domingo, 30 de agosto de 2009

Pot pourri: Rebelo de Sousa, Cavaco Silva, Pina Moura, Ted Kennedy

Dois comentários infelizes, ou mesmo disparatados, de Marcelo Rebelo de Sousa, pescados aqui e ali em edições dos jornais de hoje, retiveram a minha atenção.







Em primeiro lugar, o conhecido analista elogiou Cavaco Silva pela sua recusa em comentar as notícias sobre as pretensas escutas do Governo à Presidência da República. Afirmou Marcelo: «Pôs ponto final nas especulações dizendo isto: não me misturem nas lutas pré-eleitorais, estou fora e acima disso, e não se brinque com coisas sérias». Mas, se bem me lembro (e garanto-vos que a minha memória não anda tanto assim pelas ruas da amargura), foi um elemento da Casa Civil da Presidência da República que deu origem a esta brincadeira com coisas sérias. Assim, é difícil não comprender José Lello, dirigente do Partido Socialista com o qual estou quase sempre em desacordo, quando ele declara que as críticas de Cavaco se dirigiram à sua própria Casa Civil, «porque a situação foi criada por fontes anónimas de lá oriundas» e que seria natural que o Presidente se preocupasse com isso. A verdade, nua e crua, é que, desta forma, o Chefe do Estado intervém, de forma descarada, na campanha eleitoral. Espero que se lembre que o feitiço pode facilmente virar-se contra o feiticeiro.


A outra declaração de Marcelo que me deixou, literal e não metaforicamente, de boca aberta, tem a ver com o aplauso que também dirigiu a Pina Moura, antigo Ministro da Economia e Finanças de Guterres, actual Presidente da Iberdrola Portugal, por este se ter referido, em termos positivos, ao programa eleitoral do PSD, comparando-o favoravelmente com o do PS. Rebelo de Sousa considerou mesmo que esta posição tem um duplo significado. Por um lado, trata-se de «um ex-ministro importante do Governo de Guterres que vem dizer que concorda mais com o programa do PSD do que com o programa do seu próprio partido (...) o que não pode deixar de ter importância política». Por outro, estas declarações «mourísticas» revelam, na opinião do comentador, «um percurso que deve ser sublinhado», pois Pina Moura começou no PCP, depois esteve em lugares de responsabilidade no PS, e, mais tarde, converteu-se à economia de mercado, com funções de responsabilidade em grupos económicos multinacionais. Há aqui, continua Marcelo, um percurso (desculpem a repetição de palavras mas a responsabilidade não é minha) que, «se quiser dizer alguma coisa, quer dizer o afastamento do Estado e a aproximação do mercado e, se quiser dizer alguma coisa em termos de generalização, quer dizer que a teoria de menos Estado e mais mercado, é uma teoria que tem nele um bom símbolo para as gerações vindouras».

Tenho a impressão, neste último caso, que o suposto elogio esconde e disfarça uma crítica verrinosa (patente, desde logo, naquele se quiser dizer alguma coisa). Na verdade, não me parece que seja muito lisonjeiro marcar, desta forma, a incoerência e mesmo o oportunismo da carreira de um homem político que vai do comunismo ao liberalismo, ao sabor de participações em governos e empresas – e da participação em empresas por causa da participação em governos. Esse não foi, pelo menos, o percurso de Marcelo, sempre fiel ao seu partido (embora não aos seus dirigentes). Eu, pela minha parte, não gostaria de ser elogiado (?) desta maneira. Mas quem sabe? Talvez as coisas se passem de forma diferente entre espíritos que se encontram nas mesmas estâncias de férias algarvias.


Eu sei que o que vou dizer a seguir se passa noutra galáxia e, sobretudo, com outras personagens – mas é pena. Assistimos, nestes últimos dias, ao tributo comovido que os Estados Unidos dirigiram a Edward Kennedy na altura da sua morte. Ouvimos elogios vindos de democratas e republicanos, amigos e adversários, senadores, congressistas, o presidente e todos os ex-presidentes vivos, que salientaram o seu exemplo de homem dedicado ao seu país, a uma digna e corajosa concepção da política e à causa e serviço público. Um momento de grande emoção aconteceu quando o cortejo fúnebre passou em frente das escadas do Capitólio, onde estava, de pé, a maioria dos colaboradores de Kennedy ao longo dos 47 anos que passou no Senado – e isto por Kennedy não era apenas um político extraordinário mas um homem apaixonado, amigo, dedicado, atento e bom.

