Vozes de Bruxelas
sexta-feira, 31 de agosto de 2007
quinta-feira, 30 de agosto de 2007
Antiguidade e cunhas
Nestes tempos em que se fala tanto de promoções por mérito e é sinal de irremediável tolice defender o valor da antiguidade (embora, estranhamente, a regra não se aplique aos lugares de topo), é interessante notar que, no início, a promoção por antiguidade representou um importante passo na luta contra habituais formas de nepotismo e contra os «favores» (na altura, a palavra «cunha» ainda não era utilizada neste sentido) que determinavam as carreiras na administração pública e, principalmente, na diplomacia. Com efeito, a exigência, para a nomeação para funções relevantes (como as de embaixador), de um certo número de anos de serviço, tentava evitar que tais lugares fossem preenchidos apenas por nobres ou burgueses favorecidos pela realeza e apoiantes do ministério ou em troca de serviços prestados. (Foi introduzida, aliás, mais ou menos ao mesmo tempo do que a exigência duma formação escolar mínima para se aceder a certos postos e carreiras.) Numa altura em que tanta nomeação depende de certificados de bons serviços partidários, e em que se perde, um pouco por toda a parte, uma essencial memória funcional que residia nos empregados mais antigos, parece-me útil relembrar estas coisas. Mesmo sabendo que há muitos «antigos» que não sabem o que fazem.
Leituras de Verão - Balzac
Como previsto, faltou-me o tempo para ler mais do que Balzac mas consegui acabar Illusions perdues e Splendeurs et misères des courtisanes, para além de um conto estupendo La Femme abandonnée que põe em cena Mme de Beauséant, uma das personagens da Comédia Humana, antiga amante do Barão Miguel de Ajuda-Pinto (nobre português para cuja inspiração Palmela terá certamente contribuído), friamente abandonada por este para permitir o seu casamento com «une demoiselle de Rochefide». A ideia de retomar a leitura de Stendhal (Le rouge et le noir) ficou no domínio das boas intenções. Chegado a Bruxelas, continuo em Balzac, com Le père Goriot, em que são apresentadas algumas das personagens dos dois livros que acabei de ler.
Que dizer de original sobre Balzac, depois de tanto que já foi estudado, dito, escrito, filmado, passado em documentário de televisão? Balzac é um extraordinário romancista social, o maior de todos os tempos. A sua obra é um testemunho íncomparável sobre a sociedade da primeira metade do século XIX francês. Não há, em qualquer cultura, nada que se aproxime da obra de Balzac, que tenha o mesmo fôlego, a mesma dimensão. Assim, tudo aquilo que possa aqui escrever tem muito de circunstancial: nãp passa, na verdade, de um comentário a um comentário de Vasco Pulido Valente feito a propósito de Camilo Castelo Branco.
