domingo, 31 de maio de 2009

Roland Garros - Nadal

Nadal sai de Roland Garros com a cabeça erguida. Ganhou o título qautro vezes consecutivas e foi, desde sempre, o tenista com mais vitórias consecutivas neste torneio - 31 jogos, um recorde que será difícil de igualar. É, com efeito, a primeira vez, que ele é derrotado em Paris! Perdeu porque estava cansado e porque, como é a regra da vida, what goes up must come down. Tenho imensa pena. Ao princípio, detestava-o mas fui-me rendendo à qualidade do seu ténis e à sua evolução que lhe permitiu ganhar Winbledon no ano passado. Teria certamente preferido que a sua derrota se tivesse verificado numa final contra Federer. Este tem agora a sua grande oportunidade de vencer este torneio que sempre lhe escapou. Mas que se desengane. Não será fácil. E, mesmo que ganhe, sempre ficará gravado que nunca o ganhou contra Nadal!

O banco cool

Quando estava a pesquisar imagens do BPN para o meu comentário anterior, encontrei esta, de uma antiga campanha publicitária, certamente paga a peso de ouro. Banco cool, efectivamente. Perguntem agora aos clientes e, sobretudo, aos contribuintes!

(Clique na imagem para a ver melhor)

Vital Moreira e o BPN

Sempre gostei de Vital Moreira, que me parece aliar uma posição claramente de esquerda (e de uma esquerda que se revê com agrado nos seus princípios fundamentais, que são a solidariedade e a igualdade ) com uma perspectiva correcta da função do Estado na sociedade moderna – e considero que esta discussão sobre as funções do Estado, num mundo em que se abateram grande parte das fronteiras entre nações (a social-democracia tradicional sempre funcionou no interior do Estado-Nação, como o conhecemos a seguir à Guerra de 39/45 e teve mesmo grandes dificuldades em aceitar o quadro da União Europeia) é a mais importante de todas as que se colocam no caminho de um projecto social-democrata credível.

Mas isso não me impede de, por uma vez sem exemplo, estar de acordo com Vasco Pulido Valente, quando ele afirma, no Público de hoje, que o candidato socialista às eleições europeias foi longe demais quando associou a «roubalheira» do BPN a «figuras gradas» do PSD e pediu a Manuela Ferreira Leite «explicações» sobre o assunto. Com efeito, se bem que, como já tentei explicar num outro comentário neste blogue, foram os governos de Cavaco Silva que, à sombra do maná dos fundos comunitários, criaram este clima de conivência entre política e negócios, esta forma portuguesa de estar na vida que se traduz no célebre «todos nos conhecemos, somos todos amigos», não é possível apontar genericamente o PSD e pretender que este partido (e não, como bem diz Vasco Pulido Valente, o senhor A ou o senhor B que, por acaso, até fazem parte dele – mas, se o problema é uma questão de limites éticos que se colocam a um político, saído do Governo para ocupar funções em empresas sobre as quais tinha responsabilidades de supervisão ou com as quais tinha contratos, há muito a dizer também de certas figuras conhecidas do PS) é responsável por ter incitado, facilitado ou escondido a enorme fraude do BPN.

(Sobre estes «enriquecidos» do cavaquismo, vale a pena ler uma crónica de José Miguel Júdice, também no Público – na última sexta-feira, se não estou em erro. Se descontarmos um certo laivo elitista, que parece querer dizer que as fortunas só têm valor se acumuladas ao longo de gerações, o que Júdice escreve merece reflexão: um conjunto de gente que só tinha como trunfo os contactos que a política lhes proporcionou enriqueceu desmedidamente. Como? Aqui há tempos, alguém me dizia que, se as pessoas pensavam que Isaltino de Morais tinha apenas cem mil contos nos bancos suíços, se enganavam profundamente: a sua fortuna era, de facto, muito maior. Mas essa mesma pessoa não parecia preocupada com o facto de um mero Presidente de Câmara, cuja família não era rica e que, quando chegara à política, quase nada tinha, ter conseguido ganhar tanto dinheiro em tão curto espaço de tempo!)