Ora, Ted Kennedy não foi recordado por ser um cata-vento. As suas convicções não estavam à venda, nem sequer ao sabor de modas ou de conveniências passageiras. Não se converteu às doutrinas de Reagan quando estas petendiam dominar a América e nem sequer às ideias do seu amigo Clinton quando este, por algum tempo, deu um tom centrista ao Partido Democrata. Ele era, orgulhosamente, um liberal da velha guarda – the liberal lion of the Senate. Foi, é certo, um homem que sabia negociar com os seus adversários e que tinha o sentido do compromisso. Mas sempre compreendeu que a negociação só é possível para quem não abdica, nem duvida, das suas próprias convicções. As cedências que fez – e muitas foram – incidiam sobre os meios, a razão prática, nunca sobre os fins nem, muito menos, sobre os seus valores, o seu sentimento do que era justo e bom. Atrevo-me a acreditar que foi por nunca ter renunciado aos seus ideais que sempre mereceu o respeito dos seus amigos e adversários. E tenho a certeza de que ele, velejador exímio, que conhecia a importância de saber de onde sopram os ventos, preferiria partilhar o seu barco com adversários fiéis do que com amigos oportunistas.

segunda-feira, 24 de agosto de 2009

Viva o Povo Brasileiro - João Ubaldo Ferreira

Desde quando tenho este livro? A edição portuguesa é de 1995. Devo tê-lo comprado nessa altura ou, no máximo, um ou dois anos mais tarde. Não o li. Outros livros, melhor publicitados, se devem ter atravessado no meu caminho. Que se passava comigo em nessa segunda metade da última década do século passado? Andaria cansado... enlouquecera... estaria bêbedo? Viva o Povo Brasileiro é um dos livros mais extraordinários que jamais foi escrito em português. Não: não tenho medo das palavras. É um enorme romance. Uma obra-prima.

Voltei a pegar nele este ano – 2009!!! – depois das férias, acicatado pela leitura do Leite Derramado, de Chico Buarque, e pela releitura, levado pela crítica que notava a sua influência em Buarque, de Dom Casmurro, de Machado de Assis.

Ubaldo Ribeiro conta-nos uma história do Brasil vista pelos olhos dos negros, mulatos, mestiços, cafusos, caboclos, mamelucos, crioulos; dos escravos da plantação ou roça, das mucamas ou macumas; de todos os pobres e humilhados. Nas suas palavras, este povo, esta gente, com os seus ritos, as suas tradições preservados pelos velhos, pelos cegos contadores de histórias e por uma oralidade que se recusa a deixar-se vencer pela versão escrita e oficial, a sua religião, as suas tradições, os seus amores, as suas vinganças, representa a essência da brasilidade. Mentem os arquivos, cujos autores são pagos para enfeitar a genealogia das personagens que se dizem importantes – ou seja, dos que, a troco de mentiras, vigarices e falcatruas, se apoderaram do poder. Daqueles que, muitas vezes vindos de um nada que detestam e transformam depois em ascendências nobres e estrangeiras, financiam a história ensinada nas escolas e repetida nas repartições.

Mentem, sobretudo, os arquivos dos brancos. E isto porque a negritude é vista como um defeito das classes inferiores, responsável pelo eterno atraso do país, travado na sua possível marcha para o desenvolvimento económico, o progresso material e moral, o conhecimento e a ciência, por essa multidão de negros, escravos ou libertos (alforriados), arreigada a tradições místicas e confusas que a clara razão não consegue vencer. Nesta versão dos factos, é a preguiça, a moleza, a modorra, dessa gente desqualificada, que impedem que uma estreita e mentirosa elite, desesperada de não ter nascido e não viver nessa Europa de que nunca fez parte mas que constitui o paraíso a que aspira, de andar para a frente, de transformar a enorme riqueza natural do país num instrumento de poder.

Pelo contrário, na epopeia de Ubaldo Ribeiro, nesta enorme aventura do povo brasileiro, guardada em prosa agora como a dos portugueses em verso por Camões, são precisamente estes que viveram e vivem sob grilhetas que constituem a essência desta terra de pau-brasil e é através deles que se construirá a grandeza do país. Numa frase que resume o livro, o objectivo dos que lutam «não é bem a igualdade mas a justiça, a liberdade, o orgulho, a dignidade, a boa convivência», tudo aquilo que é negado aos oprimidos pelos homens que dispõem do poder e pelo sistema que os perpetua nele.

