Pot pourri: Rebelo de Sousa, Cavaco Silva, Pina Moura, Ted Kennedy
Dois comentários infelizes, ou mesmo disparatados, de Marcelo Rebelo de Sousa, pescados aqui e ali em edições dos jornais de hoje, retiveram a minha atenção.
Em primeiro lugar, o conhecido analista elogiou Cavaco Silva pela sua recusa em comentar as notícias sobre as pretensas escutas do Governo à Presidência da República. Afirmou Marcelo: «Pôs ponto final nas especulações dizendo isto: não me misturem nas lutas pré-eleitorais, estou fora e acima disso, e não se brinque com coisas sérias». Mas, se bem me lembro (e garanto-vos que a minha memória não anda tanto assim pelas ruas da amargura), foi um elemento da Casa Civil da Presidência da República que deu origem a esta brincadeira com coisas sérias. Assim, é difícil não comprender José Lello, dirigente do Partido Socialista com o qual estou quase sempre em desacordo, quando ele declara que as críticas de Cavaco se dirigiram à sua própria Casa Civil, «porque a situação foi criada por fontes anónimas de lá oriundas» e que seria natural que o Presidente se preocupasse com isso. A verdade, nua e crua, é que, desta forma, o Chefe do Estado intervém, de forma descarada, na campanha eleitoral. Espero que se lembre que o feitiço pode facilmente virar-se contra o feiticeiro.
A outra declaração de Marcelo que me deixou, literal e não metaforicamente, de boca aberta, tem a ver com o aplauso que também dirigiu a Pina Moura, antigo Ministro da Economia e Finanças de Guterres, actual Presidente da Iberdrola Portugal, por este se ter referido, em termos positivos, ao programa eleitoral do PSD, comparando-o favoravelmente com o do PS. Rebelo de Sousa considerou mesmo que esta posição tem um duplo significado. Por um lado, trata-se de «um ex-ministro importante do Governo de Guterres que vem dizer que concorda mais com o programa do PSD do que com o programa do seu próprio partido (...) o que não pode deixar de ter importância política». Por outro, estas declarações «mourísticas» revelam, na opinião do comentador, «um percurso que deve ser sublinhado», pois Pina Moura começou no PCP, depois esteve em lugares de responsabilidade no PS, e, mais tarde, converteu-se à economia de mercado, com funções de responsabilidade em grupos económicos multinacionais. Há aqui, continua Marcelo, um percurso (desculpem a repetição de palavras mas a responsabilidade não é minha) que, «se quiser dizer alguma coisa, quer dizer o afastamento do Estado e a aproximação do mercado e, se quiser dizer alguma coisa em termos de generalização, quer dizer que a teoria de menos Estado e mais mercado, é uma teoria que tem nele um bom símbolo para as gerações vindouras».
Tenho a impressão, neste último caso, que o suposto elogio esconde e disfarça uma crítica verrinosa (patente, desde logo, naquele se quiser dizer alguma coisa). Na verdade, não me parece que seja muito lisonjeiro marcar, desta forma, a incoerência e mesmo o oportunismo da carreira de um homem político que vai do comunismo ao liberalismo, ao sabor de participações em governos e empresas – e da participação em empresas por causa da participação em governos. Esse não foi, pelo menos, o percurso de Marcelo, sempre fiel ao seu partido (embora não aos seus dirigentes). Eu, pela minha parte, não gostaria de ser elogiado (?) desta maneira. Mas quem sabe? Talvez as coisas se passem de forma diferente entre espíritos que se encontram nas mesmas estâncias de férias algarvias.
Eu sei que o que vou dizer a seguir se passa noutra galáxia e, sobretudo, com outras personagens – mas é pena. Assistimos, nestes últimos dias, ao tributo comovido que os Estados Unidos dirigiram a Edward Kennedy na altura da sua morte. Ouvimos elogios vindos de democratas e republicanos, amigos e adversários, senadores, congressistas, o presidente e todos os ex-presidentes vivos, que salientaram o seu exemplo de homem dedicado ao seu país, a uma digna e corajosa concepção da política e à causa e serviço público. Um momento de grande emoção aconteceu quando o cortejo fúnebre passou em frente das escadas do Capitólio, onde estava, de pé, a maioria dos colaboradores de Kennedy ao longo dos 47 anos que passou no Senado – e isto por Kennedy não era apenas um político extraordinário mas um homem apaixonado, amigo, dedicado, atento e bom.
Ora, Ted Kennedy não foi recordado por ser um cata-vento. As suas convicções não estavam à venda, nem sequer ao sabor de modas ou de conveniências passageiras. Não se converteu às doutrinas de Reagan quando estas petendiam dominar a América e nem sequer às ideias do seu amigo Clinton quando este, por algum tempo, deu um tom centrista ao Partido Democrata. Ele era, orgulhosamente, um liberal da velha guarda – the liberal lion of the Senate. Foi, é certo, um homem que sabia negociar com os seus adversários e que tinha o sentido do compromisso. Mas sempre compreendeu que a negociação só é possível para quem não abdica, nem duvida, das suas próprias convicções. As cedências que fez – e muitas foram – incidiam sobre os meios, a razão prática, nunca sobre os fins nem, muito menos, sobre os seus valores, o seu sentimento do que era justo e bom. Atrevo-me a acreditar que foi por nunca ter renunciado aos seus ideais que sempre mereceu o respeito dos seus amigos e adversários. E tenho a certeza de que ele, velejador exímio, que conhecia a importância de saber de onde sopram os ventos, preferiria partilhar o seu barco com adversários fiéis do que com amigos oportunistas.