Mesmo tendo isto em conta, Vital Moreira foi longe demais. A necessidade de ganhar as eleições não justifica, como sempre tenho afirmado, que se utilizem todos os meios para destruir os adversários. O que é, afinal, o que Vital Moreira sempre prega na suas crónicas de opinião. A democracia pratica-se pela discussão das ideias, dos programas, dos projectos. Não por ataques genéricos que são, precisamente por que não se dirigem a ninguém especificamente, necessariamente infundados.

Salva-se, nesta triste história, o bom senso de Maria de Belém Roseira, Presidente da comissão parlamentar que investiga o caso BPN. Nada pior do que transformar um escândalo financeiro de enormes proporções, que coloca problemas importantes sobre o funcionamento da supervisão bancária em Portugal e que compromete, de forma quase irremediável, o prestígio de Vítor Constâncio, em arma de arremesso político. As conclusões da comissão devem ser motivadas por uma análise tanto quanto possível objectiva dos factos e não pelas situações acidentais de Oliveira e Costa e Dias Loureiro serem figuras gradas do PSD e Constâncio ter sido Secretário-Geral do PS. Por favor!

sábado, 30 de maio de 2009

Só o facto de eu ter sido bastante irregular no meu blogue justifica que nenhuma fotografia da minha neta aqui tenha aparecido nos últimos meses. É tempo de corrigir esta grave falta. Assim, fica aqui esta, onde ela aparece acompanhada pela Kiddie que já a trata como pessoa crescida... Estou agora à sua espera para jantar e só posso dizer como me sinto maravilhado com esta possibilidade que me é dada de estar perto dela, de a acompanhar e amar e, sobretudo, de a ver crescer, de ouvir as suas conversas sempre mais espontâneas e engraçadas, e de partilhar com ela momentos de pura felicidade.

(Para os que não sabem, o seu diminutivo, escolhido por ela, é Xá. Deve ser porque compreendeu que, na família, já havia Teresas a mais.)

Pacheco Pereira - Comparação indecente

Devo confessar que não gosto de José Sócrates. Tudo nele me irrita: a sua inabalável convicção de ter sempre razão, a evidente arrogância da sua postura pública (foi por isso que escoilhi esta fotografia para acompanhar este artigo), a sua forma polida e pretensiosa de falar, que me lembra, mal ou bem, os jesuítas ou o seminário, e principalmente a sua política que me parece não atender, como devia, às necessidades dos mais desfavorecidos e à crescente desesperança de uma parte significativa da população. (Esta mania, iniciada por Tony Blair, de apoio aos ricos e de passar as férias com eles – com a justificação de que são eles, como empresários, que fomentam a inovação e o desenvolvimento, o que, pelo menos no caso de Portugal, é uma brincadeira de mau gosto: limitam-se a aproveitar os subsídios de Estado magnanimamente concedidos – é uma pecha da maioria dos partidos socialistas ocidentais). E, principalmente, penso que Sócrates, com uma grande parte de cobardia política, nomeadamente em matéria dos chamados «assuntos de sociedade» (paridade, casamento entre homossexuais, esta última ideia de limitar a imigração para resolver o problema do desemprego, etc.), com a sua manifesta incapacidade de dialogar e de atender às solicitações da sociedade civil, e com a sua adesão a um modelo económico assente numa espécie de liberalismo mentiroso que, entre nós, se baseia essencialmente no apoio do Estado a um conjunto de grandes grupos económicos, leva a social democracia portuguesa (reconheço que a situação é parecida noutros países europeus!) a um beco sem saída.

Mas há limites para o ataque pessoal. Assim, quando, a propósito de Dias Loureiro, Pacheco Pereira acrescenta o seguinte parênteses à sua crónica de hoje no Público, julgo que devia cobrir a sua cara de vergonha:

(Acresce, numa nota a propósito, que me custa ver a duplicidade com que alguns vociferam contra Dias Loureiro e esquecem que muitos dos seus argumentos se aplicam a José Sócrates. Também aqui há múltiplas responsabilidades, já apuradas, que nada têm a ver com a investigação de corrupção, e que nos deviam preocupar. Colocam-se no mesmo terreno de uma ética pública. Noutros países, que se tomam mais a sério, a presença de familiares aproveitando-se do nome de um governante, com o seu parcial conhecimento, tem-nos levado a demitir-se. Noutros países, que se tomam mais a sério, o não cumprimento de regras mínimas de procedimento de um governante, como a não comunicação ao Ministério Público de uma tentativa de corrupção que lhe foi relatada pelo tio, também implicaria responsabilidade individual. Etc., etc. Tudo não é o mesmo, mas quem abre muito a boca nuns casos arrisca-se a fazer a cama a outros, mesmo que não o deseje.)