Será apenas pela união, pela junção, pelo enlace, entre as várias camadas da população brasileira (daí a referência à boa convivência), simbolizada no livro, pelo amor de Patrício Macário, filho do pardo Amleto Ferreira, mulato, mesclado, que termina a vida como banqueiro poderoso depois de ter roubado o patrão branco e nobre e de ter mudado o nome para Ferreira-Dutton, com a chefe de bando, heroína da liberdade, Maria da Fé, Dafé, que o país poderá transformar-se. Mas essa união só pode fazer-se, como no livro, quando os brancos, que aqui significam os poderosos, descerem ao encontro dos que nada têm, senão a vida e uma espécie de confiança no futuro que resiste a todas as contrariedades. É Patrício Macário que se acolhe aos ritos negros e, desta forma, consegue encontrar o descanso que é como que uma espécie de felicidade. E é ele que, no dia da sua morte, que é também o dia dos seus cem anos, resume numa expressão (O Espírito do Homem) a esperança de que as coisas mudarão.

Para além de tudo isto, Viva o Povo Brasileiro é um festival da língua portuguesa. Às vezes, a leitura é difícil, tal a riqueza do vocabulário do autor e a expressividade das suas frases, numa mistura de diferentes falares que são o espelho fiel da amálgama das gentes que formam o povo brasileiro. Mas vale a pena prosseguir, se necessário, como me aconteceu, com dicionário ao lado, ou tomando nota das palavras para conferir, mais tarde, o seu significado. Há muito, muito tempo, que não encontrava uma tal profusão de palavras, frases, expressões, gritos imitados, onomatopeias, sons de animais, barulhos duma natureza luxuriante…

Leiam especialmente a descrição do concílio dos deus afro-americanos (páginas 440-454) que, depois de muitas tratações, decidem apoiar o povo brasileiro na Guerra do Paraguay. Clara referência a Homero e a Camões, são, desta vez, deuses com nomes estranhos que se imiscuem na vida dos homens: Oxalá, pai dos homens, filho único de Olorum, senhor da alvura, mais alto entre todos; Oxóssi, incomparável caçador da madrugada, senhor da astúcia, rei das matas, imbatível no arco e na flecha; Xangô, rei de Oió, senhor do raio, senhor da igi-ará, atirador de pedras; o poderosíssimo Ogum, ferreiro sem par, senhor da ferramenta, singular no combate, cujo nome é a própria guerra e que, por orgulho injustificado, se recusa primeiro a defender o seu povo mas depois retrocede na sua decisão por intervenção de Iansã, senhora dos ventos e tempestades, raínha dos espíritos, valente e ousada como os tufões, de bravura irresistíve, que deixa claro que nunca mais se deitará na sua cama se ele ficar quieto enquanto morrem os seus filhos barsileiros; e Exu, o que come de tudo, amigo dos cachorros, mensageiro dos orixás, o que ri na escuridão e conhece mil ardis e se deleita em estratagemas. Só não participa na batalha (mas estará presente depois dela, para cobrar o seu tributo em mrtes porm doenças e infecções) Omolu, deus das pestes, mestre da bexiga e dos furúnculos, senhor das epidemias, aquele que mata sem faca. Os deuses, que vieram de África com o seu povo, acompanhando os escravos, ajudam os brasileiros e é com eles que estes vencem.

Livro estupendo, extraordinário, estimulante; livro fascinante, misterioso; livro profuso, como folhagem de floresta tropical; livro mágico, sombrio, alegre, mulato e mestiço; livro heróico, trágico, paródico; livro de gente livre, livro de liberdade... Livro de um homem que olha o passado do seu povo e nele descobre a essência da sua vida colectiva... Livro por que rimos, por que choramos. Livro de heróis humildes e de gente suja e brava. Livro de um povo, livro de uma nação, livro de um continente, de uma civilização.

O que é o romance? O que é a literatura? Numa palavra: este livro. A criação de um universo animado, presente... Uma mensagem de liberdade: a vida!

Podia continuar por muitas e muitas páginas. Como sempre, limito-me a dizer: leiam o livro. Agora, estão prevenidos. Não se queixem se passarem, como eu quase passei, ao lado do que pode facilmente considerar-se a maior obra em prosa da literatura em língua portuguesa da segunda metade do século XX.

Com as duas netas

Se não fosse o Diogo, que tirou a fotografia, eu não teria a cabeça cortada. Mas, provavelmente, a minha careca ficaria em desagradável evidência.

Constança - No colo do Avô

Nem nos lembramos como são pequenas quando nascem. Cabem, quase, na palma da nossa mão.

Constança sem boné

No dia seguinte, depois de lhe terem tirado o boné...

domingo, 23 de agosto de 2009

Nelson Évora e o «Sobe e Desce» do Público

A coluna Sobe e Desce do Público anda a merecer diagnóstico seguido de tratamento editorial. Há dois ou três dias, dava um sinal menos a Nelson Évora pela medalha de prata obtida nos mundiais de atletismo de Berlim. Nem quero pensar o que dirão amanhã de Naide Gomes, quarta no salto em comprimento (uma posição que nos desapontou mas que não permite considerar que a atleta não se esforçou).

