sexta-feira, 29 de agosto de 2008

Ainda a escultura Zuerst die Füsse

Segundo nos informa o Público de hoje, a administração do Museu Museion decidiu, apesar dos protestos do governador e do Vaticano, da greve da fome e das palavras papais manter a escultura em exposição. De salientar apenas que o Ministro da Cultura do Governo Berlusconi, Sandro Boni, também se juntou à festa dizendo que «ficaria feliz se as instituições públicas ou financiadas pelo público não exaltassem apenas as provocações inúteis ou o nonsense». Como já disse várias vezes neste blogue, les bons esprits se rencontrent toujours. Mas desta vez, pelo menos, o resultado não foi o que lhes convinha. Haja Deus!

quinta-feira, 28 de agosto de 2008

O Vaticano e a censura

Esta escultura é uma obra dum artista alemão, Martin Kippenberger, morto em 1997. Entitula-se Zuerst die Füsse, que o Guardian traduz como Feet first (aliás, um título que me parece vagamente absurdo). O autor considerava-a um auto-retrato que podia ilustrar a angústia ou ansiedade humanas. A obra devia ser mostrada em Bolzano mas o Presidente do respectivo Governo Regional considerou-a uma blasfémia e «a disgusting piece of trash that upsets many people». Por isso, e para convencer o Conselho Regional a impedir a exposição da escultura, entrou em greve da fome. Devo dizer que não a acho bonita nem sequer particularmente inspirada. Mas não me passaria pela cabeça proibir a sua exibição.

Ao que parece, o Papa também considera a peça insultuosa e o Vaticano chegou a publicar um comunicado declarando que ela fere «os sentimentos religiosos da muita gente que vê na cruz o símbolo do amor de Deus». O Papa apoia o pobre Presidente regional - promete-lhe certamente o céu em troca de alguns quilinhos.

Agora, pergunto eu, onde andam aqueles que criticaram acerbamente as reacções do mundo muçulmano às caricaturas dinamarquesas de Maomé? Dois pesos, duas medidas, esta convicção de que a (nossa mas não minha) velha religião católica é superior às restantes e que, por isso, pode condenar quando as outras não. Como compatibilizar, aliás, esta declaração pontifical com as célebres palavras de Bento XVI, segundo a qual existiria, no Catolicismo, uma complementaridade entre a fé e a razão que a diferenciaria das restantes religiões?

Sinto-me particularmente à vontade porque, secular, laico, ateu que sou, critico os excessos de todos os fundamentalistas, católicos e muçulmanos, mas ainda porque sempre me chocou esta pretensão à superioridade intelectual e de valores da religião católica em face da religião muçulmana. Gostaria assim de ouvir as opiniões de alguns dos nossos comentadores attitrés (Pulido Valente, Filomena Mónica, a pobre da Helena Matos, e até, para desgraça do pensamento português, António Barreto), sempre prontos a glosar o tema da guerra das civilizações e a elogiar uma pretensa superioridade da nossa cultura católica e ocidental, a referirem-se a este assunto. Aposto, contudo, que, nos jornais portugueses, ele vai cair num pacato esquecimento.

É que o que de bom veio ao mundo dessa civilização ocidental – os conceitos de liberdade individual, de autonomia pessoal e o direito a uma parte de nós independente de poderes externos, políticos ou religiosos – foi sempre conseguido contra a Igreja Católica Apostólica Romana, e não por ela. Esta é uma realidade que hoje alguns pretendem esquecer – mas ao arrepio da verdade histórica. Esta nova proibição, orquestrada pelo Vaticano, assumida por um débil mental, apenas nos recorda o que foi a política constante dessa Igreja nos séculos XVIII e XIX – que infelizmente prosseguiu, embora de forma mais disfarçada, no século XX e se prepara, ao que tudo indica, em nome de pretensos eternos valores, a continuar no século XXI. E depois admiram-se que não haja vocações!

quarta-feira, 27 de agosto de 2008

Ted Kennedy

Ted Kennedy é o último representante duma geração da sua família que definiu uma certa forma de ser e estar na política americana. Estou de acordo com Eric Hobsbawm quando ele escreve (em The Age of Extremes – The Short Twentieth Century) que John Kennedy foi «the most overrated» Presidente dos Estados Unidos do século XX. Ele representou, apenas, muito mais do que uma política aceitável (não esquecer o catastrófico episódio da Baía dos Porcos, em Cuba, e o envolvimento dos Estados Unidos no Vietname), a imagem dum homem novo, bonito, jovem, católico (ia quase dizer: de excelente família, se não fossem as ligações nazis e mafiosas do seu pai) e casado com uma extraordinária mulher, capaz de seduzir o General De Gaulle. Mas morreu cedo, assassinado, como morreu, poucos anos mais tarde, depois de ter evoluído mais à esquerda, e também assassinado por um atrasado mental, o seu irmão Robert. Deste, a imagem que guardo é a coragem e o respeito pelos seus eleitores que demonstrou ao anunciar a morte de Martin Luther King a uma assembleia de negros utilizando uma citação de Esquilo, homenageando a inteligência das mulheres e dos homens a quem se dirigia.