Não há, com efeito, nenhuma comparação entre a situação de Sócrates no caso Freeport e a de Dias Loureiro relativamente ao BPN. Nem sequer Manuela Ferreira Leite, nem sequer José Manuel Fernandes, se atreveram a pedir a demissão do Primeiro-Ministro. Pelo contrário, é certo que muita gente no próprio PSD acolheu com alívio a demissão de Dias Loureiro e o Director do Público reclamou-a em editorial particularmente severo. Nada do que Pacheco Pereira diz a respeito de Sócrates está provado ou é sequer convincente. Ele fala de um eventual conhecimento «parcial», de uma não comunicação de tentativas de corrupção ao Ministério Público – como se tudo isso tivesse alguma mínima sustentação nos elementos que até agora conhecemos. Como disse uma vez Rui Tavares, relativamente ao caso Freeport, eu gostaria que o Primeiro-Ministro de Portugal não fosse culpado; mas que, se o for, aquilo que quero é que a justiça siga o seu curso com independência total. Reconheço que a actuação de Sócrates, nesta matéria, não foi sempre isenta de erros. Mas isso foi, sobretudo, porque considerou esta investigação como um ataque com origem em pretensas forças ocultas, em vez de uma actuação normal das autoridades judiciais dum país civilizado face a suspeitas possíveis, e porque decidiu reagir através de processos instaurados contra jornalistas, numa atitude que pode pôr em causa a liberdade de expressão e a liberdade de imprensa. Mas é tudo!

Dias Loureiro foi obrigado a demitir-se, tarde e a más horas, porque o conjunto de revelações sobre as suas atitudes tornaram a sua posição insustentável. Sócrates não está na mesma situação. Tentar confundir os dois casos é, pura e simplesmente, indecente.

sexta-feira, 29 de maio de 2009

Le clavier bien tempéré - Ashkenazy

Vladimir Ashkenazy é obviamente um grande pianista (e muito mais velho, actualmente, do que nesta fotografia de 1974) mas as suas gravações, por vezes, são irregulares e deixam-nos um gosto a pouco. Mas nada disso acontece na sua esplêndida interpretação do «Cravo bem Temperado» (ou, melhor dizendo, do «Piano bem Temperado») de Bach. Há como que uma sagesse na forma calma como Ashkenazy se ataca aos 48 prelúdios e fugas que constituem, na forma clássica consagrada, o Antigo Testamento da arte do piano (o Novo Testamento é constituído pelas 32 sonatas para piano de Beethoven e, se é certo que, nestas, algumas que não merecem ser elevadas a tanta grandeza, esse facto é certamente compensadas por outras que se situam para lá do que o mundo pode produzir de belo - tenho sempre dito que gostava que o último andamento da Sonata No. 32, op.111, fosse tocado no meu enterro porque não vejo melhor forma de me despedir da vida.)

Nos últimos dias, beneficiando do meu iPod, tenho ouvido várias vezes esta gravação de Ashkenazy, da primeira à ultima peça - e sem me distrair com outras obras pelo meio. Ouvi, há uma semana, António Pinho Vargas dizer que Bach era simplesmente um génio. Ao escutarmos apenas algumas das peças que fazem parte do «Cravo bem Temperado», podemos não nos aperceber da extraordinária beleza da obra completa. Façam a experiência: ouçam tudo duma vez, sem interrupção, mas ecutando também os tão importantes silêncios. Richer gravou o «Clavier bien tempéré», Fischer também. Mas comecem por esta interpretação de Ashkenazy, a mais equilibrada, aquela em que o intérprete quase se apaga para melhor deixar cantar o compositor.

E depois, ajoelhemo-nos juntos diante do que é simplesmente sublime.

