terça-feira, 22 de dezembro de 2009

Donde vêm os minaretes?

Não precisei das indicações de Vasco Pulido Valente, no Público de sexta-feira passada, para ler dois dos três livros que recomenda. Wolf Hall, de Hilary Mantel, tem-me acompanhado nestes últimos tempos. É um romance histórico que se deve ler devagar, como quem aprecia um vinho velho e bom. Fala-nos de Thomas Cromwell, mas dum Cromwell que este se encontrava ainda numa fase bendita, se bem que perigosa, antes de se enredar em mesquinhas e inglórias histórias do poder supremo – e de ser dele despojado, e morto. A forma de escrever de Mantel é feita de frases calmas e de subentendidos, de insinuações, sugestões, alusões, de innuendos, como para acentuar a situação ainda indefinida do futuro ministro do Rei. Espero ansiosamente a continuação já anunciada. Como será tratado o Cromwell absoluto, no auge da sua força , mas já inseguro, quase certo de vir a ser executado? Mantel reflectirá, no seu estilo, esta mudança de situação?

Mas, se falo dos livros recomendados por Pulido Valente, é sobretudo para me referir ao segundo (o terceiro, Alone in Berlin, de Hans Fallada, não o li): A History of Christianity: The first three thousand years, de Diarmaid MacCulloch, de quem já tinha lido uma formidável história da Reforma, sob o título Reformation – uma obra a todos os títulos excepcional, que a última terá dificuldade em suplantar. Não vou pretender que a li por inteiro. Afinal, na edição inglesa, são 1016 pesadas páginas de texto, sem contar mapas, notas, bibliografia. Li apenas algumas partes e, na medida do possível, por ordem cronológica.

Porque falo agora desta História do Cristianismo (ou da Crinstandade)? E porque escolhi esta fotografia para ilustrar esta entrada no blogue?

Porque MacCulloch nos fala dos eremitas sírios, Simeão e Simeão o Jovem, que passaram anos seguidos empoleirados em colunas. Mas sobretudo porque avança a hipótese de que os minaretes, esses exemplos suiçamente nefastos de uma "cultura árabe dominante", tenham a sua origem nestas colunas tipicamente cristãs. Se assim for, que ironia! Estamos, afinal, a destruir hoje as homenagens muçulmanas à cultura cristã.

O que só quer dizer que toda esta história de conflito, combate, luta, digladiação, entre civilizações ignora a profunda comunhão que há entre as diferentes religiões e a forma como umas e outras se influenciaram mutuamente e espiritualmente se alimentaram. Lições? Aquelas que quiserem tirar algumas almas caridosas. Nada mais; mas nada menos.

quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

Paul Samuelson (5 de Maio de 1915 - 13 de Dezembro de 2009)

Tinha 17 anos quando entrei na Faculdade de Direito. No meu primeiro ano – estávamos então em plena reforma "Veiga Simão" – a cadeira de Economia Política fazia parte do currículo. O meu professor era Pedro Soares Martinez, assumido fascista, antigo Ministro da Saúde de Salazar, conhecido pela decisão de colocar crucifixos nos quartos dos hospitais e mais versado em questões de Direito Corporativo. Era um mero economista de domingo e sem convicção. Os seus assistentes eram Jorge Braga de Macedo, que depois fez uma grande carreira como economista, e Marcelo Rebelo de Sousa, mais dado a outros ramos do Direito e, em geral, a outras actividades. Nenhum deles demonstrava qualquer respeito intelectual pelo professor da cadeira que a si próprio se denominara, numa célebre conferência no Grémio Literário onde um verdadeiro professor de Economia espanhol o enxovalhou ao indicar-lhe uma bibliografia de obras básicas, um trouble-fête. Mas nem tinha talento para isso.

Nessa altura, antes do 25 de Abril, eu tinha ainda a mania de vir a seguir uma carreira universitária – boas notas como aluno, assistente, professor. A tomada do poder pelos nossos amigos do MRPP dirigidos pelo Camarada Durão Barroso acabou com as minhas ilusões ao punir-me com três anos consecutivos de passagens administrativas, mais tarde transformadas, por decisão do Ministro da Educação do primeiro Governo de Mário Soares, Sottomayor Cardia, em notas de 10. Terminei o curso com média de 14 (16 nos dois primeiros anos, 16 no último) mas sem vontade de continuar. A única coisa que me apetecia era fugir da Faculdade.