Um artigo de Pulido Valente, lido em Portugal, informava os leitores do Público que o cronista aproveitava as suas férias de Agosto em Lisboa, quando a cidade é acolhedora, para reler Camilo. Segundo ele, dois temas recorrentes atravessam a obra do escritor português: a religião, que ritma a vida de todos, dos mais ricos aos mais pobres, dos nobres aos camponeses; e o sexo, escondido, reprimido, inconfessado, mas, por isso mesmo, objecto de desejo vivo e de magníficas estratégias, secreto, calado, mas sempre presente em corpo e espírito, exasperado, apaixonado, brutal. Em Balzac, é o dinheiro que constitui o tema central, a justificação de todas as condutas, a razão de vícios e torpezas: o dinheiro que se tem e, principalmente, que não se tem. A necessidade de fortuna é opressiva porque a riqueza é critério de sucesso, fonte de ascensão social ou, perdida, de degradação e esquecimento. Todo a sociedade descrita por Balzac vive em função das rendas, da terra, da especulação financeira; ou da pequena trapaça, da burla ou dos truques mesquinhos que permitem adquirir alguns tostões. O sexo existe, de forma bem mais clara do que em Camilo, assistindo-se nele, aliás, a uma curiosa inversão de papéis sociais: as damas da alta sociedade comportam-se, relativamente a ele, como reles rameiras; e as cortesãs como mulheres honradas. Mas a sua força real é singularmente reduzida. Mesmo a homossexualidade de Vautrin, a paixão libertina, primitiva e brutal que é o fio condutor desta personagem, parece ceder o passo perante a necessidade de assegurar a Lucien os meios que lhe permitam casar na alta nobreza; e Vautrin pretende sobretudo «viver através de Lucien». Por seu lado, a religião não desempenha papel fundamental - eu atrever-me-ia a dizer: quase nenhum papel. As mulheres nobres «font leur pâques» (ou seja, comungam e confessam-se quando o exigem as regras da Igreja, sem mais); o resto do mundo, ou é ateu, ou limita-se a seguir distraído os preceitos religiosos tradicionais; ou nem sequer isso. As mulheres «desonradas» não vão para conventos; quando são nobres, retiram-se para as suas terras de província. (Aliás, o conceito de «desonra» tem mais a ver com as consequências sociais da conduta - quando por exemplo esta conduz à separação entre marido e mulher, que é inadmissível - do que com a imoralidade das acções condenadas. Ter amantes não é, para nenhuma mulher da alta sociedade, motivo de vergonha. De modo nenhum!)
Em comparação com Camilo, cuja linguagem quase nunca deixa de nos maravilhar, talvez seja de recordar as palavras de um crítico francês segundo o qual Balzac é um grande romancista mas não um grande escritor. É como se a necessidade imperiosa de tudo dizer o fizesse esquecer o estilo. Em Balzac há uma urgência que é incompatível com um laborioso burilar de frases ou excessivos cuidados na escolha das palavras. A sua prosa é uma torrente, uma enxurrada impetuosa de expressões e vocábulos, que são eficazes sem necessariamente serem belos. Mas as suas obras não são menos poderosas por isso. Bem pelo contrário!
E depois há que não esquecer que este formidável escritor morreu aos cinquenta e um anos deixando milhares e milhares de páginas escritas e uma obra monumental La Comédie humaine, composta de dezenas de romances, novelas e contos filosóficos que descreve como nenhuma outra obra em nenhum outro tempo uma sociedade nos seus mais ínfimos detalhes, nobres e sórdidos, romanescos e administrativos, da capital, das cidades, da da província (vejam-se, por exemplo, sobre a sociedade provincial, as primeiras páginas do conto que referi – La femme abandonée – que a resumem em breves pinceladas). Nela se retratam a nobreza, a finança e a burguesia, os miseráveis, os intelectuais e jornalistas, os polícias, espiões e oficias de diligência, credores e devedores, etc., etc., ou seja toda a gente, todo o mundo, da França no seu tempo.
Balzac era um homem de génio, e aos homens de génio, ao contrário dos outros, pode perdoar-se a pressa.
quarta-feira, 29 de agosto de 2007
Páre, escute e olhe - Uma pequena ideia para Portugal
Uma das coisas que mais me irritou nestas curtas férias passadas no pequeno torrão plantado à beira-mar foi a arrogância de certa gente a quem, não se sabe porquê, se deu entrada nos jornais e nas televisões. Quero aliás apresentar as minhas desculpas a Helena Matos, cronista no Público que aqui critiquei recentemente. Com efeito, ao lado da maioria dos que agora por aí andam a considerar-se cronistas ou fazedores de opinião, ela pode com alguma justiça ser considerada como um modelo de equilíbrio. Por exemplo um artigo numa edição de domingo do Diário de Notícias, de que não guardei cópia tal o nojo que me provocou, numa rubrica chamada «O Sexo e a Cidália», apresentava opiniões, expressões e palavras de que nem o José Vilela que, nos meus tempos de miúdo e adolescente, escrevia e desenhava os textos de revistas bastante ordinárias, se lembraria – e tudo isto em lugar de honra num jornal com o DN …
Mas o que principalmente me aflige é a forma como essas senhoras e esses senhores pensam saber tudo. Parecem todos formados na escola do «Nunca tenho dúvidas e enganar-me está fora de questão», que foi, noutros tempos, apanágio de Cavaco Silva (e mesmo assim, quando pronunciou estas palavras que fizeram data, o actual Presidente teve o cuidado de confessar que, às vezes, embora muito raramente, até ele tinha dúvidas!)