Edward Kennedy veio ontem à Convenção Democrática consagrar Barack Obama, transferir-lhe a estafeta dos ideais políticos do Partido Democrático (foi o primeiro orador a criticar McCain e os republicanos) e assegurar-lhe o testemunho duma continuidade que os Kennedy incarnam porque só eles são, como Péricles em Atenas, para o mal e para o bem, os guardiães dessa forma especial de estar no mundo, feita de mística e propaganda e assente no sacrifício de dois homens mortos. Que ele, com as suas palavras preciosas, tenha vindo clamar a sua confiança na mudança prometida por Obama, no preciso momento em que está a morrer dum cancro, revela bem a sua enorme vontade de influenciar as escolhas do partido. E, mais do que isso, mostra a qualidade dum homem que viveu sempre na sombra dos seus irmãos mas que, mais do que eles, desenhou uma América liberal, preocupada com a sorte dos mais pobres, defendendo ideias que estão hoje, naqueles lados e infelizmente, fora de moda. Por isso ele disse: «Nada, nada, nada me impediria de estar aqui.» E por isso disse ainda: «A esperança renasce. O sonho continua

terça-feira, 26 de agosto de 2008

Casa da Pérgola

Os melhores momentos das minhas curtas férias passei-os aqui, numa estupenda casa de turismo de habitação, perto da praia e da estação, em Cascais, onde vivi quando tinha dez anos e aonde me agrada sempre voltar. Quarto pequeno (mas barato) e uma casa de banho linda, do tamanho da casa inteira! Perto, a Praia da Conceição. Em frente, os gelados Santini (que nem sequer provei, dieta oblige) e a Livraria Galileu. Grandes conversas com a dona, Caroline Thyssen, belga de origem. Recomendou-me um dos livros mais fantásticos que li nos últimos tempos: Casa de Campo de José Donoso, escritor chileno morto em 1996, de que só tinha ouvido falar porque Lobo Antunes foi, há pouco tempo, galardoado com o prémio do mesmo nome. Chegado a Bruxelas, encomendei um outro livro seu, o único que não está esgotado: Coroação. Das minhas trocas de impressões com a Sra. Thyssen, descobri que, ao contrário do que me aconteceu, não gostou do livro de Pascal Mercier, Train de nuit pour Lisbonne, recentemente traduzido para português com o título Comboio Nocturno para Lisboa. Prometi-lhe que o leria outra vez para trocarmos novas impressões. Segundo ela, o estilo e as palavras utilizadas (incandescente e lava eram as que mais a impressionavam: palavras riquíssimas que só podiam ser repetidas com muito cuidado - disse-me que o autor devia ter lido e copiado Tazieff, um conhecido vulcanólogo francês) revelavam uma confrangedora artificialidade. Chegou ao ponto de o considerar o pior livro do ano! E contou-me que o autor, em Lisboa, numa conferência no Goethe Institut, terá sido relativamente pedante, principalmente ao comentar o livro de Carlos Luis Zafon, A Sombra do Vento, dizendo que não lia best-sellers. Mas a verdade é que, se tivesse vivido noutros tempos, não teria lido Balzac ou Dumas e, com essa atitude, teria passado ao lado dos maiores escritores do século passado, que vendiam muitos livros. (Um novo livro de Pascal Mercier, L'accordeur de pianos, acaba de aparecer na Bélgica. Depois desta conversa, hesito em comprá-lo.)

Quanto à Casa da Pérgola (onde apenas me irritou a mania de lhe dar o nome inglês: Pergola House), gostei mais do que posso confessar. Vou voltar. Esta estadia deu-me forças para regressar a Bruxelas e a este tempo chato e cinzento. Amanhã recomeço a trabalhar. Haja Deus!

quarta-feira, 13 de agosto de 2008

Férias

Para ser honesto, só preciso de me ir embora por causa de «the weather», desta chuva e destes dias cinzentos que me têm acompanhado desde o princípio de Julho. Mas este blogue vai ficar fechado até ao próximo dia 25, excepto se conseguir encontrar um cybercafé e algum tema que me interesse. Entretanto, beijos e abraços.