Mas tinha gostado de economia e ainda fiz a cadeira antes da revolução. Para compreender Keynes, Marcelo indicou-me um livro de Francisco Pereira de Moura: Análise Económica da Conjuntura. Para compreender a Economia, no seu conjunto, alguém me falou do livro de Samuelson: dois volumes na capa castanha então tradicional dos manuais da Fundação Gulbenkian na tradução do Professor Almeida Garrett. Tive imensa dificuldade em o encontrar (julgo que a primeira edição tinha sido publicada em 1967) e acho que foi um dos poucos livros usados que alguma vez comprei antes de me habituar à moda da Amazon. Não o li por inteiro mas devorei alguns dos seus capítulos. E o pouco que percebo de economia hoje veio desse livro (e das Lições de Economia, também de Pereira de Moura). O livro de Martinez, deitei-o ao lixo. Nunca me fez falta e não me lembro duma única palavra nele escrita, com a excepção do título (e apenas do título) do capítulo dedicado às relações entre Economia e Informática, que era um disparate pegado, mas sobre um amigo meu foi interrogado no seu exame com o célebre professor. A mim, vinda do mesmo bicho, calhou-me uma mera pergunta sobre a planificação soviética (teria eu, na altura, imerecida fama de esquerdista?) A parte épica do meu exame veio de uma questão posta por Marcelo, sobre as relações entre Keynes e os Friedman, à qual, confesso, tive alguma dificuldade em responder porque, sinceramente, nunca tinha ouvido falar de Anna e Milton Friedman. Mas Keynes, eu conhecia bem e falei vinte minutos sem nunca aflorar directamente a pergunta que me fora feita. Era um talento meu, nessa altura.

Samuelson morreu esta semana com 94 anos de idade. Foi certamente o economista mais conhecido da sua geração e foi, sobretudo, um grande professor. Recebeu o Prémio Nobel de Economia em 1970, no segundo ano em que foi atribuído, mas o que é mais notável é que a maioria dos que o receberam depois estudou com ele. A primeira edição de Economics: An Introductory Analysis foi publicada em 1948; a décima oitava e última em 2004. Samuelson pode bem ser considerado, não como o maior economista do século passado, mas seguramente como o mais influente. No meu caso, recordo-o com a ternura de saber que foi o primeiro que me mostrou que esta disciplina valia a pena. Não que tivesse seguido a sua via; nem sequer que hoje, aos cinquenta e quatro anos, que me apeteça dizê-lo em voz alta ou sequer que ainda acredite que isso seja verdade: tantas coisas nos foram roubadas por uma forma estranha de endeusar uma ciência aproximativa. Mas o que nos acontece quando envelhecemos não nos faz esquecer, felizmente, o que sentimos quando éramos jovens. E, quando era novo e pronto a encarar a vida com a garra da juventude indomável, Samuelson foi para mim uma espécie de herói intelectual. A minha pena pela sua morte é uma forma de saudade desse tempo. Acho que ele gostaria de ser lembrado dessa maneira.

quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

Ainda o casamento homossexual

Tenho alguma dificuldade em seguir certos argumentos dos opositores do chamado casamento homossexual. O artigo de Mário Pinto, no Público de hoje, é um exemplo claro.

Repare-se na forma como começa. "O casamento (obviamente de um homem com uma mulher) é uma instituição fundamental, constituinte da família biológica humana, a qual é universalmente considerada como a célula ou elemento base da sociedade". Já não me lembro da exacta denominação dos vícios lógicos, certamente denunciados por Aristóteles, que esta declaração contém. O primeiro é o de considerar que o casamento é, obviamente, o casamento de um homem e de uma mulher... Porquê? O segundo, não menos evidente, é o de afirmar, sem qualquer prova, que a "família biológica humana" (aqui definida em termos estreitos, como a união entre um homem e uma mulher) é universalmente considerada como a célula da sociedade.