Fim-de-semana prolongado aqui por estas bandas

Aqui em Bruxelas, festejamos a segunda-feira de Pentecostes. O que significa que vamos estar em casa desde hoje até terça de manhã. E, segundo tudo indica, o tempo vai estar bom: sol, temperaturas agradáveis, jardins cheios, passeios de bicicleta. Não venha uma trovoada acabar com estas apetecíveis perspectivas.

Provedor de Justiça - Presidente no papel de Pôncio Pilatos

Desculpem a minha insistência neste tema da eleição do Provedor de Justiça mas fiquei verdadeiramente espantado com as declarações de Cavaco Silva, segundo as quais «o impasse na eleição do Provedor de Justiça atinge a credibilidade das instituições democráticas.» O Chefe de Estado lamentou ainda que os esforços que fez no sentido de uma solução para esta questão «não tenham dado resultado.»

Que esforços? Se bem que não conheça, em pormenor, os meandros da política portuguesa, parece-me que o único esforço possível de um Presidente imparcial que, para além de tudo, por razões pessoais e institucionais, poderia ter alguma influência em Manuela Ferreira Leite, seria convencê-la a apoiar um candidato claramente independente - ou seja, Jorge Miranda. E, ao dizer que «vamos agora esperar a decisão do Parlamento», acrescentando que, «não há condições para fazer mais nada», Cavaco Silva limita-se a dar de barato que, ou não conseguiu convencer os seus correligionários, ou nem sequer esteve interessado em fazê-lo. Em ambos os casos, um mau exemplo do que deveria ser o magistério presidencial.

Provedor de Justiça

Não se vê como podia encontrar-se personagem mais consensual para ocupar o cargo de Provedor de Justiça do que Jorge Miranda, meu antigo professor de Direito Constitucional, deputado à Assembleia Constituinte de 1975 e comummente considerado, pela influência que nela exerceram as suas ideias, como o «pai» da Constituição Portuguesa. Para além disso, Jorge Miranda, antigo membro destacado do PSD, quando este partido era ainda o partido de Sá Carneiro, não se coibiu de criticar o governo e a maioria socialistas em aspectos tão importantes como a lei da interrupção voluntária da gravidez ou a ideia, ainda não concretizada, do casamento homossexual. Não estou de acordo com ele em nenhuma destas suas posições mas parece-me que elas provam que nada, na sua maneira de estar na vida, na sua experiência e actividade políticas, pode levar a pensar que ele viesse a andar a reboque do Partido Socialista. Pelo contrário: trata-se de uma personalidade independente, com quem se concorda ou de quem se discorda, mas a quem sempre se respeita. A recusa do PSD em apoiar esta nomeação, devida apenas a uma ideia abstrusa de que lhe competiria indicar o nome do próximo Provedor, apenas conduz a um bloqueio institucional que seria ridículo se não fosse grave. O mandato de Nascimento Rodrigues já terminou há mais de oito meses e o actual Provedor está de baixa médica há dois meses.

A função do Provedor de Justiça é importante no quadro constitucional e legal português. Para a pequena história, conto aqui que, uma vez, em Bruxelas, em minha casa, o meu sogro, Ângelo de Almeida Ribeiro, na altura o Provedor de Justiça, foi confrontado por telefone com declarações de alguém que era, ao tempo, Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, e que tinha posto em causa a sua intervenção num assunto qualquer, de cujos aspectos já não me recordo. Mas lembro-me da sua resposta. Em termos aproximados, ele limitou-se a dizer ao jornalista que o tal Secretário de Estado não tinha qualquer ideia dos poderes e deveres do Provedor e da ordem jurídica constitucional. O nome desse Secretário de Estado de Cavaco Silva: Oliveira e Costa, agora em maus lençóis pela sua actuação à frente do BPN. Foi por essas e por outras (como o seu constante apoio à ideia dos sindicatos de polícias) que Cavaco Silva se opôs, com firme determinação, à sua recondução. Mas Jorge Sampaio, Secretário-Geral do Partido Socialista, compreendeu que, mesmo apesar do seu apreço sempre reafirmado por Almeida Ribeiro, havia outras considerações que lhe impunham um acordo com o Primeiro-Ministro. E Ângelo de Almeida Ribeiro também assim o entendeu, dando lugar à nomeação de Mário Raposo. Outros tempos! Foi para Estrasburgo, como membro da Comissão Europeia dos Direitos do Homem, no âmbito do Conselho da Europa, mas a doença cedo o atingiu, obrigando-o a regressar a Portugal. Sei que lamentou imenso a sua demissão mas que a compreendeu, com o sentido de Estado que sempre o caracterizou.

