terça-feira, 31 de agosto de 2010

Vária

Cada semana é uma vitória. E esta parece-me melhor do que as outras. Sinto-me (quase) como antes de ter o enfarte: menos fatigado, mais activo. (Nos primeiros tempos, andava cansado e passivo: do sofá para a cama, da cama para o sofá). Saio de manhã: farmácia (muitas vezes), frutaria, papelaria. Durmo bem e não tenho dores há mais de uma semana, excepto algumas ocasionais sem importância. Contudo, às vezes, pela à tarde, mergulho em repentes de cansaço enervado e teimoso. Ontem, passei dez minutos à procura dos telecomandos. Não conseguia concentrar-me noutra coisa. Moralmente, estou bem: alguma tristeza por a Sofia, Diogo e netas terem ido embora... Mas uma grande força aumentada pelo facto de não ter sentido os tais efeitos secundários da quimioterapia. Com esta melhoria do estado geral (o inchaço da garganta quase desapareceu, tenho menos tosse), fico a imaginar que o tratamento tenha tido alguns resultados. A ver vamos. Optimista.


Sei que os meus amigos se informam do meu estado, principalmente através de telefonemas para a Sofia. Fico contente mas gostaria de lhes dizer que falassem comigo também. Não pretendo uma avalancha de telefonemas, muito menos à noite: uma mensagem (SMS ou Internet) chega e sobra. Mas não se calem... O meu voo não foi cancelado.

segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Xá e Constança

Sempre soube que esta separação das minhas netas seria muito difícil. Actualmente, parece insuportável.

Porque a Xá é esta forma de me acolher, quando a vou buscar à escola, com os gritos de "Vovy, vovy" e o entusiasmo de me ver, é também os nossos sábados juntos, o nosso jantar de massa e camarão, os "animados" que monopolizam a televisão, as nossas conversas na cama, aquela forma de acordar dizendo-me que posso ainda dormir "meia-hora", o sumo e as bolachas nas manhãs de domingo, alguns passeios com a Kiddie, aquele sorriso travesso, os olhos brilhantes e risonhos, e aquela alegria e aquela ternura... Com a Xá, sinto-me amado sem quaisquer limites; e amo-a da mesma forma.

E a Constança é o meu riso e a minha meiguice.

Consolo-me com a ideia de que ficarão bem porque a Sofia e o Diogo estão lá. Depois do embate dos primeiros tempos, nova cidade, nova casa, nova escola, as coisas entrarão na normalidade de um quotidiano feliz. Foi o que disse à Xá na conversa que tivemos no sábado.

Depois da quimioterapia, irei visitá-las frequentemente. Já combinei com a Xá passarmos um fim-de-semana, os dois, num hotel parisiense. Ela disse-me que devia ser um "bom hotel". Prometido.

domingo, 29 de agosto de 2010

Galeria de retratos, jantar, família





As fotografias são do dia dos anos da Trezzu e do João (ver entrada modificada do dia 19). A ocasião foi o jantar de sexta-feira, que pode considerar-se de despedida a Bruxelas da Sofia, do Diogo, da Xá e da Constança (Nini). Partem para Paris hoje. A Sofia, que é a minha torre, vai continuar comigo mas um pouco mais longe.

Foi, sobretudo, uma forma de estarmos todos juntos e de saborear um bom jantar.

Como previsto, fomos ao Brasero, onde a Carol e o António nos tinham precedido na ante-véspera. Com o Carlos, vou lá imensas vezes, principalmente para saborear uns dos melhores rins de Bruxelas. A Inês e o João não conheciam.

Nas entradas, a Sofia e eu acertámos no jackpot: um poêlée de coquilles de Saint-Jacques aux petits légumes. Outras entradas: os inevitáveis croquettes de crevettes (que constituiram a refeição da Xá, comida apenas pela metade ou nem isso) e um carpaccio de boeuf (também havia de espadarte) com fatias levemente mais grossas do que gostamos.

Nos pratos, uma variedade de carnes grelhadas (onglé, filet pur, entrecôte), para a Sofia, os rognons e, para mim, os ris de veau. Delicioso.

Nesse dia, já andava cansado e, principalmente no fim do jantar, com estar sentado tanto tempo de seguida e com o barulho, fiquei extenuado. No dia seguinte, fiquei na cama até às quatro e meia e só nessa altura tomei duche e me arranjei.