Mário Pinto justifica esta afirmação dizendo que "não há dúvida nenhuma" de que de que o conceito de família, quer na Declaração Universal, quer na nossa Constituição, é o da família fundada no casamento de um homem com uma mulher. Peço desculpa por discordar mas este é precisamente o ponto sobre o qual há dúvidas.

Gostaria de deixar clara a minha posição. Para mim, a família não é (sublinho) a célula ou o elemento base da sociedade. Poderia até argumentar com Margaret Thatcher, se não me desagradasse a companhia, que a sociedade não existe: apenas existem indivíduos. Mas, mesmo que o fosse, por que é que o conceito de família deveria ser restrito a um certo tipo de família? Com base em quê? A isso, Mário Pinto responde com um "obviamente"; ou o tal "não há dúvida nenhuma"... É pouco; não chega.

Todo o seu artigo é uma petição de princípio. Dá-se como provado aquilo que deveria ser provado. É grave para um jurista. A repetição de frases como "não há qualquer dúvida" ou "como é evidente" pode contribuir para ajudar a convencer os convencidos mas não contribui para um debate sério.

Não há nada de natural no casamento. Trata-se de uma social construct, um instituto social que não tem nenhuma correspondência na "mãe" natureza - em Gaia! Duma certa forma, isso é o reconhecimento de uma das facetas do génio humano: a capacidade de criar instituições que ultrapassam os dados do mundo físico. Os animais não a possuem. O facto de a procriação apenas ser possível através da união de pessoas de sexo diferente não significa, em caso algum, que o casamento, como norma cultural, deva seguir cegamente uma tal forma. É estranho, aliás, que escritores conotados com o catolicismo venham defender estas teses. Porque, se há algo que o catolicismo sempre fez, foi subordinar a ordem natural aos imperativos da fé.

Estou de acordo que não basta falar de dignidade humana para concluir apressadamente que todos os humanos devem ter exactamente os mesmos direitos. Mas o argumento de Mário Pinto prova demais, do seu próprio ponto de vista. Porque ele significa, no fundo, que existe um momento social ou cultural determinante na definição das capacidades jurídicas (por oposição à personalidade jurídica, que essa é invariável). Consequentemente, admitirmos ou não o casamento homossexual é uma opção que nada tem a ver com pretensos dados naturais. Trata-se, pelo contrário, de uma opção política, no sentido nobre da expressão. O que é incorrecto é afirmar que "a capacidade jurídica ou a legitimidade institucional para o casamento (...) decorrem de capacidades e de legitimidades específicas" que, uma vez mais "como é óbvio", devem ser "reconhecidas exclusivamente ao casal homem/mulher, dados os fins indisponíveis da instituição casamento/família". Uma vez mais, porquê? Mário Pinto não indica qualquer argumento válido.

Nem vou comentar a última afirmação de Mário Pinto quando diz que os homossexuais não são "discriminados porque (...) podem casar, desde que o façam numa relação heterossexual, para a qual (note-se bem: palavras dele!) não são nem podem ser considerados incapazes". Aqui entra-se no domínio claro do disparate. Os gays não querem casar com mulheres, mas com homens, as lésbicas não querem casar com homens, mas com mulheres. Com frases destas, Mário Pinto junta-se ao reino das beatas, para quem essa ideia de homens andarem com homens e mulheres com mulheres é simplesmente incompreensível – provavelmente nojenta. Assim, os homossexuais não são discriminados porque podem casar com e como... heterossexuais.

Senhor Professor, tenha dó de nós.

segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

Mínimo é máximo

Se ainda algumas dúvidas existissem de que a substituição de José Manuel Fernandes na direcção do Público teria efeitos na orientação do jornal, o editorial de hoje, assinado colectivamente como é agora hábito (facto que, por si mesmo, mostra que algo mudou naquela casa), seria suficiente para as desfazer.

Com o seguinte subtítulo, já de si importante, "o valor do salário mínimo traduz o padrão de coesão social que um país está disposto a promover", este editorial apresenta os argumentos contra e a favor do aumento do salário mínimo para 475 euros e da promessa de que ele alcançará 500 euros em 2011. De um lado, estão "alguns empresários de sectores menos competitivos ou mais sujeitos à concorrência internacional": estes defendem que qualquer aumento no salário mínimo "ameaçará a sua viabilidade". Do outro, estão aqueles para quem "o agravamento da factura salarial no conjunto da economia é irrisório (entre 0,06 e 0,18 por cento dos actuais custos) e que se deve manter o padrão que situa o salário mínimo na ordem dos 60 por cento da remuneração média nacional".