Não sei exactamente quantas medalhas de ouro, prata ou bronze Portugal alcançou nos Jogos Olímpicos, nem quantos primeiros, segundos ou terceiros lugares tivemos em campeonatos do Mundo ou da Europa. Mas sei que não foram muitos! Melhor dizendo: sei que foram muito poucos.

Dizer que, para Nelson Évora (aliás, só vencido por um salto impressionante do seu adversário mais directo), a medalha de prata é uma derrota é o comentário dum desportista de salão, habituado a participar em provas de atletismo quando confortavelmente sentado num fofo sofá diante duma televisão de último modelo. Se todos temos o direito de ficar desiludidos, e já assim apenas porque Nelson Évora é um atleta excepcional, o nosso direito é de partilhar a sua enorme desilusão (compatir, como se diz em francês) e nunca o de ficarmos desiludidos contra ele.

Oh! Como a crítica é fácil quando feita de roupão e pantufas, enquanto a criada nos serve a chávena de chá... Ou na esplanada da esquina, com os pés à fresca em havaianas, em frente de um branco bagaço...

Sporting

Sou, ao que parece, dos poucos sportinguistas que acham que Paulo Bento é um treinador incapaz. Gostava de me enganar mas o resultado desta noite, contra o Braga, não me dá grandes motivos de esperança. Julgo que a cara desta fotografia diz (quase) tudo: o pobre Bento não sabe o que pode fazer. A equipa vai continuar a acumular maus resultados e espero, sinceramente, que não nos encontremos a duas jornadas do final do campeonato a perguntarmo-nos se o Sporting não vai descer de divisão. Se isso acontecer, não me chamem de profeta. Mas deixem de dizer que o Paulo Bento é bom treinador. Já agora, a propósito, em termos de resultados, que é que esse senhor conseguiu? Pior, muito pior, que José Peseiro!

Praia Maria Luísa - Derrocada

Durante anos seguidos, passei o Verão na praia Maria Luísa. Ainda lá o passam os meus primos e os meus sobrinhos. Tanto basta para ter ficado consternado com a notícia da derrocada de uma falésia que provocou a morte de cinco pessoas.

O que é grave é que de há muito que um tal desastre se anunciava. As pessoas que gritam contra controlos e fiscalizações ficam, nestas ocasiões, mudas de vergonha e com as faces encarnadas. Ninguém atendia aos cartazes que chamavam a atenção para o perigo. Contudo, se esse canto da praia tivesse sido interdito, assistiríamos por certo às reacções histéricas daqueles que também se indignam com a ASAE mas, ao mesmo tempo, fazem queixa se uma bola de berlim estragada é servida numa pastelaria.

As construções nas arribas algarvias são um escândalo que só pôde existir em troca de somas faraónicas pagas a autarcas corruptos e pouco interessados na vida ou no bem estar das populações autóctones ou dos turistas, nacionais ou estrangeiros. Para mais, apoiados por gente, no Algarve e em Lisboa, que se convenceu de que, em matéria de turismo, tudo vale, e de que as receitas turísticas justificam entorses às leis e aos ditames do bom senso... Foi sempre assim no Algarve, que décadas e décadas de disparates justificados por uma falsa concepção do desenvolvimento económico transformaram de lugar paradisíaco em inferno urbanístico. Perto da falésia que caiu, há habitações que nunca deveriam ter sido autorizadas e que deveriam mesmo ser deitadas abaixo.

Estas mortes não deviam ter ocorrido. Se estivéssemos noutro país, ainda teríamos a sensação de que se aprenderia com os erros do passado. Foi assim em França, por exemplo, quando o grande incêndio na região das Landes, há precisamente cinquenta anos, em que morreram mais de oitenta bombeiros e habitantes, levou a que fosse totalmente repensada a forma de reagir a inevitáveis (o que, no caso da Maria Luísa, nem era verdade: tudo isto era facilmente evitável) catástrofes naturais. Infelizmente, estamos em Portugal. Depois de um período de luto e de tristeza, tudo voltará ao normal. Preparem-se Presidente da República, Primeiro-ministro, ministros e autarcas para fazer visitas com cara de enterro aos lugares e nas ocasiões semelhantes que o futuro inevitavelmente nos reservará.

sexta-feira, 21 de agosto de 2009

E a Xá - contentíssima...