Mas tudo correu bem e gostei imenso. É esta companhia que me dá coragem e força. Com a família à minha roda, acho que posso enfrentar todos os obstáculos.

quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Esta noite...

Dormi como um santo. Adormeci por volta das dez e meia e aguentei até às oito da manhã. Acordei apenas uma vez. Estava (quase) cansado de estar na cama.

O dia amanheceu cinzento-escuro e eu cinzento-claro. Entre o branco virginal, que não me assenta bem, e o preto cerrado, motivo de angústia, o meu cinzento é suave e acolhedor. Fica-se por um 7 a 8 numa escala de 1 a 10. Bem bom.

Num repente, a Trezzu foi com a Céline juntar-se a uns amigos na costa belga. Tudo isto decidido entre as dez e as onze da noite. Apanharam o comboio à última da hora e voltam depois de amanhã. Esta tarde, o Dico vai tratar do computador de que precisa para a Suíça. A Sofia e o Diogo fazem caixas: a mudança é no sábado, e vão-se embora na segunda ou terça. A Inês e o João estão quase sempre comigo ou perto de mim; mas, ao fim da tarde, têm tempo e paciência para correr.

Hoje é dia cheio (!!!). Vou ao banco ao meio-dia e ao hospital (ecografia do coração) à uma e meia. Que programa... Para a semana, vou ver se consigo ir ao cinema.

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Um sorriso

Ontem, fui parar ao hospital, com dificuldade em respirar. Radiografia dos pulmões (não havia infecções) e ecografia ao coração a fazer amanhã. Parece que o meu coração é grande. Sempre o soube mas agora está medicamente confirmado.

Foi uma forma de me lembrar que tenho um cancro nos pulmões e que nada disto é particularmente agradável. Ponto positivo é que dormi bem; e, como sempre, de manhã, sinto-me melhor. É a fadiga dos dias que me quebra.

Enfim, outro dia... Um sorriso. E muita gente a mimar-me...

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Nieta

A melhor fotografia da Nieta que tenho, em formato antigo que não posso transferir para o computador, é a do meu casamento com a Zé, em que ela e o Zé Alberto foram meus padrinhos de casamento. Estava com um vestido roxo e a sua habitual capa de vison. Nestes últimos anos, depois dos seus problemas de coração, envelhecera imenso: emagrecera, tinha dificuldade em movimentar-se, caía frequenttemente. Residia, com o Zé, com quem estava sempre a discutir, numa clínica cujo nome esqueço, onde, nas minhas férias, ia almoçar com ela. Comida de hospital, talvez um pouco melhor do que aquela que me servem em Saint-Luc; mas não menos insípida e deslavada nem mais variada. Mas o que me interessava era estar com ela e com o Zé: eram minha Mãe e meu Pai adoptivos.

Casal sem filhos, a Nieta e o Zé gostavam particularmente de alguns filhos de amigos (o Miguel, o António Maria, eu). Gostavam também dos sobrinhos da Nieta, Pedro e Rodrigo, filhos do seu irmão Lecas, que morreu cedo, com a idade do meu Pai e poucos anos depois dele. Nesta galeria de quadros, nunca me senti em segundo plano. O meu amor pela Nieta e pelo Zé, e o amor que eles tinham por mim, iluminou-me, esteve presente em todos os momentos importantes da minha vida, e sempre me confortou.

Lembro-me de duas histórias que a Nieta sempre contava quando falava de mim. Na primeira, estava eu em casa dos pais dela, quando ela ou a minha Mãe lhe tinham oferecido uma camisola e um casaco novos. Diante do espelho, peneirento, garoto que não me calava, admirava as minhas roupas novas e, segundo a Nieta, encantada, dizia: "Pois não é que estou muito bonito, Nieta?" (O carácter da criança permanece no adulto)!

A segunda passou-se num dia misturado de chuva e sol, no carro da Nieta e do Zé (ao carro eu chamava "Carochinha", marca Renault, pequenino mas com quarto portas, um modelo frequente nos anos cinquenta e sessenta de que não esqueci a forma mas não lembro a série), e, quase de certeza, quando atravessávamos o Largo do Rato. A Nieta ensinou-me esta lengalenga, que eu ainda repito a propósito de tudo e nada:

Chuva e sol; chuva e sol.
Estão as bruxas a comer pão mole.

