Às vezes, a gente pensa que uma pessoa é inteligente mas, de repente, surge algo de rompante que abala até essas nossas mais serenas convicções. Vem isto a propósito das recentes declarações do Cardeal Patriarca de Lisboa, Dom José Policarpo, sobre os muçulmanos. Entre outras barbaridades, o prelado (de quem se falou até para Papa) advertiu as mulheres portuguesas (e pensa-se que as de outras nacionalidades) para o «monte de sarilhos» em que podem meter-se se casarem com muçulmanos. Entre outras parvoeiras, disse o seguinte: «Cautela com os amores. Pensem duas vezes em casar com um muçulmano, pensem muito seriamente, é meter-se num monte de sarilhos que nem Alá sabe onde é que acabam.» (Esta referência católica a Alá parece-me aliás bastante incongruente: Alá não existe para os católicos, nem sequer como profeta ou personagem histórica.) Ao ouvir isto, fico muito preocupado com a minha filha Teresa, cujo namorado, o Mehdi, é filho dum marroquino e duma grega, embora eu nem sequer saiba – nunca lho perguntei! – se, do ponto de vista religioso, é muçulmano ou católico ortodoxo.
Questionado por Fátima Campos Ferreira sobre se não estava a ser intolerante perante a questão do casamento das portuguesas (
dixit Fátima) com muçulmanos, José Policarpo disse que não. «Se eu sei que uma jovem europeia (vá lá, não são só as portuguesinhas!) de formação cristã, a primeira vez que vai para o país deles é sujeita ao regime das mulheres muçulmanas, imagine-se lá!» Imagine-se, com efeito! É verdade que o regime jurídico das mulheres em países de estrita obediência muçulmana tradicionalista é em muitos aspectos desumano. Mas, para além do facto de que isso só em parte tem a ver com a religião (a mulher de Maomé, Khadija, por sinal o nome duma secretária da Comissão com quem trabalho, magnífica funcionária e excelente muçulmana, teve enorme influência nos seus tempos e só por razões que podemos dizer conjunturais a situação da mulher se alterou radicalmente nesses países - mais talvez, embora isto seja controverso, por influência da sua ascendência árabe que propriamente religiosa), que dizer do estatuto da mulher nos países católicos mais conservadores ainda há pouco mais de cem anos?
Na sua intervenção, o Cardeal Patriarca de Lisboa considerou «muito difícil» o diálogo com os muçulmanos em Portugal, observando que o diálogo serve para a comunidade muçulmana demarcar os seus espaços num país maioritariamente católico. (Não se compreende bem para que serviria este diálogo senão para precisamente isso, a não ser que o Bispo de Lisboa pretendesse que os muçulmanos renegassem a sua fé!) E, algo contraditoriamente, em resposta a uma pergunta da jornalista, sobre se o diálogo inter-religioso em Portugal tem estado bem acautelado, acrescentou que, no caso da comunidade muçulmana, «estão-se a dar os primeiros passos». Porém, a situação «é muito difícil, porque eles não admitem sequer [encarar a crítica de que pensam] que a verdade deles é única e é toda», sustentou. (Isto, vindo dum católico, é obra... Como toda a gente sabe, o catolicismo caracterizou-se por uma insuperável tolerância religiosa ao longo dos seus longos séculos de existência.)
Sublinhou ainda que o diálogo serve para os muçulmanos, num país maioritariamente católico, «como fazem os lobos na floresta, demarcarem os seus espaços e terem os espaços que eu lhes respeito». Linda linguagem, que Jorge Sampaio fará bem em adoptar na sua missão de promover o diálogo das civilizações, neste ano marcado pela morte do principal teórico que sustentava a inevitável guerra entre elas.
Mais tarde, quase no final de mais de duas horas de conversa e respondendo, na altura, a uma pergunta da assistência sobre a presença muçulmana na Europa, lembrou que a comunidade muçulmana de Lisboa representa cerca de 100 mil fiéis «centrados à volta de três grandes mesquitas», e definindo as relações com o Patriarcado como «habitualmente boas e muito simpáticas». Relações boas e simpáticas com os lobos?
Perante tanto disparate, só me resta perguntar se Dom José Policarpo teria bebido demais... (Não esperava dele este tipo de palavras.) Tenho a certeza de que o Carlos dirá que não - que isto é apenas normal num bispo: ele não acha que existam bispos inteligentes. Ou, como diz o professor de Filosofia do meu filho Diogo, se alguém quer acreditar que existiu um homem concebido por obra e graça dum espírito santo e nascido duma mulher virgem, é lá com ele! Mas eu tenho algumas dúvidas... Parece que estas declarações foram proferidas depois do jantar!
Tenho estado afastado do blogue e esta não é a melhor forma de aqui regressar. Mas, mesmo assim, Bom Ano!