E a minha neta Xá é verdadeiramente especial. Deviam tê-la visto, no restaurante, a gritar pelo telefona para as tias Inês e Trezzu: «A Constança já nasceu». Beijinhos para quem, a partir de hoje, se tranformou em la grande sœur.

Constança - 21 de Agosto de 2009

Nasceu hoje, com 3,140 quilos e 52 centímetros. Tudo bem. Muito parecido com a irmã, maior (a Xá tinha apenas 2,6 quilos), cabelo algo mais claro. Estamos encantados. E eu, já a peguei ao colo...

Escutas - O silêncio de Cavaco

Esta questão de uma alegada vigilância da Presidência da República pelo Governo e de escutas, obviamente ilegais, feitas a colaboradores do Chefe do Estado, para além da sua imensa gravidade, tem o condão de transformar pessoas normalmente inteligentes em autênticos atrasados mentais.

Assim, por exemplo, na entrevista que deu ontem a Judite de Sousa, Manuela Ferreira Leite disse esta coisa extraordinária: «Não quero saber se há escutas ou não. As pessoas sentem que há». Como acontece frequentemente quando se trata das declarações da chefe do PSD, belisco-me para me certificar de que estou mesmo acordado. Porque esta declaração é simplesmente espantosa. Uma candidata a Primeira-Ministra não considera necessário saber se é verdade ou não que o Governo vigie (isto é, controle por meios ilegais) o Presidente da República – no que seria, não apenas uma ilicitude desculpável (se é que esse monstro existe), mas pura e simplesmente um crime. Basta-lhe que as pessoas (que pessoas?) o sintam. Podia contrapor-se a Ferreira Leite que muitas pessoas (outras pessoas, por certo) também «sentiram» que a sua decisão de manter António Preto e Helena Lopes da Costa nas listas do PSD era errada. Mas a questão em causa é mais importante do que este exercício fácil de enumerar as contradições nas atitudes duma pessoa que pode vir a ser, após as eleições, Presidente do Governo.

Por outro lado, na sua coluna de hoje, no Diário de Notícias, um jurista, Paulo Pinto de Albuquerque, escreve um longo artigo dando de barato precisamente aquilo que se deveria começar por provar: a saber, o saber se tais actos se verificaram ou não. (De forma semelhante, António Capucho considera que as escutas existem porque, senão, o Presidente já teria declarado que não existiam). Para Pinto de Albuquerque, as escutas são criminosas e o responsável é o Primeiro-Ministro. Ao mesmo tempo, algo contraditoriamente, considera que tais alegações (anónimas, feitas sem que ninguém dê a cara por elas) deveriam impor uma imediata reacção por parte da Procuradoria-Geral da República - o que, diga-se de passagem, parece implicar que existam dúvidas quanto à existência de crime e, sobretudo, quanto aos seus responsáveis. Não acredito, com efeito, que um jurista como Pinto de Albuquerque pretenda condenar o Primeiro-Ministro sem lhe dar sequer a oportunidade de se defender.

José Sócrates também não tem reagido da forma que devia. A sua atitude é, contudo, mais compreensível. O Primeiro-Ministro encontra-se numa situação quase impossível, em que a sua única real opção é a de pretender estar confrontado com meros disparates de Verão. Na verdade, se concedesse importância àquelas afirmações, teria que renunciar ao cargo. De duas, uma: ou tais suspeitas se confirmavam, e impunha-se a sua demissão, culminando num final ignominioso da sua carreira política; ou não se confirmavam, e a demissão seria mesmo assim inevitável, por se ter quebrado o laço de confiança mínimo que deve existir entre o Presidente e o Chefe do Governo, com a consequência de se tornar impossível a sua necessária colaboração institucional. Mas, para azar e desespero de Sócrates, estas alegações não são daquelas que se podem afastar como meras asneiras infantis. Verdadeiras ou falsas, elas colocam em causa a democracia, o Estado de direito e a confiança dos governados nos órgãos e nas pessoas que os governam. Verdadeiras ou falsas, elas são gravíssimas.

Cavaco Silva, por seu lado, tem andado ainda pior neste inacreditável enredo. Atente-se nisto: um seu assessor ou conselheiro vem dizer a um jornal que existe em Belém um clima de consternação relacionado com uma pretensa vigilância do Governo sobre a Presidência. Ora, de duas, uma: ou o Palácio de Belém tem provas de que o Governo anda a vigiar ou escutar o Presidente (ou, o que é o mesmo, os seus colaboradores) – e o Presidente tem a estrita obrigação (repito: não se trata de uma faculdade mas de um dever) de demitir o Primeiro-Ministro; ou essas provas não existem – e o Presidente devia demitir o assessor e ponderar seriamente a possibilidade de também se demitir. Não há meio-termo. Como se dizia, no meu tempo, na Faculdade de Direito: tertium genus non datur.