segunda-feira, 11 de agosto de 2008

A Geórgia e a Rússia

Mas o que terá passado pela cabeça do Presidente da Geórgia, Mikhail Saakashvili? Independentemente de qualquer razão que lhe assista (e nem isso é certo!), não se provoca um inimigo como a Rússia sem estar certo de dispor de apoios suficientes - que, neste caso, como era de esperar (basta olhar para um mapa), não vieram nem virão. Putin irá até onde lhe der jeito, provavelmente até instalar em Tbilisi (ou Tíflis) um novo regime dependente duma Rússia quase imperial... É evidente que o Presidente georgiano tem razão quando diz que, neste momento, o que está em causa não é a autonomia ou independência da Ossétia do Sul, região separatista apoiada pelos russos, mas a própria independência da Geórgia ou, pelo menos, a manutenção nesse país do regime pró-ocidental que Saakashvili pretende incarnar (embora isso não o impeça de tratar a oposição com o desprezo dos ditadores). Mas isso deveria ter estado presente no seu espírito antes de ter iniciado as hostilidades. A sua decisão só se compreende por motivos de política interna, ou seja, para tentar conseguir um apoio popular que lhe fugia. Saiu-lhe o tiro pela culatra. Bem pode queixar-se dos cobardolas dos ocidentais mas há uma diferença entre valentia e tendência para o suicídio. O único culpado é ele próprio. Mas os que vão sofrer são os habitantes deste país que, ao longo duma longa história, raramente conseguiu manter a sua independência.

domingo, 10 de agosto de 2008

Vanessa Redgrave

Fechado em casa, por causa do céu cinzento e chuvoso desta terra em que vivo há mais de vinte anos e que me recuso a chamar minha, aluguei o vídeo do filme «Atonement», baseado no romance homólogo de Ian McEwan.

Atonement» foi traduzido em francês e português por «Expiação» e eu próprio não conseguiria encontrar melhor palavra mas não deve esquecer-se que, em inglês, à ideia de pedido de perdão se junta uma ideia de reconciliação que, neste caso, embora impossível porque póstuma, sem possibilidade de aceitação por parte daqueles a quem se dirige, não sei se existe na palavra «Expiação», e que é extremamente importante no livro e – algo menos – no filme.)

Não sei se foi do tempo mas achei o filme bastante soporífico, exemplo claro dum certo cinema inglês de que não sou particularmente adepto. Excelente direcção de actores; uma câmara lenta sem imaginação; planos longos e cansativos... Confesso que sou um partidário ferrenho do cinema de acção americano e que, com o avançar da idade, esta é uma característica minha que se acentua.

Mas, nos últimos três, quatro ou cinco minutos, surge Vanessa Redgrave. Nada do que ela diz é uma surpresa para quem leu o livro: limita-se a desfazer, em algumas breves palavras, quase mais breves no livro do que no filme, a ilusão dum final feliz. Mas esta pequena parte dum filme menor é uma obra-prima.

As eleições americanas e o Supreme Court

Um aspecto que não tem sido suficientemente considerado quando se trata das eleições presidenciais americanas tem a ver com a composição do Supremo Tribunal de Justiça dos Estados Unidos – o US Supreme Court –, cuja posição, no edifício institucional americano, está longe de ser desprezível.

De há muito que os conservadores americanos, incluindo particularmente aqueles que fazem parte da «religious right» (fundamentalistas protestantes e católicos que consideram que tudo o que importa ao mundo tem solução na Bíblia e fazem desta uma interpretação literal), decidiram esforçar-se por conseguir a nomeação para este tribunal de juízes que, de forma equívoca ou inequívoca, professassem posições claramente conservadoras. Um dos seus principais objectivos é destruir a célebre decisão Roe vs Wade que institui o direito à interrupção voluntária da gravidez. Estou de acordo em temas como este não devem ser deixados à decisão dum grupo de juízes, cuja composição pode variar, se bem que lentamente, de acordo com o Presidente em funções. Com efeito, é ao Presidente que incumbe a proposta de nomeação dos juízes do Supreme Court e é muito difícil (embora não impossível – recorde-se a recusa senatorial que a maioria democrática conseguiu impor a Reagan quando este tentou nomear o arqui-conservador Robert Bork) que o Senado consiga a maioria necessária para se opor à decisão presidencial.

