A melhor fotografia da Nieta que tenho, em formato antigo que não posso transferir para o computador, é a do meu casamento com a Zé, em que ela e o Zé Alberto foram meus padrinhos de casamento. Estava com um vestido roxo e a sua habitual capa de vison. Nestes últimos anos, depois dos seus problemas de coração, envelhecera imenso: emagrecera, tinha dificuldade em movimentar-se, caía frequenttemente. Residia, com o Zé, com quem estava sempre a discutir, numa clínica cujo nome esqueço, onde, nas minhas férias, ia almoçar com ela. Comida de hospital, talvez um pouco melhor do que aquela que me servem em
Saint-Luc; mas não menos insípida e deslavada nem mais variada. Mas o que me interessava era estar com ela e com o Zé: eram minha Mãe e meu Pai adoptivos.
Casal sem filhos, a Nieta e o Zé gostavam particularmente de alguns filhos de amigos (o Miguel, o António Maria, eu). Gostavam também dos sobrinhos da Nieta, Pedro e Rodrigo, filhos do seu irmão Lecas, que morreu cedo, com a idade do meu Pai e poucos anos depois dele. Nesta galeria de quadros, nunca me senti em segundo plano. O meu amor pela Nieta e pelo Zé, e o amor que eles tinham por mim, iluminou-me, esteve presente em todos os momentos importantes da minha vida, e sempre me confortou.
Lembro-me de duas histórias que a Nieta sempre contava quando falava de mim. Na primeira, estava eu em casa dos pais dela, quando ela ou a minha Mãe lhe tinham oferecido uma camisola e um casaco novos. Diante do espelho, peneirento, garoto que não me calava, admirava as minhas roupas novas e, segundo a Nieta, encantada, dizia: "Pois não é que estou muito bonito, Nieta?" (O carácter da criança permanece no adulto)!
A segunda passou-se num dia misturado de chuva e sol, no carro da Nieta e do Zé (ao carro eu chamava "Carochinha", marca
Renault, pequenino mas com quarto portas, um modelo frequente nos anos cinquenta e sessenta de que não esqueci a forma mas não lembro a série), e, quase de certeza, quando atravessávamos o Largo do Rato. A Nieta ensinou-me esta lengalenga, que eu ainda repito a propósito de tudo e nada:
Chuva e sol; chuva e sol.
Estão as bruxas a comer pão mole.
Estávamos longe desde há vinte e quatro anos, quando vim para Bruxelas. Visitaram-me aqui em 1988. Viajámos pela Bélgica (
Les Fagnes, Liège, Gant e Bruges) e pelo Luxemburgo (lembro-me particularmente da "Petite Suisse Luxembourgeoise"). Na Cidade do Luxemburgo, comprámos, o Zé e eu, dois blusões de couro azul. O meu, já desapareceu há anos, mas o Zé, que nunca perde nada, fala-me frequentemente, com orgulho, do blusão que ainda conserva, e há tempo, ainda mo mostrou.
A Nieta tinha imensa graça. Tinha paixões, reais ou fingidas: pelo Joaquim Agostinho, o ciclista, que ela acompanhava pela televisão nas etapas do "Tour de France", admirando a musculatura e os pêlos das pernas; pelas músicas insuportáveis do Tony de Matos, o exemplo acabado da canção nacional no tempo do Salazar, voz arrastada, rouca, melada, letras de um amor piegas, poemas de rima "amor e dor". A Nieta imitava-o à perfeição.
A propósito do Tony de Matos, aqui fica outra história engraçada. A Nieta era amiga da Soraya, que foi a primeira mulher do Xá da Pérsia: tinham estudado ambas no mesmo colégio na Suíça. Visitava-a com frequência e serviu de cicerone quando a imperatriz veio a Portugal para aquela festa célebre de antes do 25 de Abril na Quinta do Patiño (um milionário de origem sul-americana, estabelecido no Estoril). Tinha um tapete persa pendurado na parede e uma maravilhosa colecção de miniaturas de marfim, presentes da sua amiga. Sempre me pareceu que esta amizade pela Soraya se tinha transformado, com o tempo, num traço da personalidade da Nieta.
Mas divago. A história de Tony de Matos é a seguinte. Quando ia a Paris, a Nieta levava à Soraya, a seu pedido, discos da Amália. Uma vez, no meio deles, a Nieta, como que esquecida, deixou um disco do Tony de Matos. Depois de o ouvir, a Soraya disse ao Zé que a Nieta se tinha enganado, que lhe tinha trazido um disco de um homem insuportável, com uma voz detestável, a imitar (de longe) o Bécaud. Dizia a Nieta que tinha ficado muito triste – eu duvido...
Morreu no dia 21. Disseram-me que sem sofrimento. No estado em que estou, fico com a impressão de que a minha vida abraçará pouco mais do que o tempo que vivi com a Nieta. Mas tenho que enxotar estes pensamentos.
Sinto uma enorme pena, um desgosto de mim todo. E nem sequer posso ir a Lisboa para o enterro. Tinha planeado estar com ela no dia 6 ou 7 de Agosto (até porque sabia que estava mal) mas a anulação das minhas férias impediu-me de a ver outra vez. Estou triste, muito triste. Foram cinquenta anos de amor e amizade. Com aquela voz de onde não fugira o sotaque alentejano, que ela realçava quando queria fazer rir as pessoas.
Beijinhos. (E um beijinho muito especial ao Zé).