Neste sentido, também se pronuncia uma das poucas vozes sensatas que se fizeram ouvir sobre este assunto: a de José Miguel Júdice (no Público de sexta-feira). «Suspeitas deste género colocam em risco o Estado de direito pelo simples facto de serem admitidas. E espirram para cima do Presidente da República, que não pode nem deve perante elas escudar-se num silêncio prudente, mas muitíssimo ruidoso». Não penso que se possa dizer melhor.

Mas este é um caso em que, ao contrário do que é habitual, o principal culpado é o mensageiro. Que tipo de jornalismo é este? Um jornal com as responsabilidades do Público aceita publicar comentários anónimos de um alegado colaborador da Presidência da República sobre uma questão desta importância sem um mínimo esforço de investigação? Aceita transformar-se em caixa-de-ressonância de boatos sem sequer se dar ao trabalho de controlar as suas fontes? Tivessem os jornalistas do Washington Post, na altura do Watergate, assumido idêntica posição e Richard Nixon teria terminado o seu mandato com toda a naturalidade. Confrontado com uma informação desta gravidade, que faria um jornal digno desse nome? Investigaria, aprofundaria o assunto, acumularia provas que avaliaria de forma ponderada e com o rigor que a severidade das alegações exige; e só depois viria a público e, nessa altura, sem concessões, exigindo, em grandes parangonas, a demissão do Primeiro-Ministro.

Mas, como estamos em Portugal, segue-se o caminho fácil de lançar suspeitas, de transmitir suposições, de fomentar desconfianças... Que se vão transformar rapidamente em fumo sem fogo mas não sem deixar marcas numa democracia já desmoralizada. E é precisamente isso que nos devia interpelar.

quarta-feira, 12 de agosto de 2009

Bandeiras, hinos, Portugal

No passado dia 10 de Agosto, um grupo de monárquicos munidos de escadote em vez de espadas subiu à varanda principal da Câmara Municipal de Lisboa e substituiu a bandeira da cidade, que aí se encontrava hasteada, pela bandeira da Monarquia. Como seria de esperar, o caso não provocou grande celeuma nem controvérsia de maior. Pesem embora estas graças reais, em Portugal, a questão do regime (República ou Monarquia) é uma questão resolvida. Quase ninguém, em seu perfeito juízo, se atreveria a voltar a um regime em que a chefia do Estado é determinada pelo facto de nascer numa dada família um bebé que seja o primeiro filho varão (ou, se já morreu, o seu filho ou neto ou bisneto, ou um seu irmão ou primo ou parente, ou... Fiquemos por aqui nos arcanos segredos das regras de sucessão!) do rei anterior. Mesmo se os portugueses gostassem de tradições (e não gostam: perguntem a Mário Soares!), a restauração da monarquia seria sempre inimaginável, sem falar de que transformaria o país numa anedota universal. Para além disso, o herdeiro do trono não ajuda: está-lhe estampado na cara o espírito dos Braganças. Alguns acham graça a ver a sua fotografia nas revistas sociais. Mesmos esses não ficam impressionados com a ideia de o ver a viver em Belém, ou na Ajuda a receber dignatários estrangeiros, ou em Vila Viçosa a preparar a próxima caçada!

Pela minha parte, tenho tendência a apreciar estes gestos anárquicos que não envolvem violência. Acho graça à ideia de um grupo de jovens e menos jovens desejar passar a noite em tais traquinices. Significa, pelo menos, que nem todos estamos mortos - embora possa ser diferente a conclusão que se tira a respeito do estado mental duma pequena parte do povo que somos. Mas, tudo pesado e ponderado, acho que devíamos receber estas notícias com alguma dose de sentido de humor.

Acontece que, durante as minhas férias em Lisboa, comprei um livro de ensaios de Vasco Pulido Valente - aliás, uma mera colectânea de trabalhos já anteriormente publicados, o que não resultava claro da folhinha enrolada na capa que o publicitava como a última obra de Pulido Valente. Na página 54, lê-se o seguinte: «No começo de 1911 o conservadorismo português exigia que se guardasse a bandeira azul e branca da Monarquia (sem a coroa), em vez de a substituir pela bandeira encarnada e verde do PRP [Partido Republicano Português]; que o hino nacional fosse a Maria da Fonte e não A Portuguesa (...)»