Por um conjunto de circunstâncias que aqui não posso enumerar (mas recomendo a leitura de The Nine – Inside the Secret World of the Supreme Court, de Jeffrey Tobin, um livro excelente que nos dá uma ideia vívida e precisa de como aquela instituição funciona intra muros), o Supremo Tribunal encontra-se praticamente dividido entre dois blocos, conservador e liberal. Para isto, muito contribuiu, como seria de esperar, Georges Bush filho, quer ao nomear John Roberts (sentado, ao meio, na fotografia ao lado) para Chief Justice – ou seja, em termos europeus, Presidente do Tribunal –, quer ao escolher um dos juízes mais reaccionários que alguma vez ocuparam um lugar na hierarquia judicial americana, Samuel Alito (em pé, adequadamente, na extrema-direita da fotografia). Georges Bush pai, quando Presidente, também tem uma grande quota-parte de responsabilidade pelo actual estado de coisas. Com efeito, quando Thurgood Marshall, o primeiro juiz negro, o homem que, enquanto advogado, apresentou as alegações no célebre processo Brown v. Board, em cuja decisão o Supreme Court que declarou inconstitucional a segregação racial nas escolas, pondo fim à hipocrisia do separate but equal (que, em nota de pé de página, a África do Sul, nos tempos do apartheid, também mentirosamente proclamava), o primeiro dos Bush propôs para o substituir Clarence Thomas (fácil de identificar na fotografia), cuja única qualificação para o posto era a de ser o negro mais conservador do sistema judicial – porque, para substituir Marshall, era politicamente necessário nomear um afro-americano embora o próprio Marshall tivesse afirmado, quando se reformou, que a cor da pele era menos importante do que a orientação política e judicial. A confirmação de Thomas pelo Congresso foi, aliás, rodeada por um enorme escândalo quando Anita Hill, uma sua antiga colaboradora, o acusou de assédio sexual (diga-se porém, em abono da verdade, que estas acusações nunca foram provadas e que, no livro de Toobin, este juíz aparece sob uma luz mais simpática do que é habitual.) O último elemento da ala conservadora é, talvez, o mais formidável de todos, pelo menos do ponto de vista intelectual (a sua arrogância e o seu carácter de «cavaleiro solitário» têm-no, ainda segundo Toobin, impedido de desempenhar um papel mais importante no funcionamento do Tribunal): trata-se de Antonin Scalia (sentado à esquerda de Roberts, à direita na fotografia), que defende uma interpretação estritamente historicista da Constituição.

(Em termos políticos, esta é a interpretação favorita dos conservadores, dado que se recusa a deduzir da Constituição direitos que os founding fathers não tivessem considerado no momento em que a escreveram: assim, por exemplo, o direito à interrupção voluntária da gravidez, que nunca teria passado pela cabeça dos autores da Constituição! Mas a interpretação literal de Scalia vai muito mais longe: assim, por exemplo, ele votou contra a recente decisão do Supremo Tribunal que permite aos estrangeiros (aliens), presos em Guantanamo como combatentes inimigos, o recurso aos tribunais americanos ordinários para contestarem os motivos da sua detenção. De acordo com Scalia, nunca os autores da Constituição pretenderiam alargar este direito a não-americanos (e este era, aliás, o consenso - errado, ao que parece - da maioria dos constitucionalistas americanos.) E segundo McCain, o candidato presidencial republicano, esta decisão, que é o resultado da mais elementar aplicação dos princípios de justiça e de direito que aprendi na Universidade e que, na altura, eram considerados tão evidentes que mesmo os professores salazaristas os não contestavam em teoria, se bem que recusassem a sua aplicação prática, constitui uma das piores decisões judiciais na história dos Estados Unidos.)

Do outro lado da bancada, estão quatro juízes liberais: David Souter (sentado, na extrema-direita da fotografia), Ruth Ginsburg (actualmente a única mulher, após o pedido de reforma de Sandra Day O’Connor), John Paul Stevens (sentado ao lado direito de Roberts) e Stephen Breyer (de pé, à extrema-esquerda). Pouco dados a controversas, a sua biografia é comparativamente menos interessante do que a dos juízes conservadores. Mas têm incarnado a resistência do tribunal à sua transformação numa máquina política ao serviço dos ideais conservadores.