Vem isto a propósito doutra crónica, dum jornalista cujo nome esqueci, também publicada no Diário de Notícias, sobre o limite de velocidade de 50 km/hora recentemente imposto em certas vias, avenidas e ruas de Lisboa. Embora tendencialmente favorável a medidas como esta, concedo que esta questão dos limites de velocidade, e de fixá-los nos 50 km/hora, merece discussão - não é evidente que tenha sempre razão quem os defende. A mim parece-me, mas sublinho que se trata somente duma opinião, que a maioria dos estudos mostra que a limitação de velocidade é geralmente acompanhada duma importante diminuição do número e da gravidade dos acidentes rodoviários; e, por isso, que é batalha perdida a dos que se lhe opõem porque, nos tempos de hoje, basta que uma só morte seja atribuída a excesso de velocidade (e como negá-lo?) para que, mais tarde ou mais cedo, todos tenhamos que nos habituar a conduzir mais devagar. Mas tudo isto deve ser discutido e pesados os prós e contras de cada posição! Agora, o que é seguramente errado é que alguém trate uma questão como esta na base duma imputação de motivos financeiros à Câmara de Lisboa (as multas serviriam, segundo o jornalista, para encher as caixas vazias do município chefiado por António Costa), usando frases bombásticos do género «abaixo os ladrões» e recusando sequer considerar a possibilidade de que a medida em causa possa ser ditada por motivos racionais e ter efeitos positivos. Eu, por exemplo, assisti na televisão a uma conversa com um oficial da Brigada de Trânsito que dizia nada ter a opor aos GPS que indicam a posição dos radares porque o objectivo principal da instalação destes era o de obrigar os automobilistas a reduzir a velocidade - o que seria conseguido mesmo se eles fossem advertidos da sua posição pelo sistemas de localização geográfica.
Tudo isto para dizer que, em Portugal, temos certezas a mais! E também pressa: veja-se a decisão recente do Ministério da Administração Interna de impor o controlo de drogas aos automobilistas sem exceptuar de tal controlo, por exemplo, calmantes e antidepressivos que muitas pessoas tomam por indicação médica – só para ter que vir a corrigir-se, de forma algo ridícula poucos dias depois. Há a ideia – que Cavaco Silva, enquanto Primeiro-Ministro muito fez para firmar nas mentes lusitanas – que o pior de tudo é a inacção. É como as reformas, pelo menos na linguagem e no pensamento de Sócrates: elas são o contrário do imobilismo e, por isso, sempre positivas (favorecem a criatividade, a inovação, o espírito de iniciativa e o empreendedorismo – palavra que felizmente não existe em português mas corre o risco de ser criada por repetição abusiva!) Ora, muito ganhariam os portugueses se parassem uns tempos para pensar e consagrassem alguns momentos da sua vida a ouvir os outros. (Quem me conhece, poderá dizer: «Bem prega Frei Tomás!» Mas isso é outra conversa.)