Por isso, estou mesmo em condições de dizer que o lugar de Provedor importa; e que Jorge Miranda seria o candidato ideal para tal cargo. O mais certo é que, com estas trocas e baldrocas, se sinta enojado e se retire... O que seria péssimo para Portugal. Mais um feito de Manuela Ferreira Leite e do actual PSD, partido do qual todo o sentido moral ligado a uma certa forma de fazer política desapareceu e que se contenta apenas com ganhos mesquinhos e ilusórios. Desculpem esta afirmaçõa provocatória mas dá a impressão de que a Jorge Miranda preferem Dias Loureiro. E, com isto, tudo fica dito!

quinta-feira, 28 de maio de 2009

Sonia Sottomayor e as críticas da direita americana

Se a nomeação de Sonia Sottomayor para nova associate justice do Supremo Tribunal de Justiça dos Estados Unidos está a enfurecer a extrema-direita radical do Partido Conservador (com os nomes de Newt Gingrich e Rush Limbaugh a chefiar a revolta), então ela deve ser uma excelente escolha. Neste caso, o critério de que são meus amigos aqueles com quem partilho os mesmos inimigos serve-me perfeitamente.

As críticas a Sottomayor roçam o ridículo. Gingrich chama-lhe uma racista inversa (a reverse racist) porque ela disse, uma vez, que a sua experiência de mulher latina com uma vida difícil a colocava em posição mais favorável para compreender as consequências práticas das suas decisões do que muitos homens brancos nascidos em bairros ricos. Esta afirmação, se tomada à letra, é controversa. Muitos homens (ou mulheres) brancos e ricos podem compreender melhor as dificuldades do mundo do que homens (ou mulheres) pretos e pobres – exemplo: Clarence Thomas, negro, membro do Supremo Tribunal americano, claramente pouco preocupado com a sorte dos seus compatriotas negros ou pobres. Mas o que Sottomayor pretendia dizer era simplesmente que o juiz não pode alhear-se da relevância que as suas sentenças têm sobre a vida dos litigantes. Quem o pode contestar? Outra crítica tem a ver com uma declaração sua segundo a qual os juízes (também) fazem as leis. Mas, para qualquer pessoa que perceba um pouco de Direito, isto é uma evidência: a jurisprudência surge, no Código Civil português, como fonte de direito. Ainda mais assim nos países que, como é o caso dos Estados Unidos, assentam numa forma de direito jurisprudencial, baseada na regra do precedente. Dizer no contrário é lançar poeira para os olhos dos cidadãos inadvertidos.

O problema dos conservadores (novos e antigos) é que Sottomayor representa exactamente o tipo de juíza que eles detestam. Alguém que tem dúvidas relativamente ao direito constitucional de usar armas, que votará contra a revogação da decisão Roe vs Wade, que admitiu o direito ao aborto como fazendo parte integral dum direito à privacidade que esses mesmos conservadores contestam, que considera que a Constituição dos Estados Unidos não é um texto fixo e final, gravado em pedra, devendo os juízes limitar-se a descobrir a intenção (por vezes implícita) dos seus autores históricos, como se o mundo não tivesse mudado, e que seguramente não teria votado a infame decisão que permitiu que Georges Bush fosses declarado Presidente dos Estados Unidos sem uma nova contagem dos votos na Florida. Compreende-se que se lhe oponham. Mas, para nós, que estamos do lado de cá, haverá melhor razão para nos congratularmos pela escolha de Obama?

quarta-feira, 27 de maio de 2009

Dias Loureiro, Oliveira e Costa e... Cavaco Silva

Como é possível que a renúncia de Dias Loureiro ao seu cargo de Conselheiro de Estado e a prisão de Oliveira e Costa sejam consideradas, em Portugal, como não afectando a imagem do Presidente da República? Os comentadores de direita gostam imenso de falar de países onde a democracia é supostamente mais avançada do que a nossa – o que é certamente verdade – mas custa-me a acreditar que, nesses países, um escândalo como aquele que atingiu o BPN não tivesse quaisquer consequências sobre um Presidente, antigo Primeiro-Ministro, de quem essas duas augustas personagens foram Secretários de Estado e, mais tarde, Ministros. Para além do facto de que foi Cavaco Silva que nomeou, de sua livre escolha, Dias Loureiro para o Conselho de Estado.