Entre estes dois grupos, o juiz Anthony Kennedy (sentado, primeiro a contar da esquerda) é o voto decisivo na maioria das sentenças controversas que são actualmente decididas invariavelmente por uma maioria 5 contra 4, dependendo do lado donde sopra o vento no que se refere a Kennedy. Por isso se diz que este é, na verdade, «The Kennedy Court» e parece que a maioria dos advogados que litigam perante o tribunal constroem os seus argumentos de maneira a convencê-lo. Kennedy é uma personalidade ambígua, inequivocamente conservadora, mas com um conhecimento do mundo e uma capacidade de se deixar influenciar por uma espécie de consciência jurídica comum da humanidade, patente na sua atenção à evolução jurídica noutros países, que o tornam especial entre os juízes dos Estados Unidos, normalmente mais preocupados em olhar para o seu próprio umbigo, ou seja, para a tradição judicial norte-americana. Assim, por exemplo, ao considerar, numa decisão recente, que a pena de morte não podia ser aplicada a menores de 18 anos ou para crimes diferentes do homicídio, Kennedy apelou expressamente para esse consenso internacional, o que lhe valeu as condescendentes, mas nem por isso menos brutais, considerações de Scalia, embora ambos tenham a mesma idade e sejam aparentemente amigos. Para dar dois outros exemplos, de sinais contrários, Kennedy votou com os conservadores numa decisão que reduzia em parte o alcance da decisão Roe vs Wade, estabelecendo limites para procedimentos médicos particulares de interrupção voluntária da gravidez, mas com os liberais (e foi ele mesmo que escreveu o acórdão) na decisão relativa à pena de morte e aos detidos de Guantanamo que já mencionei.

Qual é a importância de tudo isto, do ponto de vista das eleições presidenciais? É simples. John Paul Stevens tem já 88 anos e, embora continue a desempenhar um papel fundamental no tribunal e seja geralmente considerado como o líder intelectual do grupo mais liberal, é muito provável que, pela ordem natural das coisas, o próximo Presidente seja chamado a designar-lhe um sucessor (Diz-se, aliás, que ele ainda não se retirou por saber que seria Bush a fazê-lo. Sandra Day O'Connor continua aparentemente a lamentar a sua decisão de se demitir, tomada principalmente por motivos pessoais mas que abriu a porta à nomeação de Alito, um homem que ela parece desprezar.) McCain já afirmou que nomeará juízes como Alito e Roberts: Assim, com ele, o Tribunal será colectivamente o mais reaccionário de toda a história dos Estados Unidos e capaz de ultrapassar precedentes e regras estabelecidas apenas para impor a agenda religiosa e conservadora. Pelo contrário, é seguro que Obama nomeará alguém diferente. Isto é muito mais importante do que se pensa! Trata-se duma decisão fundamental e seria, fosse eu cidadão americano ou pudessem os cidadãos do mundo votar nas eleições americanas que os afectam tanto, mais uma razão para votar em Obama.

terça-feira, 5 de agosto de 2008

Soljenitsine - O debate no Público

A morte de Soljenitsine emocionou-me. Mas as declarações que o Público decidiu inserir na sua edição on-line para a comentar, de dois dissidentes comunistas, Carlos Brito e Zita Seabra, indignaram-me. Ou seja, melhor dizendo, indignou-me a indigência do debate! (A comparar por exemplo com os artigos publicados no Le Monde. No texto que se segue, os comentários entre parênteses e em itálico são meus.)

Carlos Brito recusou uma “avaliação positiva” a Soljenitsine devido às suas posições sobre ditaduras fascistas, mas enalteceu a denúncia que fez dos campos de concentração soviéticos. “Sempre que uma pessoa morre, e uma pessoa com uma projecção pública tão grande, nós lamentamos. (Não é verdade: por exemplo, eu não lamentei nem um bocadinho a morte de Pinochet que também tinha grande “projecção pública”, seja lá o que for que isso signifique.) Mas achei-o sempre uma figura muito controversa. Por um lado era um autor importante, mas por outro sempre achei que fazia afirmações que eu, de todo, não apreciava”. (Há aqui demasiados «acho que»!)

Mas (valha-nos a ressalva!) “apesar de tudo, a importância dele como autor e como escritor não me fazia tomar em grande peso essas afirmações (...) em relação aos regimes fascistas que vigoravam na altura no mundo”. Sobre o papel de Soljenitsine na denúncia dos campos de trabalhos forçados na antiga União Soviética, Carlos Brito reconheceu a importância do autor russo. “Nesse aspecto não recuso...” (Seria difícil!) Contudo, “no balanço de tudo, em relação ao seu papel, a minha avaliação não é positiva. Embora tenha esse lado positivo, no balanço de tudo a minha avaliação não é positiva. (...) A (sua) literatura tem aspectos positivos, como autor, como criador, como original, com uma obra importante. A denúncia também é importante. Mas por outro lado, as posições públicas que assumia levam a que não tenha, sobre a figura, uma avaliação positiva”, concretizou (ou melhor, repetiu.).

Por seu lado, a ex-dirigente comunista Zita Seabra disse que o escritor russo que ontem morreu “contribuiu como ninguém para a queda do comunismo ao denunciar a existência dos campos de concentração soviéticos.” (Contribuiu como ninguém é um claro exagero, mas pode perdoar-se porque sempre é verdade que Soljenitsine contribuiu em muito para o fim do regime sociético.) Acrescentou que “perdemos (Quem? Ela? Eu? O mundo? A Rússia? Poutine?) um grande escritor, que era simultaneamente um grande intelectual e um grande político” («Grande político» não seria, de certeza, a forma como Soljenitsine gostaria de ser lembrado.).