Estávamos longe desde há vinte e quatro anos, quando vim para Bruxelas. Visitaram-me aqui em 1988. Viajámos pela Bélgica (Les Fagnes, Liège, Gant e Bruges) e pelo Luxemburgo (lembro-me particularmente da "Petite Suisse Luxembourgeoise"). Na Cidade do Luxemburgo, comprámos, o Zé e eu, dois blusões de couro azul. O meu, já desapareceu há anos, mas o Zé, que nunca perde nada, fala-me frequentemente, com orgulho, do blusão que ainda conserva, e há tempo, ainda mo mostrou.

A Nieta tinha imensa graça. Tinha paixões, reais ou fingidas: pelo Joaquim Agostinho, o ciclista, que ela acompanhava pela televisão nas etapas do "Tour de France", admirando a musculatura e os pêlos das pernas; pelas músicas insuportáveis do Tony de Matos, o exemplo acabado da canção nacional no tempo do Salazar, voz arrastada, rouca, melada, letras de um amor piegas, poemas de rima "amor e dor". A Nieta imitava-o à perfeição.

A propósito do Tony de Matos, aqui fica outra história engraçada. A Nieta era amiga da Soraya, que foi a primeira mulher do Xá da Pérsia: tinham estudado ambas no mesmo colégio na Suíça. Visitava-a com frequência e serviu de cicerone quando a imperatriz veio a Portugal para aquela festa célebre de antes do 25 de Abril na Quinta do Patiño (um milionário de origem sul-americana, estabelecido no Estoril). Tinha um tapete persa pendurado na parede e uma maravilhosa colecção de miniaturas de marfim, presentes da sua amiga. Sempre me pareceu que esta amizade pela Soraya se tinha transformado, com o tempo, num traço da personalidade da Nieta.

Mas divago. A história de Tony de Matos é a seguinte. Quando ia a Paris, a Nieta levava à Soraya, a seu pedido, discos da Amália. Uma vez, no meio deles, a Nieta, como que esquecida, deixou um disco do Tony de Matos. Depois de o ouvir, a Soraya disse ao Zé que a Nieta se tinha enganado, que lhe tinha trazido um disco de um homem insuportável, com uma voz detestável, a imitar (de longe) o Bécaud. Dizia a Nieta que tinha ficado muito triste – eu duvido...

Morreu no dia 21. Disseram-me que sem sofrimento. No estado em que estou, fico com a impressão de que a minha vida abraçará pouco mais do que o tempo que vivi com a Nieta. Mas tenho que enxotar estes pensamentos.

Sinto uma enorme pena, um desgosto de mim todo. E nem sequer posso ir a Lisboa para o enterro. Tinha planeado estar com ela no dia 6 ou 7 de Agosto (até porque sabia que estava mal) mas a anulação das minhas férias impediu-me de a ver outra vez. Estou triste, muito triste. Foram cinquenta anos de amor e amizade. Com aquela voz de onde não fugira o sotaque alentejano, que ela realçava quando queria fazer rir as pessoas.

Beijinhos. (E um beijinho muito especial ao Zé).

domingo, 22 de agosto de 2010

Boa dia - boa disposição, algumas reflexões, em fundo de Foz do Arelho

Não tive náuseas nem vomitei, não me sinto cansado, não tenho dores. Fisicamente, estou mais ou menos como antes do enfarto e de saber as notícias desagradáveis; como quando estava sozinho em Bruxelas, com o Dico, e me ocupava do dia-a-dia. (Mas não posso guiar: ordens dos médicos). A sorrir, avanço a hipótese de me ter tomado um placebo em vez dos produtos da quimioterapia e que os efeitos agradáveis que sinto tenham apenas razões psicológicas; mas já aprendi, nestas poucas semanas, a não desprezar as melhoras seja qual for a sua origem. Só conhecerei os resultados da quimioterapia daqui a pouco mais de um mês; e é natural que, depois das próximas sessões, me sinta pior. Até lá, deixem-me gozar estes momentos. Consegui ficar com a minha neta esta noite: conversámos e ela vai descer em breve para ver os desenhos animados na televisão. Estas pequenas vitórias assumem proporções de triunfos épicos.