Parar, escutar, olhar! Quem diria que o dístico das passagens de nível da CP teria aplicação no domínio da política nacional?
segunda-feira, 27 de agosto de 2007
Eduardo Prado Coelho (1944-2007)
Ainda em Lisboa, por entre malas e últimas compras a fazer, surgiu-me a notícia da morte de Eduardo Prado Coelho. Não o conhecia, excepto, como a maioria dos portugueses, pelas suas crónicas no Público, sob o título O Fio do Horizonte, e por outras intervenções duma vida que não se passou no anonimato. Sempre hesitei, ao apreciá-lo, entre a irritação por uma certa arrogância (mas sempre doce) e a admiração por aqueles momentos em que, parecendo deixar-se ir, nos regalava com crónicas transbordantes de sentido de humor. Para mim, era nesses instantes, em certos comentários a um quotidiano de que ele sabia apreciar os momentos tantas vezes ridículos, que melhor se notava o seu talento. Homem de talento mas não homem de génio? Que importância tem isso? Nestes momentos, emociona-me o exemplo de uma vida cumprida e a tristeza sentida por aqueles com quem a viveu.
Eduardo Prado Coelho deixa, segundo quem sabe dessas coisas, uma obra crítica importante, de que o exemplo que melhor conheço é o seu longo prefácio à edição da poesia completa de David Mourão-Ferreira. Mas principalmente, numa época em que isso se torna raro, deixa um espaço vazio: o espaço de um intelectual, de um homem de cultura e de convicções. No deserto de ideias em que se transformou Portugal, ao menos, com todos os seus defeitos, com alguma estridência e com boa intenção, tinha algo para nos dizer, algo com princípio, meio e fim, produto de reflexão bem estruturada – a comparar com a maioria da gente que agora se considera pronta para escrever em jornais e de que pude ler, durante o Verão, os textos inanes, esperando apenas, mas sem convicção, que a (falta de) qualidade fosse apenas uma consequência do tempo quente e da silly season. Por isso, de Prado Coelho, vai assim fazer-nos falta a crónica no Público – que nos apetecia ler mesmo que fosse para podermos dizer que não concordávamos com o que ele para ali dizia.
E aqui fica o poema que lhe dedicou Vasco Graça Moura, seu amigo, por vezes seu adversário, lido no enterro.
quando morre um amigo não se sabe o que se há-de dizer,
só que nos faz muita falta, que gostávamos da sua
presença, de saber que nos trazia uma relação diferente
com o mundo e connosco e que também isso
era inquietação, conhecimento e alegria. e há-de ser
sempre duro e difícil aceitar
que a voz que ele tinha, os gestos que fazia,
os seus encantamentos, até as suas manias, a sua maneira de andar,
ficam só na memória entre outras sombras e silêncios.
a vida continua, sim, o mundo continua,
todos dizemos isso e sente-se uma precária segurança,
uma surda música de alívio porque não é ainda a nossa vez,
e continuam os rios e os mares, as nuvens e os continentes,
as derivas da história, as coisas do dia-a-dia,
mesmo que um amigo morra, e continuam
os homens e os seus conflitos, e continuam
as coisas mais belas e as mais sórdidas, as mais pungentes e as
que nos marcam a esperança, mesmo que morra
um amigo que não voltaremos a ver e se tenha tornado
apenas uma íntima presença.
nós pressentimos tudo isso porque temos
de agarrar-nos a qualquer coisa, e ainda mais
quando morre um amigo e nos vem a certeza
de que uma parte de nós, do que nos explica, do que é
a nossa geração morre com ele.
(Vasco Graça Moura, 2007)
quinta-feira, 9 de agosto de 2007
Leituras de Verão
Que vou ler neste Verão? A minha lista deixará muita gente surpreendida. Nela, só obras de, ou sobre, o século XIX, todas em releitura.