Mas o Público, e muito bem, não se fica por aqui. Do que se trata, segundo o jornal – e eu concordo plenamente – não é de discutir a mera questão económica de saber se algumas empresas podem sobreviver a um aumento do salário mínimo como o proposto. Do que se trata é, para utilizar o chavão tão querido dos jornais portugueses, de uma questão de sociedade. Até que ponto estamos dispostos a ajudar quem mais precisa. O aumento do salário mínimo é, como diz este editorial, num português que podia ser melhorado, "um sinal de que não se pode baixar os braços perante o destino de centenas de milhares de cidadãos que trabalham sem que com isso possam escapar da pobreza".

Dois comentários. Em primeiro lugar, para dizer que está na moda – e é uma moda perversa – discutir todos os assuntos em termos meramente económicos, de custos e perdas financeiros, sem considerar os restantes e vastíssimos aspectos das questões que se discutem. O exemplo mais acabado deste disparate foi dado, há poucos dias, por Ricardo Reis, economista, que explicava a gravidade da crise económica nacional e perguntava por que andavam os nossos políticos a perder tempo com questões como a redefinição do casamento (penso que falava da questão da admissão do casamento homossexual) sem se aperceber, ao que parece, que esses temas podem ser essenciais para alguns cidadãos, ou mesmo para uma maioria destes. Ou seja, considera-se que, face ao deficit das contas públicas, devíamos concentrar todos os nossos esforços na política orçamental e deixar de lado outros "pequenos" problemas. Diga-se que, na primeira página do jornal onde vinha publicado o artigo de Ricardo Reis, aparecia uma referência ao aumento de casos de violência doméstica: também este assunto deveria ser sacrificado à necessidade imperiosa de pôr em ordem as contas públicas? Subjacente a esta opinião, tão corrente quanto estranha, está a ideia – que o ilustre economista não aplicaria certamente em sua casa se, por exemplo, um dos seus filhos estivesse doente ou com problemas escolares – de que as finanças das Nação (oh! meu bom Salazar) são o único aspecto importante da vida pública de um país – ou, pelo menos, o mais importante entre todos. O que é evidentemente falso.

O segundo comentário tem a ver com esta nova linha política do Público. Alguém tem dúvidas de que este editorial não apareceria sob a pena de José Manuel Fernandes? Pelo contrário, estaríamos a discutir os perigos da intervenção do Estado na economia, as gravíssimas consequências da interferência com a famosa mão invisível e os méritos de empresas que não deveriam ser entravados com questões sociais de menor importância. Só posso dizer que, do meu ponto de vista, esta mudança é positiva.

domingo, 13 de dezembro de 2009

O cinismo de Tony Blair - II

Ainda estou sob o choque das declarações de Tony Blair, aqui criticadas ontem. Tony Blair é – pressupõe-se – um político democrático. Assim sendo, sabe, tem que saber, tem obrigação de saber, que há uma diferença entre convencer o Parlamento e o povo com falsos pretextos e dar-lhe uma ideia correcta da situação pedindo-lhe, nessa base, que escolha.

Quando vem dizer que, se as armas de destruição maciça não existissem, encontraria outros argumentos para o derrube de Saddam, penso estar a sonhar. Primeiro, porque ainda não vi nenhum outro argumento (para além do facto de Saddam ser um ditador cruel mas isso levanta questões às quais Blair não está disposto a responder) que pudesse justificar a invasão; segundo, porque – e é o mais importante – o mandato que lhe foi dado se baseou nessas informações erradas ou, pelo menos, incompletas que Blair afiançou ter.

Dito duma forma crua: Saddam foi derrubado por que Bush queria prosseguir a intervenção do seu pai no Médio Oriente, que considerava manca; e do que se tratou foi de encontrar razões para justificar publicamente uma decisão já privadamente tomada. O armamento de Saddam – puro engano, que os inspectores da ONU revelariam em menos de algumas semanas – foi utilizado porque estava ao alcance da mão e era, à primeira vista, credível. Mas, se não esse, outro se arranjaria...