Zita Seabra acrescentou que o contributo de Soljenitsine para a queda do comunismo foi enorme “exactamente por a denúncia dos gulag (Só para informação: os gulag, no plural, nunca existiram. GULAG é um acrónimo que não é sinónimo de campos soviéticos.) ter sido feita na primeira pessoa”. Na opinião da responsável pela editora Alêtheia, os livros do “dissidente russo (...) têm a força (que têm) por serem autobiográficos”. “Ele esteve no gulag. (...) Ele esteve lá”, reforçou Zita Seabra. (O sublinhado, a repetição. a ênfase devem ter como objectivo evitar as dúvidas que ninguém teve sobre a passagem de Soljenitsine pelos campos soviéticos!)

Zita Seabra disse ainda que a “história fez justiça a Soljenitsyne porque, depois do sofrimento e de lhe terem tirado a nacionalidade russa, pôde morrer em solo russo”. (Frase bonita. Quase me vieram as lágrimas aos olhos.)

É isto o que dois dissidentes comunistas do nosso país têm a dizer sobre Alexandre Soljenitsine, mostrando afinal e apenas a (falta de) qualidade de qualquer debate intelectual em Portugal. Em boa verdade, a culpa nem sequer é deles. Esta forma de interrogar pessoas escolhidas à pressa corresponde, na imprensa escrita, à reportagem televisiva em directo. Alguém, no Público, que necessitava de escrever rapidamente uma notícia e não sabia bem o que dizer – exactamente como se passa na televisão – contactou os dois primeiros nomes que lhe vieram à cabeça e disparou a pergunta: o que pensa de Soljenitsine, que acabou de morrer em Moscovo! O resultado só podia ser neste conjunto de inanidades.

Na edição impressa de hoje, a discussão é um pouco (mas apenas um pouco) melhor. O título é um exemplo de baixa propaganda, aproximativa e superficial: com um livro matou a ilusão soviética... E do texto parece resultar que o que sobretudo interessa aos críticos portugueses é discutir se Soljenitsine foi ou não um grande escritor ou apenas (?) um homem de intervenção política. No caso de alguém que já foi comparado a Tolstoi, esta é certamente uma questão interessante.

(A fotografia que escolhi para ilustrar este artigo – e que é quase mal empregada atendendo às opiniões aqui referidas – vem do caderno de esboços de Eufrosinia Kersnovskaya, que passou 14 anos no Gulag. No fim de contas, deve ser a coisa mais importante que fica dfestas minhas referências às lusas discussões a propósito da morte de alguém que, com as suas qualidades e os seus defeitos, marcou o século XX!)

Soljenitsine

É, para mim, muito difícil escrever sobre Soljenitsine. Tantas memórias, tantas recordações! Ainda guardo a primeira edição portuguesa do Arquipélago de Gulag (GULAG é um acrónimo representando o departamento encarregado da administração dos campos soviéticos e deriva de Glavnoye Upravleniye Ispravitel'no-Trudovykh Lagerey i koloniy), de 1975, com a sua capa entre azulada e cinzenta com um círculo amarelo a meio. As páginas já estão escuras, nessa cor de amarelo-torrado que tem o papel de má qualidade dos livros velhos…

Nunca fui comunista. Nem marxista-leninista, trotskista, maoista, ou coisa parecida. Nem aos dezassete, nem aos dezoito, nem aos vinte, nem depois, nem agora. E não concordo com a frase infeliz dum homem que muito admiro (Willy Brandt) segundo a qual para se ser bom social-democrata aos quarenta anos seria necessário ser comunista aos vinte. Na altura em que quase todos os da minha idade andavam à procura, ou duma estranha forma de socialismo sem preocupações de liberdade, mera revolta infantil de adolescentes bem nascidos contra os pais endinheirados; ou de recuperar a calma e os tons cinzentos do salazarismo perdido ou, como aqui ao lado, na Espanha dos nossos sonhos e pesadelos, do franquismo que já se adivinhava também agonizante – eu limitava-me a ser, mas ferozmente, social-democrata. Nessa altura, situavam-me à direita… Sem ter mudado muito as minhas ideias, hoje dizem-me que sou de esquerda – e é verdade que sou, pelo menos, muito mais de esquerda do que quase todos aqueles que, em 1975, me chamavam fascista ou social-fascista.