Esta tarde, quando a Carol e o António telefonarem, vou-lhes propor que passemos na Filigranes para ver os livros e, talvez, comprar um ou outro. Já há muito tempo que não passo pela Filigranes, em parte porque andava cansado, em parte porque a livraria começou a aborrecer-me. Mas é mais prudente do que ir, por exemplo, à Tropismes: mais central, cadeiras onde, se necessário, me possa sentar, e a possibilidade (longínqua) de grignoter qualquer coisa.

Só o sol desapareceu e Bruxelas cobrou-se da sua habitual capa cinzenta. Chove. Por isso, pus aqui uma fotografia da Foz do Arelho, praia da minha mocidade, adolescência e juventude. É este o mar que amo.

Começo a colocar-me perguntas simples mas provavelmente irrespondíveis e ao mesmo tempo, paradoxalmente, importantes sobre a minha doença. Porquê tão depressa? Porquê sem sinais, sem aviso, sem possibilidade de reagir? Porquê esta descoberta quase fortuita? A pior pergunta é: Porquê eu? Sei que tudo isto se resume, afinal, a um conjunto de circunstâncias infelizes em torno das quais involuntariamente rodo e não faço tenções de centrar a minha luta nestas questões: seria um desperdício de recursos. Mas quero compreender a minha doença, o cancro (falo da minha doença mas não falo do meu cancro: este quero eliminá-lo), porque esta compreensão faz parte da minha maneira de a vencer. Por isso, é que a franqueza, o conhecimento exacto do meu estado, mesmo com notícias que, por vezes, são desagradáveis (metástases! Outra palavra que gostava de abolir), constituem elementos essenciais da minha cura.

Não sou religioso. Não tenho o consolo do além. Não acredito que, num dia claro, por entre trompetas, espíritos e corpos se reencontrem para uma reunião final, de alegria, bondade e glória divina. Respeito os que acreditam e reconheço que essa convicção lhes dá conforto, alívio e força. Mas eu encontro tudo isso em coisas terrenas: no amor das minhas filhas e do meu filho, das minhas netas, dos meus genros, desta família que me rodeia e enche de ternura, na amizade de alguns, na recordação de outros que já desapareceram. De qualquer maneira, não seria aos cinquenta e cinco anos que trocaria as minhas convicções por promessas ilusórios de salvação. Sempre encarei a morte como um longo silêncio escuro mas sereno e não mudei de opinião.

Assim, entre espezinhar o"mostrengo" e recusar o bálsamo de um além descrente, decido-me a ir em frente, a lutar, a batalhar. O primeiro passo (a quimioterapia de ontem) foi uma vitória. Sinto-me bem. A pequenos passos (quem sabe?), posso percorrer grandes espaços.

sábado, 21 de agosto de 2010

Quimioterapia - o dia seguinte

Afinal, até agora, tudo se passou muito bem. Nenhum problema com a perfusão (o líquido deixou de correr por momentos mas tudo se regularizou) e saí do hospital, como previsto, hoje de manhã. Escrevo ao princípio da noite e não tive náuseas ou vómitos e a sensação de cansaço imenso de que me falaram ainda não chegou. (Espero mesmo que não chegue). Por tudo isto, estou satisfeito. Depois de mais duas sessões a intervalos de três semanas fazemos um balanço para saber se os resultados são bons. Até lá, falarei doutras coisas e, sobretudo, de menos hospital.

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

Quimioterapia










Esperança. Optimismo.
Mas brrr...

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Trezzu




Sacudam-se as maleitas, encha-se a casa do cheiro das festas, ouça-se o som das conversas, do barulho das caçarolas, das travessas, dos pratos, do tinir dos talheres e copos.

Inunde-se a casa de amor, de ternura, de amizade.

Acolha-se alegria, cor, luz. (De manhã, parece até que o tempo melhorou).

A Trezzu faz vinte anos. Hoje é o meu tempo de beleza e felicidade ,o meu oásis.

Beijinhos et je t'aime beaucoup.

E o João também faz 29 anos hoje.