Ou seja, segundo Blair, uma decisão desta importância foi tomada por algumas pessoas, políticos pretensamente democráticos, no conforto acolhedor dos seus gabinetes – que depois correram a encontrar uma justificação que pudesse ser engolida pelos seus pares e pela população. Será difícil encontrar outro exemplo mais claro de puro cinismo político.

sábado, 12 de dezembro de 2009

O cinismo de Tony Blair - I

Tony Blair estaria em melhor posição moral e política se tivesse dito há sete anos o que veio dizer agora. "Se não fossem as (pretensas) armas de destruição maciça (teria sido necessário) recorrer a outros argumentos quanto à natureza da ameaça". O facto, seguindo Tony Blair, é que o mundo está melhor sem Saddam e os seus filhos.

Infelizmente, em 2002, não nos foi dada a possibilidade de escolher com base nestes novos argumentos, que poderiam até ser sólidos ou mesmo apenas razoáveis. Dois políticos decidiram enganar os seus povos e até o mundo inteiro inventando a existência de um armamento inexistente. Levaram-nos à guerra sob falsos pretextos. E alguém ainda duvida que soubessem que eram falsos?

Acho que foi Rumsfeld que disse esta frase notável, que me foi lembrada pelo meu novo chefe de unidade na Comissão: "Absence of evidence is not evidence of absence". A ausência de provas não prova que as provas não existam. Com estas frases, pode justificar-se tudo. Um jurista, como ainda sou, arrepia-se com estas palavras porque elas abrem o caminho a todas as iniquidades.

Poderíamos até ter concordado com as outras razões que Tony Blair teria invocado – ou não: nem ele sabe quais seriam, limita-se a dizer que deveriam ser encontradas "outras" – para a guerra iraquiana. Só que não tivemos essa oportunidade. Em democracia, isto diz tudo. Fomos conduzidos, como cordeiros enganados, a uma guerra decidida sob falsos pretextos. E, ao que parece, Blair nem se envergonha disso: de nos ter enganado, mais do que quanto aos objectivos, quanto aos argumentos, sabendo perfeitamente que estes condicionavam aqueles.

Que nojo!

segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

Tia Paule

Coragem... Os seus netos pensam em si, e todos nós.

sábado, 5 de dezembro de 2009

A má-criação do Primeiro-Ministro

Já aqui disse, várias vezes, que considero José Sócrates como o principal responsável pela forma indigna como se desenrola o debate político em Portugal. Poder-me-ão dizer que Manuela Ferreira Leite se deixa mover, principalmente, pelo inexplicável ódio que nutre em relação ao Primeiro-Ministro – para o qual não há justificação: entre políticos pode e deve haver divergências, mas esta repulsa mal escondida não contribui para reforçar a democracia. Ainda assim, a presidente do PSD não vai tão longe como Sócrates quando se trata de insultar os adversários ou de se lhes referir em termos jocosos ou depreciativos.


Vem isto a propósito das declarações feitas por Sócrates no último debate sobre o Estado da Nação. Mais uma vez, o Primeiro-Ministro não resistiu a transformar essa tribuna – que devia ser a de uma discussão dura mas correcta entre líderes partidários – numa espelunca onde se dizem palavras feias e se deixam transparecer pensamentos indignos. Alguém falou de "circo" (Francisco Camacho, no "i") mas isso seria retirar dignidade a este espectáculo, mesmo tendo em conta que alguns macacos fazem, como Sócrates, figuras tristes.


A Manuela Ferreira Leite, acusou-a de "transformar a coscuvilhice em linha política" e "de lançar lama (...) sobre os adversários políticos". A Paulo Portas, aconselhou-o a "ter juizinho" – o mesmo que, ao que parece, diz aos filhos, que certamente o aturam como podem.


Isto é grave. Isto é indigno. Sócrates sempre foi arrogante; agora, imita Graça Moura e está a ficar malcriado. Qualquer dia, temos que nos perguntar se uma personalidade destas pode ser Primeiro-Ministro. O país merece algum respeito.