Nesse ano, a leitura do Arquipélago de Gulag veio confirmar o que eu adivinhava e que outra gente, mais velha, mais informada, já sabia: que o estalinismo era o arremedo de um ideal extraviado e Estaline um criminoso que escapara à justiça porque, no mundo irreal dos estados totalitários, como Orwell (e, já antes, Viktor Klemperer, a propósito da Alemanha nazi) nunca se cansou de afirmar, os carrascos eram os juízes e o que era crime e castigo, direito e recompensa, era decidido pelos próprios criminosos. A linguagem e os conceitos e mecanismos do pensamento não tinham existência autónoma: eram meros instrumentos ao serviço da política e da propaganda. Ninguém tinha direito a uma vida íntima: nada havia nada que se pudesse qualificar como esfera privada; a delação era encorajada, a desconfiança constante. O medo insinuava-se nos espíritos… Por um nada, uma anedota suspeita, um sorriso no mau momento, um aplauso (ou a falta de aplauso) fora de ordem, era a casa ou o quarto que se perdia, o direito de viver numa cidade, a liberdade, a vida...

Tudo isto era conhecido. Hannah Arendt já tinha publicado os seus três livros sobre o sistema totalitário, Boris Souvarine acabara, antes mesmo da guerra, em 1935, uma biografia de Estaline de onde já constava tudo o que era importante. Aconteceu, aliás, o mesmo com Hitler e um dos seus primeiros biógrafos, Konrad Heiden, cujo livro foi publicado em 1936-37. Para além duma melhor informação sobre factos – desenterrados de arquivos a que Souvarine e Heiden não podiam ter acesso – pode dizer-se que as biografias posteriores pouco acrescentaram em relação aos aspectos da personalidade de Staline e Hitler que eles não tivessem compreendido e explicado: a sua análise já dizia quase tudo. Como Arendt sempre defendeu, os traços essenciais dos regimes totalitários foram sempre conhecidos: no caso do nazismo (menos, no caso do estalinismo) foram mesmo propalados aos quatro ventos.

Qual foi, então, a importância de Soljenitsine? Pelo menos no que toca ao Arquipélago de Goulag, é, por um lado, o seu carácter de testemunho directo e de denúncia, e, por outro, a sua extraordinária força e convicção morais, que o tornam uma obra única. É que, para Soljenitsine, o regime comunista era uma manifestação do mal (mas não do mal de Reagan e Bush, mero artifício de propaganda!). Não é preciso ser-se religioso nem ter do mal a concepção sagrada que animava Soljenitsine para aceitar a sua conclusão: pode mesmo dizer-se que basta sermos humanos! Havia, no sistema soviético, um espezinhar da condição humana (que outros autores, de forma muito diferente, nunca deixaram de denunciar: estou a pensar, particularmente, em Mikhaïl Boulgakov e no seu fabuloso O Mestre e Margarida) que ainda hoje nos deixa estonteados.

Num livro extraordinário, O Mal no Pensamento Moderno, Susan Neimann explica que Auschwitz definiu um novo paradigma do mal porque tornou impossível a própria esperança. Isto, em parte, porque o mal deixou de depender da intenção humana – numa referência à ideia da banalidade do mal que Arendt referiu na sua cobertura do julgamento de Eichmann; mas sobretudo porque, a partir da experiência dos campos nazis, deixou de ser imaginável um mundo em que o mal possa fazer parte, de qualquer forma que seja, da ordem das coisas. No sentido religioso tradicional, a teodiceia permite ao crente manter a sua fé em Deus apesar da existência do mal. Se o mal é infligido ou permitido por Deus, então é um elemento do plano divino. Segundo Neimann, esta forma de pensar tornou-se impossível a partir do século XVIII e, em particular, depois de os espíritos se terem apercebido das reais consequências filosóficas do terramoto de Lisboa. Em suma, se Deus permitia estas coisas (e outras parecidas ou mais graves), então era Deus que necessitava de remendo. Num sentido moderno, a teodiceia é qualquer forma de dar sentido ao mal que nos ajude a não desesperar da nossa condição de humanos. Idealmente, a teodiceia moderna deve reconciliar-nos com o mal passado e dar-nos a possibilidade de o prevenir. Auschwitz terá mostrado que até este sóbrio conforto, esta leve consolação, não passava duma mentira. A forma do mal que os campos representaram põe ao homem moderno interrogações e dúvidas a que a sua consciência não pode nem sabe responder.

Deste ponto de vista, como qualificar um sistema que se baseia na ausência de qualquer responsabilidade individual, mesmo presumida, nos homens e mulheres enviados para os campos de morte ou de trabalho? Esta era a questão de Soljenitsine e ele nunca vacilou na resposta.