Ora, eu acredito que Cavaco nada tenha a ver com este escândalo bancário; que nada tenha ganho com as suas contas bancárias e os seus investimentos no BPN. Mas não representam estes casos uma certa forma de estar no mundo, na política e na economia portuguesas que têm a ver com as concepções que Cavaco deixou ao país depois dos seus anos de Primeiro-Ministro? O facto de não sermos, nós mesmos, corruptos – o que Cavaco, repito, não é – não nos desculpa de termos contribuído para criar um clima de desonestidade entre os que nos são próximos. A criação do BPN só foi possível por causa de regras imprudentes que os ministérios de Cavaco criaram, nesse ambiente de ambição desmedida, de falta de normas morais, de «todos somos amigos», nessa froma tecnocrática de estar no mundo que, infelizmente, ainda não acabou, mesmo depois desta crise financeira e económica que nos afecta a todos, sem que dela tenhamos qualquer culpa. Dias Loureiro, Oliveira e Costa, João Rendeiro – são os nossos Maddofs. Pensemos nisso quando votarmos nas próximas eleições europeias.

domingo, 24 de maio de 2009

Anos meus

Foi mais ou menos isto que servi no almoço dos meus anos, hoje, 24 de Maio. Antes, azeitonas italianas, uns pimentos recheados de queijo de cabra e uma entrada de queijo gratinado no forno com salada de rúcula. O prato principal, o foie gras poêlé, envolto em farinha segundo a sugestão do Pedro primo, foi acompanhado por batatas salteadas (sugestão da Sofia). Ajuda inestimável da Sofia e do Diogo genro, companhia menos activa da Trezzu e do Diogo filho (a estudarem), e da Xá, algo rabugenta de sono mas com a graça e o encanto de sempre. Também esteve a Céline, amiga da Trezzu e presença habitual entre nós nestas ocasiões. O Alexandre, um dos amigos do Diogo filho, juntou-se a nós para a tarte de natas com coulis de morango ou chocolate quente, à escolha. Pena foi que a Inês e o João não tenham estado connosco, porque as viagens de Lisboa são caras e porque ambos participavam numa maratona (acho que a Inês apenas em meia-maratona) no Douro. Foi muito agradável, quase me fazendo esquecer que festejava (?) os meus 54 anos. Até para o ano!

quinta-feira, 21 de maio de 2009

Federer contra Nadal em terra batida

Nem me lembro há quanto tempo Federer não batia Nadal em terra batida! Mas aconteceu na semana passada, em Madrid. É certo que Nadal se encontrava certamente cansdo depois da sua meia-final maratona contra Djokovic. Mas não o é menos que esta vitória de Federer torna mais excitante a possibilidade de uma final entre os dois no próximo torneio de Roland Garros. Nadal ainda é (largamente) favorito; mas desta vez, pelo menos, há uma pequena dúvida!

Manuela Ferreira Leite e os comícios!

Manuela Ferreira Leite dixit: «Quando comecei a fazer política ainda estávamos na base dos comícios, como disse o Paulo Rangel. Devo dizer que se tivesse que fazer se neste momento algum comício seria a maior das violências que me poderiam pedir. Acho que o jeito que eu tinha para fazer um comício era nulo. Graças a Deus que passou a era dos comícios.»

Será que ela pensa que passa melhor na televisão? Ou na Internet? Com esses «graças a Deus»?