Terei que dizer que, para quem ande distraído, que não sou suspeito de votar PSD? Muito menos, de gostar de Ferreira Leite ou Portas? Limito-me a criticar José Sócrates por não corresponder ao que se espera de alguém na sua posição. As tribunas de São Bento não são lugares para desordeiros da praça pública. E a arruaça não satisfaz a democracia.

sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

O novo espírito do capitalismo

Observação. O que se segue não é mais do que uma peça moralista que não fará perder tempo aos espíritos superiores do nosso tempo. Mesmo assim, aqui fica.

Esta semana foi anunciado que na France Telecom teriam ocorrido 32 suicídios, 17 dos quais nos últimos 12 meses. Há pouco, tempo, os suicídios na Renault e na Peugeot tinham também emocionado os franceses. Será esta uma manifestação do "novo espírito do capitalismo"?

Infelizmente, sim.

Este novo espírito traduz-se por uma intencional ausência de solidariedade entre as pessoas ou as instituições e pela instauração da regra do "salve-se quem puder" em tudo o que diz respeito às relações laborais. Não se trata apenas de despedir sem nenhuma atenção às situações particulares dos trabalhadores – compromissos assumidos, hipotecas a pagar, despesas escolares dos filhos; trata-se de obrigar todos a trabalhar em condições de insuportável pressão (stress); trata-se sobretudo de instaurar uma situação em que o indivíduo é lenta e inevitavelmente mastigado por uma máquina indiferente.

Estamos na mesma situação dos Tempos Modernos, de Chaplin, com a diferença de a cadeia de montagem ter sido substituída pela gestão por objectivos. Uma das coisas que mais me aflige, nestas novas tendências tecnocráticas, é a obrigação imposta aos trabalhadores de participarem, através da chamada auto-avaliação, no seu próprio pelotão de fuzilamento.

Claro que todas estas tendências são disfarçadas, enroupados, envolvidas numa linguagem de valorização das capacidades individuais. Mas a verdade é que os erros e até a simples e desculpável desadequação são duramente punidos. Os trabalhadores, aliás, não se enganam quando sentem essas imposições como atentatórias da sua dignidade.

É por isso que discordo normalmente do meu irmão Francisco quando falamos da avaliação dos professores. Claro que, em teoria, todos aceitamos a ideia de avaliação. Na prática, contudo, os esquemas propostos conduzem a tremendas injustiças. Arbitrariedade, ausência de meios eficazes de recurso (já que os tribunais, compreensivelmente, se recusam a entrar nos detalhes da apreciação concreta de cada funcionário, na medida que, muitas vezes, se trata apenas da palavra do avaliador contra a do avaliado), mérito esquecido em função de outros critérios subjectivos, como a subserviência disfarçada de respeito pela cultura de empresa ou do serviço público – estas são as consequências, práticas e provadas, dos sistemas propostos. Repito: provadas. Por exemplo, na Comissão Europeia, um sistema deste tipo foi posto de lado após quatro anos de funcionamento, dadas as suas evidentes lacunas e, principalmente, as consequências psíquicas profundamente negativas sobre os funcionários. Por muito que custe ao Francisco, a não avaliação é, mesmo assim, preferível à avaliação caprichosa.

Houve um tempo em que o espírito do capitalismo era outro. Em que pensávamos que um sistema económico eficaz era compatível com a justiça social e a atenção aos desfavorecidos – e, mais ainda, que estes tinham direito à assistência social e não eram apenas os recipientes passivos duma caridade organizada. Foi o tempo desses "horríveis" (segundo o pensamento único actual) trinta anos que se seguiram à II Guerra Mundial. Foram os anos da social-democracia e do keynesianismo. Os anos em que a Europa e o mundo desenvolvido mais progrediram. Os anos em que nos sentíamos felizes. A estes "horríveis" anos, muitos de nós chamámos-lhes "gloriosos".