A impressão que me ficou da leitura do Arquipélago de Gulag foi a de uma obra imensa e, por isso, necessariamente excessiva: a de uma denúncia que não conhecia limites. Como disse alguém, o livro descrevia simplesmente uma fábrica – a fábrica! – de produzir o inumano. A referência ao arquipélago transportava-nos para a Grécia, berço da civilização. Com o novo arquipélago, era também uma civilização que começava, mas caracterizada por ser a negação de tudo aquilo em que, a partir dos gregos, tínhamos começado a acreditar: uma civilização caracterizada pela inexistência de valores, ou seja, de certa forma, uma civilização que era a negação da própria ideia de civilização, porque nela tudo era moldável à vontade do tirano. Na altura da publicação do livro, houve muita gente que, sem negar o que Soljenitsine afirmava, considerou no entanto que a crítica do regime soviético tinha como efeito encorajar os Estados Unidos e o imperialismo. (Os intelectuais franceses de esquerda, com Sartre à frente, foram particularmente inventivos a este propósito.) Soljenitsine não tinha paciência para estes partidários dum estranho realismo que era a exacta imagem no espelho do realismo americano, o de Kisinger e apaniguados... Para ele, no combate à tirania, não havia lugar nem tempo para hesitações tácticas: apenas luta, batalha, oposição feroz… Para ele, contra o Diabo, Deus. Para nós, que não queremos o conforto ilusório da religião, contra o totalitarismo, a defesa da liberdade. Mas ambos sacrificando a própria vida, se necessário.

Em face disso, os seus defeitos, a sua concepção da «Rússia eterna», o seu tradicionalismo político e económico, a sua intransigência religiosa, o seu reaccionarismo, o seu nacionalismo impenitente, a sua incapacidade de aceitar a modernidade, se não me deixam indiferente, pesam, para mim, menos do eu próprio esperaria. Soljenitsine não foi uma personalidade incontroversa. Não se trata dum Nelson Mandela, que todos concordamos em dar como exemplo, nem teve a grandeza deste, uma grandeza que vem sobretudo da capacidade de perdoar. Mas a sua revolta e a sua denúncia da tirania e da opressão trouxeram ao seu país e ao mundo uma dimensão trágica e uma dignidade quase altaneira («Eu sou a Rússia») que, na altura em que surgiram, representaram o que de melhor há na ideia de ser homem.

domingo, 3 de agosto de 2008

Júlio Pomar

O Diário de Notícias publica, na sua edição de hoje, uma entrevista de Júlio Pomar. Não sei qual o pretexto (não se trata do seu dia de anos, já que Pomar nasceu a 26 de Janeiro de 1926), nem a entrevista, pelo menos na versão reduzida que aparece on-line, parece muito interessante. Mas dá-me a oportunidade de saudar um dos maiores pintores portugueses (e ainda vivo) e, com a possível excepção de Paula Rego, num estilo totalmente diferente, o meu preferido. De salientar que os dois últimos Presidentes da República, Mário Soares e Jorge Sampaio, escolheram precisamente estes pintores (Soares, Pomar; Sampaio, Rego) para efectuarem o tradicional retrato presidencial, dando à galeria do Palácio de Belém uma imaginação, um colorido e uma ironia a que ela não estava, de certeza, habituada. (Isto embora José Augusto França tenha dito, a propósito do retrato de Soares por Pomar, que não se compreendia a sua exposição naquela sala!)

Ao lado, a gravura que Pomar executou em 1979 para ilustrar a capa de O Burro em Pé, que inclui Dinossauro Excelentíssimo, de José Cardoso Pires. (Segundo me parece, a capa da edição original, de 1972, do Dinossauro Excelentíssimo, que a Wikipédia define como uma «fábula satírica que retrata a vida de Salazar, a sua ditadura e o Portugal do Estado Novo num tom bastante irónico e amargurado», era de Abel Manta. De qualquer maneira, como quase tudo o que escreveu José Cardoso Pires, vale a pena ler este livro. Entre parênteses, vi agora numa livraria aqui em Bruxelas, a tradução de De Profundis, Valsa Lenta, que escreveu depois do seu AVC, incluindo ainda o prefácio de João Lobo Antunes.)

A cara afilada do Salazar dos anos sessenta, o fato preto, são bem a mostra de como andávamos na altura: mais do que a amargura imperava o desespero. Como dizia Alexandre O'Neill:

Portugal, questão que eu tenho comigo mesmo,
golpe até ao osso, fome sem entretém,
perdigueiro marrado e sem narizes, sem perdizes,
rocim engraxado,
feira cabisbaixa
meu remorso,
meu remorso de todos nós.