Tortura

Enoja-me este debate sobre os resultados da tortura em interrogatórios a suspeitos como se a questão pudesse ser resolvida apenas em termos barbaramente quantitativos: quantas vidas salvo, se torturar a pessoa que está diante de mim, com as mãos amarradas atrás das costas, em posição de clara vulnerabilidade? Enoja-me esta maneira de encarar as coisas, que esquece o carácter degradante da tortura, não só sobre o torturado, mas sobre o torturador – e que esquece que a sensação de poder que se dá a este é perigosa para a democracia e para a liberdade. E enoja-me que os modernos defensores públicos da tortura se encontrem hoje, quase exclusivamente, nos Estados Unidos – em certas franjas conservadoras do Partido Republicano, de que o principal porta-voz é o antigo Vice-Presidente Dick Cheyney – porque me habituei a considerar que os Estados Unidos constituíam um exemplo jurídico, embora não político, para o mundo, com as garantias que rodeiam os processos judiciais americanos (embora reconheça que, nos últimos tempos, tudo por lá funciona na base das possibilidades financeiras dos réus – e da cor da sua pele!)

O argumento quantitativo não pode ser utilizado por nenhum americano. Pode criticar-se a decisão de Truman de bombardear Hiroshima e Nagasaki ou concordar-se com ela – mas é evidente que o Presidente americano aceitou a possibilidade de matar muitos milhares de japoneses para evitar a morte de muito menos americanos que teriam provavelmente perecido no caso duma invasão armada do Japão. E como pode um homem como Cheney brandir uma tal justificação – uma vez mais, sem e pronunciar sobre a razão de qualquer dos lados – quando apoia os ataques israelitas na banda de Gaza ou contra os alvos protegidos pela Hamas, que provocaram centenas de mortos em represália pela morte de, no máximo, duas dezenas de israelitas?

Mas é importante dizer que, mesmo que fosse correcto, mesmo que, com a tortura dum homem se conseguisse evitar a morte de muitos, este fundamento da tortura não é suficiente. Porque estamos aqui a tratar com aquilo que nos define como história – nesse processo que nos levou a considerar a dignidade humana, mesmo que seja a dignidade de um criminoso, como um valor fundamental da nossa concepção do mundo. Como, há anos, dizia José Miguel Júdice, pese embora o que pensam certos polítcos prontos a tudo para se tornarem populares, as garantias do processo penal, por exemplo, não estão lá para defender os inocentes – mas para proteger os possíveis criminosos. É que as sociedades a que nos orgulhamos de pertencer – e que invocamos nesta chamada guerra das civilizações, aliás, a mais sinistra forma de dividir o mundo entre os «nós», a quem tudo se permite, e os «eles», a quem tudo é negado, característica essencial dos totalitarismos – decidiram, há pelo menos dois séculos, que os fins não justificam os meios.

Outro aspecto que não podemos esquecer é que a tortura se exerce sobre suspeitos – ou seja, sobre pessoas que, em princípio, de acordo com as regras das nações que chamamos civilizadas, ainda são inocentes! Quando vejo juristas a definir, especiosamente, o que pode ou não ser considerado como tortura, para justificar as acções das suas forças armadas ou dos seus serviços secretos, quando a hipocrisia vai ao ponto de aceitar que, já que há métodos que nem mesmo assim se podem utilizar, então a solução é entregar os suspeitos a países onde a prática (ou melhor, na ausência das nossas regras) tudo permite – belisco-me para tentar compreender se vivo no mundo em que cresci, onde coisas destas apenas eram aceites – e em segredo – por regimes totalitários e ditatoriais.

Até Estaline nunca aceitou publicamente que os seus presos fossem torturados; e Hitler preparava os campos de concentração para as visitas da Cruz Vermelha, de forma a esconder o que lá verdadeiramente se passava. Mas é verdade que Dick Cheney tem alguma companhia: Pol Pot, o carrasco do Cambodja, por exemplo, orgulhava-se do que fazia. Que lhe faça bom proveito!

