morre Jorge de Sena e que resume o encontro dos dois poetas: «Para além do desgosto e da saudade sinto um profundo acabrunhamento. Do Jorge oiço o grande rio em cheio da sua poesia passando através do espaço e do tempo em que vivo. (…) E quero escrever sobre o Jorge – sobre o que foi a sua obra, a sua presença e a sua ausência – mas só quando tiver podido superar a desolação deste primeiro tempo em que é preciso compreender plenamente que o Jorge não voltará a Lisboa em nenhuma viagem.»
As cartas de Sophia são mais serenas; as de Jorge de Sena, mais amarguradas ou furiosas. O exílio, a distância, a ausência, marcaram Jorge de Sena, e fizeram‑no tantas vezes duvidar, se não do seu valor, como escritor, poeta, historiador, ensaísta, pelo menos do objectivo da sua arte e da sua vida: «Então (…) não chegara ainda totalmente à experiência de vácuo que nem o quotidiano nem a família me desdizem; e à amarga e insuportável conclusão de que escrevo sem saber porquê, para o deserto linguístico. É a minha experiência real: onde a língua não é a nossa, como aqui, ninguém se interessa por nós…» (Carta de 9 de Janeiro de 1968).
Gostava de voltar a comentar estas cartas mas, agora, ficam apenas um excerto e dois poemas, tirados deste livro editado pela «Guerra e Paz».
De Jorge de Sena, uma frase dessa carta de 9 de Janeiro de 1968, sobre «as mortes sucessivas de parentes e amigos»:
«A impressão que cada vez mais tenho é a de que, de certa altura em diante, na vida, nós começamos a viver como o Rilke dizia que os anjos se sentiam: sem saber se estamos entre vivos ou entre mortos, porque as pessoas desaparecem, transformam‑se em memória, e a gente vai ficando numa cada vez mais estranha irrealidade em que a maioria dos vivos não faz parte do nosso mundo que atravessam como espectros secundários, enquanto o espaço vazio se acumula de espectros autênticos que precisamente são os que deixaram de existir.»
Sobre Sophia, em 1950, Jorge de Sena escreveu o seguinte poema:
A Sophia de Mello Breyner enviando‑lhe um exemplar de «Pedra Filosofal»:
Filhos e versos, como os dás ao mundo?
Como na praia te conversam sombras de corais?
Como de angústia anoitecer profundo?
Como quem se reparte?
Como quem pode matar‑te?
Ou como quem a ti não volta mais?
(1950)
E, cumprindo a promessa da carta a Mécia de Sena, Sophia escreveu em 1978:
Carta(s) a Jorge de Sena
I
Não és navegador mas emigrante
Legítimo português de novecentos
Levaste contigo os teus e levaste
Sonhos fúrias trabalhos e saudade;
Moraste dia por dia a tua ausência
No mais profundo fundo das profundas
Cavernas altas onde o estar se esconde
II
E agora chega a notícia que morreste
E algo se desloca em nossa vida.
III
Há muito estavas longe
Mas vinham cartas poemas e notícias
E pensávamos que sempre voltarias
Enquanto amigos teus aqui te esperassem –
E assim às vezes chegavas da terra estrangeira
Não como filho pródigo mas como irmão prudente
E ríamos e falávamos em redor da mesa
E tiniam talheres loiças e vidros
Como se tudo na chegada se alegrasse
Trazias contigo um certo ar de capitão de tempestades
Grandioso vencedor e tão amargo vencido –
E havia avidez azáfama e pressa
No desejo de suprir anos de distância em horas de conversa
E havia uma veemente emoção em tua grave amizade
E em redor da mesa celebrávamos a festa
Do instante que brilhava entre frutos e rostos.
IV
E agora chega a notícia que morreste
A morte vem como nenhuma carta.