A vantagem disto que a que os seus autores chamaram, com disparatado exagero, uma acção revolucionária, foi que pudemos ver a bandeira da Monarquia e ouvir a Maria da Fonte. Julgo que já pouca gente se lembraria duma e doutra se é que alguma vez as conheceram. A bandeira antiga é, efectivamente, muito mais bonita do que a actual (concordo com Rui Pereira, no seu artigo de hoje, no Público) - mas isto não é difícil: quase todas as bandeiras do mundo, presentes, passadas e futuras são mais bonitas que a republicana bandeira portuguesa, com aquela inacreditável mistura de feios vermelho, verde e amarelo.

A Maria da Fonte tem alguma graça mas as palavras são claramente datadas, principalmente na primeira estrofe, com a sua referência aos Cabrais. A música é mais folclórica (e alegre), menos solene, do que a do hino actual. Se soaria melhor ou pior quando ouvido nos estádios de futebol - o lugar onde, nos nossos tempos, mais se ouve o hino de Portugal, é questão de gosto. Creio que, nas pomposas cerimónias oficiais com que costumamos «festejar» os dias nacionais (o 10 de Junho, o 25 de Abril), seria uma lufada de ar fresco a opor à enjoada cadência da Portuguesa. Mas isto é apenas uma opinião pessoal e, para mais, ditada por esta minha tendência a gozar com toda a forma de exercício da autoridade. (A minha Mãe, por exemplo, gostava bastante do nosso hino actual.)

Virá a propósito recordar que, há alguns anos, por ter proposto que se mudasse a sua letra, que considerava violenta, agressiva e passadista, António Alçada Baptista quase foi condenado ao pelourinho, com Paulo Portas a chefiar a força policial que o iria apanhar a casa e conduzi-lo às masmorras? Estas coisas de bandeiras e hinos têm, ao que parece, muito que se lhes diga!

Ah! Já me esquecia. Podem ver o hastear da bandeira e ouvir a Maria da Fonte aqui:
http://www.youtube.com/watch?v=tyNMQ_fWre4&feature=player_embedded

sábado, 8 de agosto de 2009

Desgoverno

Que se passa com o PS? Será que, em pleno período eleitoral, o partido se encontra em estado de falta de inteligência avançada?

A não recondução de Lobo Antunes para o Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida é, acima de tudo, um disparate político. Independentemente de saber se existiu ou não, por parte do Governo, o compromisso de assegurar essa recondução (e até Maria de Belém Roseira se diz convencida que sim), como é que Sócrates e o PS dão mais uma vez o flanco, em período pré-eleitoral, às inevitáveis acusações de sectarismo, intolerância ou torpe vingança, principalmente depois de Lobo Antunes ter sido o co-autor de um parecer que criticava o projecto de lei do Governo sobre o «testamento vital»? Voltar a nomear Lobo Antunes não seria grande mal. Não o nomear seria sempre mau sinal: em tempo de eleições, é mera estupidez. É abrir uma polémica de que o PS devia, nesta altura, devia fugir como o diabo da cruz.

Há algo que não vai bem ali para as bandas do Largo do Rato. Por estas e por outras parecidas se perdem eleições. Desde as europeias que o PS se comporta como um cata-vento. Levou um soco no estômago que o deixou sem fala e sem ar, e o fez perder, não só o conhecimento como o tino. Ele é Sócrates a prometer mundos e fundos, quase se esquecendo que foi Primeiro-Ministro nestes últimos quatro anos. Ele é um Governo desgovernado, sem nada para apresentar, sem ideias e sem rumo. Ele são asneiras que se sucedem como se uma fada má lhes tivesse lançado uma sorte. Se não se recompõem depressa, correm o risco de cair em estado comatoso, a impor uma cura de quatro anos – na oposição!

Façam o favor de ser felizes - Raul Solnado (19 de Outubro de 1929 - 8 de Agosto de 2009)

Dizer que, com a morte de Raul Solnado, fica pobre o teatro português é uma triste banalidade. Ficamos pobres todos nós porque Solnado era, para além de um actor formidável, uma daquelas pessoas que nos faz falta. Pela sua integridade como artista, pela sua inteligência risonha, pelo seu orgulho de bem-fazer que, sem qualquer paradoxo, era parte da sua forma modesta (mas não submissa – nunca se vergou!) de estar no mundo, pela sua simpatia e entusiasmo, pelo seu amor das gentes e, talvez sobretudo, pela sua ternura – Raul Solnado era um homem que, na parvónia pretensiosa do doce torrão à beira-mar plantado, parecia ter nascido noutro mundo. Atrevo-me a exclamar que era um homem livre!