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Emagrecendo... e outras notícias

Se, há quatro meses, me dissessem que podia emagrecer dez quilos, teria ficado feliz. Comecei mesmo a minha habitual dieta de Verão e limitei-me a comer frutas e legumes; de qualquer maneira, não me apeteciam grandes comezainas. Durante algumas semanas, fiquei orgulhoso do meu progresso em lançar quilos pela borda fora. Agora, que emagreci muito mais do que os dez quilos previstos, tenho alguns "second thoughts". Assim, decidi que, quando esta porcaria desaparecer, vou-me empanturrar de comida. Mas, com estes meus anos de comida francesa, com esta "patine" de que já não me desfaço e que nem sequer noto, não me lançarei sobre um bacalhau cozido, que detesto, nem sequer sobre uma feijoada ou um cozido, de que ainda gosto. Eis a minha primeira refeição de gente, provavelmente aqui ao lado, no "Brasero": tranche de foie gras, 6 huîtres de Zelande, ris et rognons de veau e, para sobremesa, ainda hesito: crême brûlée e, salade de fruits sauvages, moelleux au chocolat, sabayon? Com refeições deste género, devo recuperar rapidamente o peso...

O Dico (e o João) chegam hoje. Boas notícias. Dormi bastante bem e tive muito menos dores. (As almofadas foram mesmo uma excelente aquisição). Estou bastante bem disposto mesmo se a manhã está tão cinzenta e feia como a de ontem. Mais novidades da médica ao longo da manhã ou da tarde.

terça-feira, 17 de agosto de 2010

Amanhecer

Acordo com as galinhas, ou mesmo antes delas (como saber em pleno centro da cidade?). Algumas dores... As almofadas que comprei com a Sofia são óptimas. Dormi pouco mas bem. As manhãs, mesmo com as dores, são o melhor momento do dia. Ainda na cama, sinto-me como que me visto de matizes alegres.

Quando desço para a sala, o embate da realidade é duro. Quem me dera que, ao olhar pela janela, não deparasse com esta mistura de cinzento, escuro e chuvoso. Mas não é depois de vinte e quatro anos em Bruxelas que vou começar a lamentar-me pelo tempo.

Quero retomar essa sensação de vida e de maravilhoso que acompanha o meu despertar. E continuar com ela durante o resto do dia. Penso nas minhas filhas, no meu filho. Dá-me alento.

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

Boa Esperança

Este é o Cabo da Boa Esperança, que Bartolomeu Dias atravessou quando ainda se denominava Cabo das Tormentas. D. João II mudou-lhe o nome para sublinhar o futuro magnífico dos navegadores portugueses: a descoberta (do caminho marítimo) da Índia. Dominado o Adamastor, "o mostrengo que está no fundo do mar", ficou a vontade do monarca português.

Também eu me encontro diante do meu Cabo das Tormentas e, como o rei, quero mudar-lhe o nome para Boa Esperança. A minha doença é grave mas tudo farei para vencê-la. Conto com a ajuda das minhas filhas, da Sofia, da Inês, da Trezzu, do meu filho, do Dico, dos meus outros dois filhos que são o Diogo genro e o João, e de alguns grandes amigos. Conto com o meu ânimo e o meu optimismo. Empenharei todas as minhas forças nesta batalha, que é a mais importante de toda a minha vida. E espero que também eu possa impor a minha vontade, atado ao meu leme onde sou mais do que eu, a este mostrengo que se agora ergue na minha passagem. E que, espezinhado, ele se acolha no fundo do mar e de lá não desperte.



O MOSTRENGO

O mostrengo que está no fim do mar
Na noite de breu ergueu-se a voar;
À roda da nau voou três vezes,
Voou três vezes a chiar,

E disse: «Quem é que ousou entrar
Nas minhas cavernas que não desvendo,
Meus tectos negros do fim do mundo?»
E o homem do leme disse, tremendo:

«El-Rei D. João Segundo!»
«De quem são as velas onde me roço?
De quem as quilhas que vejo e ouço?»
Disse o mostrengo, e rodou três vezes,

Três vezes rodou imundo e grosso.
«Quem vem poder o que só eu posso,
Que moro onde nunca ninguém me visse
E escorro os medos do mar sem fundo?»

E o homem do leme tremeu, e disse:
«El-Rei D. João Segundo!»
Três vezes do leme as mãos ergueu,
Três vezes ao leme as reprendeu,

E disse no fim de tremer três vezes:
«Aqui ao leme sou mais do que eu:
Sou um povo que quer o mar que é teu;
E mais que o mostrengo, que me a alma teme

E roda nas trevas do fim do mundo,
Manda a vontade, que me ata ao leme,
De El-Rei D. João Segundo!»

Fernando Pessoa
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