Foi isso que mudou, por obra de Thatcher, Reagan e dos muitos outros gurus que, por detrás dessas duas nem por isso famosas cabeças, os iluminavam. Argumentos baseados numa pretensa eficácia económica arrasaram o melhor contrato social que alguma vez existiu – a social-democracia ou a economia social de mercado, consoante os seus arautos fossem os partidos socialistas e sociais-democratas ou os partidos democratas-cristãos ou sociais-cristãos. Destruiu-se o consenso sobre os valores sociais fundamentais. Sem negar certas ineficiências económicas a que conduziu o exagero mecanicista na aplicação do modelo, havia a possibilidade de o fazer evoluir mantendo vivo o seu espírito. Não foi essa a via seguida. Em minha opinião, embora a Sofia não concorde comigo e eu não seja dado a teorias da conspiração, isso aconteceu porque os capitalistas previram a escassez, a longo prazo, da oferta no mercado de trabalho, resultado inevitável das tendência demográficas, e contrariaram a força futura do factor trabalho através duma tentativa de correcção a priori que os colocasse em boa posição. Um pouco como aconteceu com a Peste Negra de meados do século XIV, ressalvadas todas as diferenças históricas.

Em vez do consenso possível, optou-se pela destruição do factor de produção "trabalho". Nunca, excepto no século XIX quando as condições eram semelhantes, o capital foi tão bem remunerado como hoje; nunca o trabalhador esteve em situação tão precária. Até o facto de as religiões – com a sua mensagem de caridade – terem perdido peso contribui para essa situação. As palavras de Bento XVI e do Arcebispo de Canterbury e, principalmente, dos bispos, padres e pastores que se encontram perto dos fiéis, pesam infelizmente pouco.

Preferimos remunerar serviços privados de justiça, segurança, saúde, educação – que por vezes ficam caros – a pagar as contribuições sociais que permitiriam que eles se alargassem ao maior número possível. Um homem que desembolsa sem discutir o dinheiro necessário para suportar as despesas de um condomínio fechado recusa-se a aceitar um leve aumento de impostos que permitiria dotar a polícia de meios mais eficazes de prevenção dos crimes e delitos; ou proporcionar um melhor funcionamento da justiça ou do sistema nacional de saúde. O exemplo dos Estados Unidos, o país com a maior despesa per capita em cuidados médicos e sanitários e, ao mesmo tempo, com taxas de mortalidade infantil semelhantes às dos países do Terceiro Mundo, é o exemplo claro desta terrível tendência. Quem pode, vive; quem não pode, morre!

Que fazer? Deixar de aceitar sem discutir este pensamento único que tolhe a nossa capacidade de indignação. Levantarmo-nos contra as injustiças a que assistimos nos nossos dia-a-dia. Recomeçarmos a lutar por uma sociedade justa. Discutirmos os fins, os objectivos, em vez de nos ocuparmos apenas dos meios, sem esquecer que há meios que nenhum fim justifica. Sermos outra vez homens, cristãos, socialistas, ou, numa palavra, utopistas preocupados com a realidade. Sermos outra vez idealistas... Só assim seremos capazes de mudar o mundo. E o mundo precisa mesmo de ser mudado.

Só que estas coisas não se fazem com os homens políticos que nos habituámos a eleger – sobretudo, por não termos outros. Não se fazem com Sócrates, Sarkozy(s), Brown(s) e quejandos. (Talvez com Obama! Mas mesmo isso é duvidoso). Fazem-se connosco – com a nossa fé, a nossa vontade, a nossa exigência. Para conseguirmos estes objectivos, temos que mudar tudo.

Vasto programa... Mas, mesmo se impossível, algo por que vale a pena lutar.

quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

Banalidades

Preocupo-me com a qualidade das crónicas jornalísticas. Algumas delas não são mais do que monólogos de café. O principal suspeito é Miguel Esteves Cardoso. O que ele escreve no Público é o que diria se tomasse toma o pequeno-almoço com amigos numa pastelaria. "Gosto disto, gosto daquilo, aquele gajo é porreiro, o outro faz um bom trabalho e é meu amigo". Contam-se pelos dedos de uma mão os momentos em que diz algo vagamente interessante. Pagam-lhe para ser aborrecido. E ele aceita o dom.

Laurinda Alves parece estar interessada em percorrer o mesmo caminho. A sua peça de hoje, no "i", refere-se aos patrões que não valorizam o trabalho dos seus colaboradores. Conclui que "isso é péssimo, querida!" (Frase minha.) Não só por razões de caridade cristã, mas de eficácia. Trabalhadores que não se sentem motivados trabalham pouco e mal.