Em pequeno, ria-me a bandeiras despregadas, das suas guerras, aquelas em que ele se apresentava ao serviço de manhãzinha cedo, «estava a guerra ainda fechada» (e isto já no tempo da guerra colonial!). Ou quando, noutra rábula, deixou o seu violino em cima da mesa de um restaurante, no qual tudo o que os clientes esqueciam era aproveitado para «fazer croquetes»... Eram peças que os meus pais tinham gravado, num daqueles gravadores antigos em que a fita passava duma bobine para outra, e que eu ouvia até à exaustão e decorava, para depois os declamar diante do espelho.

No seu Teatro Villaret, interpretou alguns dos maiores êxitos populares do teatro cómico nacional. E foi nesse palco, a 24 de Maio de 1969 (dia dos meus anos), que surgiu aquele que, muito provavelmente, foi o momento mais marcante da sua carreira e um dos maiores momentos da história da televisão portuguesa: o primeiro Zip-Zip, que apresentava com Carlos Cruz e Fialho Gouveia. Ficaram célebres, entre outras, a sua entrevista a Almada Negreiros, os cantores de baladas que por lá passaram e, claro, mais algumas rábulas suas. Lembro-me duma em que ele interpretava o papel de um turista alemão, Fritz, o célebre inventor das batatas fritz, que se queixava de ter perdido a auto-estrada Lisboa-Porto logo a seguir a Vila Franca de Xira e só a ter encontrado a dez quilómetros do destino. Nós gozávamos porque sabíamos que, nessa altura, só existiam esses vinte e quatro mais dez quilómetros de auto-estrada e que, a ligá-los, havia apenas a fatídica Estrada Nacional No.1. Se eles ainda existem, a RTP Memória faria bem em passar todas as sessões do Zip-Zip – mas acho que ouvi dizer que, não se sabe porquê, as gravações se perderam.

No cinema, a sua interpretação mais conseguida terá sido a do Inspector Elias, no filme A Balada da Praia dos Cães, de José Fonseca e Costa, adaptação conseguida do magnífico romance de José Cardoso Pires.

E, num dia 31 de Dezembro ou primeiro de Janeiro, ouvi-o na televisão a desejar bom ano a todos os portugueses. E ouvi-o dizer esta frase que me parece, na sua simplicidade e sabedoria, uma das mais bonitas que foram ditas em Portugal: «Façam o favor de ser felizes». Julgo que este seria o epitáfio que ele desejaria.

Raul Solnado era um homem bom. Para os seus pares, criou e animou a Casa do Artista. Para o resto do mundo, todos nós, irradiava simpatia e transmitia o seu riso e a sua graça aos seus amigos e aos que, de mais longe, admiravam a sua arte e a sua personalidade.

Estamos mesmo muito, muitissimo, mais pobres.

Aqui fica a «Guerra de 1908»
http://www.youtube.com/watch?v=Coy9eJVEkuA

O seu a seu dono

Na entrevista que deu a Laurinda Alves (integrada no conjunto de entrevistas que esta jornalista efectuou para o jornal «i», que li pela primeira vez no meu Verão cascalense e de que gostei), Vasco Pulido Valente refere a célebre frase: «Há mais coisas entre o céu e a terra do que sonha a minha vã filosofia». E logo Laurinda afirma, pressurosa, que se trata de uma citação de Horácio.

Horácio foi um grande poeta romano, contemporâneo de Virgílio (Quintus Horatius Flaccus ou Quinto Horácio Flaco), autor, por exemplo, das Sátiras ou das Odes. Em vão, no entanto, se procuraria na sua obra a frase em causa.

Esta vem, obviamente (e tenho a certeza de que Pulido Valente e Laurinda Alves o sabem), do Hamlet, onde é dita, com efeito, por um Horácio, o amigo de Hamlet. Mas dizer que é uma citação de Horácio pode facilmente induzir em erro. Trata-se, sim, como é óbvio, de uma citação de Shakespeare. Ponto final.

Isto dito, num tempo cheio de certezas onde todos tentam impor a sua forma particular de ver as coisas, vale a pena meditar nestas palavras. Nenhum de nós conhece verdadeiramente o mundo na sua extraordinária variedade e diferença. Por isso, certas afirmações apressadas sobre o que tem, ou não tem, valor poderiam ou deveriam ser revistas e, sobretudo, ditas com a consciência dos limites de qualquer observador, por mais culto ou brilhante que seja: mesmo os génios (e há muitos que se consideram como tais sem o merecerem) não abrangem todas as coisas do mundo. Esta frase podia bem ser o lema de um jornal decente e devia impor-se a tanto jornalista e comentador que por aí anda a debitar meras opiniões que veste com o manto de verdades eternas. Moda muito presente em Portugal, a apreciar pelo que li na maioria dos jornais nestas duas semanas, pelo mais magníficas, que passei em Cascais.