Observação. O que se segue não é mais do que uma peça moralista que não fará perder tempo aos espíritos superiores do nosso tempo. Mesmo assim, aqui fica.
Esta semana foi anunciado que na
France Telecom teriam ocorrido 32 suicídios, 17 dos quais nos últimos 12 meses. Há pouco, tempo, os suicídios na
Renault e na
Peugeot tinham também emocionado os franceses. Será esta uma manifestação do "novo espírito do capitalismo"?
Infelizmente, sim.
Este novo espírito traduz-se por uma intencional ausência de solidariedade entre as pessoas ou as instituições e pela instauração da regra do "salve-se quem puder" em tudo o que diz respeito às relações laborais. Não se trata apenas de despedir sem nenhuma atenção às situações particulares dos trabalhadores – compromissos assumidos, hipotecas a pagar, despesas escolares dos filhos; trata-se de obrigar todos a trabalhar em condições de insuportável pressão (
stress); trata-se sobretudo de instaurar uma situação em que o indivíduo é lenta e inevitavelmente mastigado por uma máquina indiferente.
Estamos na mesma situação dos
Tempos Modernos, de Chaplin, com a diferença de a cadeia de montagem ter sido substituída pela gestão por objectivos. Uma das coisas que mais me aflige, nestas novas tendências tecnocráticas, é a obrigação imposta aos trabalhadores de participarem, através da chamada auto-avaliação, no seu próprio pelotão de fuzilamento.
Claro que todas estas tendências são disfarçadas, enroupados, envolvidas numa linguagem de valorização das capacidades individuais. Mas a verdade é que os erros e até a simples e desculpável desadequação são duramente punidos. Os trabalhadores, aliás, não se enganam quando sentem essas imposições como atentatórias da sua dignidade.
É por isso que discordo normalmente do meu irmão Francisco quando falamos da avaliação dos professores. Claro que, em teoria, todos aceitamos a ideia de avaliação. Na prática, contudo, os esquemas propostos conduzem a tremendas injustiças. Arbitrariedade, ausência de meios eficazes de recurso (já que os tribunais, compreensivelmente, se recusam a entrar nos detalhes da apreciação concreta de cada funcionário, na medida que, muitas vezes, se trata apenas da palavra do avaliador contra a do avaliado), mérito esquecido em função de outros critérios subjectivos, como a subserviência disfarçada de respeito pela cultura de empresa ou do serviço público – estas são as consequências, práticas e provadas, dos sistemas propostos. Repito: provadas. Por exemplo, na Comissão Europeia, um sistema deste tipo foi posto de lado após quatro anos de funcionamento, dadas as suas evidentes lacunas e, principalmente, as consequências psíquicas profundamente negativas sobre os funcionários. Por muito que custe ao Francisco, a não avaliação é, mesmo assim, preferível à avaliação caprichosa.
Houve um tempo em que o espírito do capitalismo era outro. Em que pensávamos que um sistema económico eficaz era compatível com a justiça social e a atenção aos desfavorecidos – e, mais ainda, que estes tinham direito à assistência social e não eram apenas os recipientes passivos duma caridade organizada. Foi o tempo desses "horríveis" (segundo o pensamento único actual) trinta anos que se seguiram à II Guerra Mundial. Foram os anos da social-democracia e do
keynesianismo. Os anos em que a Europa e o mundo desenvolvido mais progrediram. Os anos em que nos sentíamos felizes. A estes "horríveis" anos, muitos de nós chamámos-lhes "gloriosos".
Foi isso que mudou, por obra de Thatcher, Reagan e dos muitos outros gurus que, por detrás dessas duas nem por isso famosas cabeças, os iluminavam. Argumentos baseados numa pretensa eficácia económica arrasaram o melhor contrato social que alguma vez existiu – a social-democracia ou a economia social de mercado, consoante os seus arautos fossem os partidos socialistas e sociais-democratas ou os partidos democratas-cristãos ou sociais-cristãos. Destruiu-se o consenso sobre os valores sociais fundamentais. Sem negar certas ineficiências económicas a que conduziu o exagero mecanicista na aplicação do modelo, havia a possibilidade de o fazer evoluir mantendo vivo o seu espírito. Não foi essa a via seguida. Em minha opinião, embora a Sofia não concorde comigo e eu não seja dado a teorias da conspiração, isso aconteceu porque os capitalistas previram a escassez, a longo prazo, da oferta no mercado de trabalho, resultado inevitável das tendência demográficas, e contrariaram a força futura do factor trabalho através duma tentativa de correcção
a priori que os colocasse em boa posição. Um pouco como aconteceu com a Peste Negra de meados do século XIV, ressalvadas todas as diferenças históricas.
Em vez do consenso possível, optou-se pela destruição do factor de produção "trabalho". Nunca, excepto no século XIX quando as condições eram semelhantes, o capital foi tão bem remunerado como hoje; nunca o trabalhador esteve em situação tão precária. Até o facto de as religiões – com a sua mensagem de caridade – terem perdido peso contribui para essa situação. As palavras de Bento XVI e do Arcebispo de
Canterbury e, principalmente, dos bispos, padres e pastores que se encontram perto dos fiéis, pesam infelizmente pouco.
Preferimos remunerar serviços privados de justiça, segurança, saúde, educação – que por vezes ficam caros – a pagar as contribuições sociais que permitiriam que eles se alargassem ao maior número possível. Um homem que desembolsa sem discutir o dinheiro necessário para suportar as despesas de um condomínio fechado recusa-se a aceitar um leve aumento de impostos que permitiria dotar a polícia de meios mais eficazes de prevenção dos crimes e delitos; ou proporcionar um melhor funcionamento da justiça ou do sistema nacional de saúde. O exemplo dos Estados Unidos, o país com a maior despesa
per capita em cuidados médicos e sanitários e, ao mesmo tempo, com taxas de mortalidade infantil semelhantes às dos países do Terceiro Mundo, é o exemplo claro desta terrível tendência. Quem pode, vive; quem não pode, morre!
Que fazer? Deixar de aceitar sem discutir este pensamento único que tolhe a nossa capacidade de indignação. Levantarmo-nos contra as injustiças a que assistimos nos nossos dia-a-dia. Recomeçarmos a lutar por uma sociedade justa. Discutirmos os fins, os objectivos, em vez de nos ocuparmos apenas dos meios, sem esquecer que há meios que nenhum fim justifica. Sermos outra vez homens, cristãos, socialistas, ou, numa palavra, utopistas preocupados com a realidade. Sermos outra vez idealistas... Só assim seremos capazes de mudar o mundo. E o mundo precisa mesmo de ser mudado.
Só que estas coisas não se fazem com os homens políticos que nos habituámos a eleger – sobretudo, por não termos outros. Não se fazem com Sócrates, Sarkozy(s), Brown(s) e quejandos. (Talvez com Obama! Mas mesmo isso é duvidoso). Fazem-se connosco – com a nossa fé, a nossa vontade, a nossa exigência. Para conseguirmos estes objectivos, temos que mudar tudo.
Vasto programa... Mas, mesmo se impossível, algo por que vale a pena lutar.