Balzac – Illusions perdues; Splendeurs et misères des courtisanes; se possível, algumas das Nouvelles
Stendhal – Le Rouge et le noir (Se me sobrar algum tempo depois de Balzac. Escolhi Le Rouge et le noir por ser, de todos os romances de Stendhal, que é uma espécie de autor culto para mim, aquele em que sempre senti maior dificuldade em «entrar»)
Hobsbawn – Para me dar o pano de fundo: The Age of Revolution, The Age of Capital, The Age of Empire
Porquê esta escolha? O principal responsável é Stephen Vizinczey, escritor e crítico nascido na Hungria em 1933. Exilado forçado, depois da insurreição de Budapeste em 1956, instala-se no Canadá e torna-se conhecido em França, a partir de 2001, com o sucesso do seu livro Eloge des femmes mûres: les souvenirs amoureux d'Andres Vajda – um romance de iniciação onde, através da recordação das mulheres «maduras» que Andres e/ou o autor amaram, assistimos à sua evolução, à sua passagem de de rapaz a homem e a velho, numa Hungria de um certo desespero. Mas falo de Vizinczey por causa de outro dos seus livros: Vérités et mensonges en litératture. É por ele que, este Verão, levo comigo Balzac e Stendhal em vez de autores modernos. No primeiro artigo desta recolha de crónicas literárias, Vizinczey dá dez conselhos a escritores. O principal (que já era também o de Calvino) é o de ler, reler e reler ainda os autores clássicos. E, para Vizinczey, o século XIX é o século do romance francês e russo. Os romancistas ingleses, mesmo Dickens, não têm segundo ele a mesma dimensão, o mesmo «souffle épique» dum Balzac, dum Stendhal, de Pouchkine, Gogol, Tolstoï ou Dostoïevski. Devemos lê-los sempre e em toda a parte. E, claro, em tradução se não pudermos lê-los no original. Para Vizinczey, isso não constitui problema. Numa frase extraordinária, ele diz que o maior dramaturgo francês é Shakespeare em tradução francesa assim com os maiores romancistas ingleses são os franceses e russos que referi atrás em tradução inglesa.
Por isso, parto para o Algarve com esta gente. É boa companhia.
segunda-feira, 6 de agosto de 2007
Lavar o carro
Os belgas adoram lavar os seus carros. Sozinho em Bruxelas, ao fim da tarde pego na bicicleta e dou uns passeios pelo quarteirão. Não é raro ver duas ou três pessoas, inevitavelmente de sexo masculino, homens ou rapazes (neste caso, presumo que por insistência dos pais), a esfregar vigorosamente as carroçarias de carros parados em frente de vivendas. Parecem fazê-lo com gosto, mesmo que o gosto seja apenas o de poupar os 25 euros que custa uma lavagem no centro comercial de Woulwe. Eu, que me lembre, nunca lavei o meu carro (e se alguma vez o fiz, esqueci-me!) E não tenho a sorte de ter filhos que se dediquem a tais trabalhos, embora seja verdade que, quando viveram comigo em Bruxelas, a Sofia e Inês o tivessem feito, mais do que uma vez, na garagem comum do nosso apartamento. Por isso, em vez de o lavar, mando lavá-lo. O carro fica, aliás, mais limpo do que se fosse eu – ou o Dico – a fazê-lo. Sem sombra de dúvida.
quinta-feira, 2 de agosto de 2007
Lembrança de minha Mãe com Bergmann como pano de fundo
Bergmann morreu e, dum artigo no Nouvel Obervateur, retiro esta sua frase lindíssima dita a propósito da morte da sua quinta e última mulher, Ingrid: «Je pensais que la mort était juste une transition entre quelque chose et rien. Mais Ingrid... je sais que je ne la verrai plus. L'humanité pense à la mort depuis toujours sans le savoir. C'est aussi simple que ça: je veux revoir Ingrid.» Como eu, em relação à minha Mãe: tão simples como isso, gostava de voltar a vê-la.
quarta-feira, 1 de agosto de 2007
O Muro de Berlim e os balbuciamentos de Helena Matos
Não consigo compreender como é que o Público oferece a última página do jornal (num em cada dois dias) a Helena Matos. Supostamente, ela representa um pensamento de direita, por oposição a Rui Tavares que representaria, ele, o pensamento de esquerda, numa espécie de transcrição para a imprensa escrita do célebre programa Crossfire da CNN. Mas o problema, com Helena Matos, é que pensamento não há. Nem de esquerda, nem de direita, nem sequer qualquer coisa que viesse duma mistura dos dois.