Precisamos mesmo de gente que nos agrida com estas banalidades? Quase apetece dizer, imitando Vasco Graça Moura mas em contexto mais bem-educado: besuntem a cara de vergonha. Porque escrevem tais sensaborias? Melhor fora que ficassem calados em casa a ver o último episódio da telenovela. Pelo menos, ninguém dava por isso.

A má-criação de Vasco Graça Moura

Ando a fazer muitas perguntas ultimamente. Esta é a última: pode-se ser um grande poeta e uma personalidade arrogante e mesmo mentirosa – alguém que não sabe discutir porque não admite o mais leve indício de honestidade nos seus opositores? Sim!


Vasco Graça Moura é a prova de tudo isso. Grande poeta, homem de cultura, perde a cabeça quando se trata de criticar o governo socialista e José Sócrates. Para mim, anda a perder tempo com ruim defunto. Mas ele lá sabe. A verdade é que gosta de se deixar enredar em nojeiras.


O seu último artigo, no Dário de Notícias de ontem (2 de Dezembro), é, se necessidade havia, a prova clara dessa sua incrível maneira de ser quando veste a roupa de político militante e que é - que pena! - tão diferente da sua forma de estar no mundo literário.


Vejamos, então, o que diz...


Para Vasco Graça Moura, o nosso país «está a tornar(-se n)uma autêntica porcaria». São "unânimes" as vozes que o dizem. Desconfio que, nesta unanimidade, faltarão as falas socialistas mas isto é mero detalhe porque, para Graça Moura, essa gente não passa de um conjunto de imbecis incapazes de ter opinião sobre o que quer que seja.


Acrescenta: «Esta é uma situação indiscutível. Na política, a porcaria salta à vista todos os dias. A governação socialista tornou-se, desde há muito, um sinónimo ominoso de aldrabação sistemática dos cidadãos, de passes de prestidigitação grosseira e de manipulação descarada da opinião pública».


Não tenho a certeza que a palavra aldrabação exista – o que parece grave num tão acérrimo defensor da língua portuguesa; os dicionários que consultei dizem que não, que a forma correcta é aldrabice – mas é difícil duvidar do sentido das palavras de Graça Moura. Para que não restem dúvidas: «É claro que o eleitorado devia ter defenestrado devida, definitiva e implacavelmente, o Partido Socialista nas últimas eleições. Mas não o fez. (...) Com esse lindo serviço, Portugal continua a ser outra valentíssima porcaria na economia e nas finanças. Estas derrapam todos os dias escandalosamente. A economia enfia-se cada vez mais num buraco sem fundo. O desemprego aumenta de modo galopante e imparável e vai continuar a crescer com todas as consequências inerentes».


Para reforçar a sua opinião, Vasco Graça Moura diz ainda mais: «É um facto indesmentível que este Governo adoptou como programa o paleio a mascarar o falhanço e como método de acção o falhanço mascarado pelo paleio. A política económica e financeira da governação socialista é mais uma porcaria irresponsável, imprópria de um Governo normal de um Estado civilizado». Peço imensa desculpa mas estes impropérios não me parecem factos, muito menos indesmentíveis, mas apenas (baixas e mal escritas) opiniões.


E, com a beleza dum final crepuscular, aqui ficam as palavras de fecho deste notável artigo: «É bem feito. O país votou nessa cambada. O país prefere a porcaria. Já está formatado para viver nela e com ela. Sirvam-se. Ponham-se a jeito. Besuntem-se.» (Eu, que não sou particularmente púdico, quase coro ao tentar aprofundar a vulgaridade destas expressões.) Nesta extrema podridão, salvam-se Graça Moura, certamente Pacheco Pereira, e, talvez, Manuela Ferreira Leite.


No conteúdo e na linguagem, esta é uma forma peculiar de contribuir para a elevação do discurso político. Depois disto, admirar-se-á Graça Moura que o PS ainda venha a ganhar as próximas eleições? É que, se isso acontecer, a razão é este tipo de atitudes. Ninguém vota num partido cuja única mensagem é o insulto soez. Não será o PS a vencer, será o PSD a perder. Talvez fosse altura dos Graças Mouras do partido pensarem nisto.