Na sua crónica de hoje, esta senhora insurge-se contra o chamado «pensamento positivo», posição com a qual eu até poderia estar de acordo mas que perde toda a sua força em face dos argumentos apresentados - que mais são, como o diz o título desta crónica, «balbuciamentos» («balbuciar» é definido no dicionário, entre outros sentidos, como «falar com hesitação e sem conhecimento perfeito do assunto.») Poupo os leitores do meu blogue à inanidade dos raciocínios aí apresentados e, infelizmente, mesmo se tivessem grande vontade de mergulharem nessas águas mornas, nem vale a pena indicar-lhes o link porque o acesso à edição on-line do Público é restrito.
(Por vezes, Helena Matos faz-me lembrar dois livros de um professor francês, Jean Charles, que há anos atrás me fizeram torcer de riso a ponto de a minha Mãe acorrer ao meu quarto para saber o que me teria acontecido. Chamavam-se, respectivamente, La foire aux Cancres et Le livre Rouge des Cancres. (Cancres pode ser traduzido por cábulas.) Neles, o autor juntava frases pescadas em provas de exame, em discursos parlamentares, em artigos de jornais, etc., que representavam asneiras involuntárias. Um dos exemplos que nunca esquecerei era o do aluno que, numa redacção sobre Richelieu, dizia que este, para impedir os nobres de se matarem estupidamente em duelo, os mandava decapitar. Solução, como se vê, radical para o problema enfrentado pelo Cardeal - que o teria resolvido, segundo o fraco estudante, um pouco à maneira de Helena Matos)
Assim, ri à gargalhada (e depois tive vontade de chorar) com uma das últimas frases do artigo em causa: «Mas, pragmática como sou, não posso deixar de recordar que o Muro de Berlim caiu porque umas mãozinhas o deitaram abaixo (…)» Palavra? E eu que pensava que o Muro de Berlim tinha caído porque, por um conjunto de circunstâncias que agora seria fastidioso enunciar (e principalmente porque houve, durante anos e anos, muita gente que pensou que ele podia cair e nunca desesperou; e essa gente encontrava-se, na maioria dos casos, do lado de lá, e não do lado de cá, do muro), se tornou possível que ele fosse derrubado, numa explosão de liberdade e alegria que são, até prova em contrário, coisas que relevam mais do mundo espiritual do que do mundo material. Até porque as tais mãozinhas sempre existiram (e foram também elas, o que parece escapar a Helena Matos, que construíram o muro.) Mas, simplesmente, não podiam encarregar-se do trabalho físico de o deitar abaixo porque ainda não tinha sido percorrido esse caminho que permitiu que o pensamento (esse «livre pensamento» pelo qual tantos foram presos e alguns mortos) e a imaginação duns quantos que nunca cessaram de acreditar finalmente vencessem. Não fossem esses, não fossem as suas ideias, as suas convicções, a sua força, a sua luta, e ainda hoje essas mãozinhas estariam a abanar.
E passo sobre a última frase que, essa, me parece absolutamente incompreensível, e que só aqui refiro à espera que alma caridosa me escreva a esclarecer o seu significado: «E o pensamento positivo, por mais positivo que seja, não é suficiente para ser pensamento.» (Para ser honesto, é talvez uma falha tipográfica e a frase devia acabar com a palavra «acção». Mas, com Helena Matos, nunca se sabe!)
Enfim, tudo isto tem, pelo menos, a vantagem de dar algum colorido a uns dias em Bruxelas que, porque toda a gente se foi embora, têm sido particularmente difíceis de suportar.