O que os Estados Unidos fizeram, na época de Bush, foi simplesmente uma vergonha. Até posso compreender a posição de Obama quando se recusa a tornar públicas as fotografias dos principais abusos de oficiais americanos nas diferentes prisões, com a justificação de que, se elas viessem a público, soldados em guerra, no Iraque e Afeganistão, poderiam, se fosse feitos prisioneiros, sofrer horríveis represálias. Afinal, ele tem uma responsabilidade, que eu não tenho, relativamente aos membros das forças armadas americanas, de quem é o chefe supremo. Mas isso só leva a que nos perguntemos o que há de tão terrível nessas imagens que pudesse levar a tais retaliações. Pelo que se vê na fotografia que aqui juntei, a resposta não é, infelizmente, muito difícil!

segunda-feira, 18 de maio de 2009

Chopin - Concerto para piano No. 1

Há, para mim, três gravações excepcionais do Concerto No. 1 para Piano e Orquestra de Chopin, em mi menor, op.11 (que é, na verdade, o seu segundo concerto e, de longe, o mais conseguido: o chamado Concerto No. 2, comparativamente menor, é anterior!): ambas antigas, e ambas de grandes pianistas. Esta aqui ao lado, de Maurizio Pollini (ainda muito novo) com Paul Kletzki a dirigir a orquestra é uma delas. E as de Martha Argerich, com Dutoit (na altura, o seu marido), ou com Abbado, são as duas outras. Mas sou suspeito. Considero extraordinário quase tudo o que fazem Pollini ou Argerich. Ele, pela sua forma quase sobre-humana de traduzir a música, como se estivesse ao lado do compositor a criá-la de novo; ela, pela extraordinária facilidade (e velocidade) dos seus dedos sobre o piano e pela sua ligação quase física às peças que toca - ainda mais evidente, por exemplo, nas suas várias interpretações do concerto de Schumann e naquela que é uma quase esquecida, mas a melhor, gravação do Concerto No. 20, de Mozart.

E rio-me, ainda hoje, dum conhecido meu com pretensões a crítico musical, que dizia, há poucos anos atrás, que os pianistas melhoravam quando envelheciam, com a excepção, precisamente, de Pollini e Argerich, que estariam em decadência. Sinal de que os críticos muitas vezes não sabem o que dizem; pior, que se ouvem apenas entre eles, em vez de escutarem os discos, as interpretações. Para o provar, bastaria dizer que, em recentes audições «às cegas» publicadas, respectivamente, na revista belga Classica e na inglesa Gramophone, Pollini e Argerich vêm, em primeiro e segundo lugar, ele, na sua interpretação da Appassionata de Beethoven, ela, na do Concerto No.3 para piano e orquestra do mesmo compositor (acompanhada por Abbado - e o concerto No.2, no mesmo disco, é ainda melhor).

Mas não me esqueço de uma interpretação ao vivo, há mais de quinze anos, no Palais des Beaux-Arts, aqui em Bruxelas: a de El Bacha, pianista libanês radicado em Bruxelas, que me despertou, de uma vez por todas, para a extraordinária beleza do segundo andamento (lento) deste concerto. Nesse recital de data incerta, ele tocou duma forma sublime. Vantagens de estar no bom sítio e na boa altura! Não há, creio, nenhuma gravação desse recital. Mas, na minha recordação, tratou-se da mais esplêndida interpretação desse andamento - apenas desse, já que os primeiro e terceiro foram menos conseguidos. Só que não tenho nada, excepto uma memória défaillante, a lembrança dum momento inolvidável, para o provar. É pena!

sábado, 16 de maio de 2009

Lucia di Lammermoor - Callas e Donizetti

Não consigo, não consigo mesmo, perceber como há dúvidas sobre qual é a melhor interpretação da ópera de Donizetti, Lucia di Lammermoor. Para mim, Callas dirigida por Karajan, em Berlim e 1955, está a milhares de léguas das suas rivais. Em primeiro lugar, porque se trata de uma interpretação ao vivo; depois, porque a soprano se encontra numa forma vocal extraordinária e, ainda por cima, está bem acompanhada. É difícil manter o Ah do celebérrimo quarteto da forma como ela o faz. E a prova é que, exemplo raríssimo, esta parte da ópera foi repetida em palco. Poucas vezes assistimos a «bis» de cenas inteiras. Mas esta foi uma excepção (não conheço outra!) de que o disco deixou prova. (Aliás, Callas tinha-se enganado numa palavra e só corrigiu o erro quando cantou pela segunda vez.)

Quanto ao resto, que dizer? Trata-se da mais extraordinária cena da loucura que já ouvi. Numa encenação de «La Monnaie», aqui em Bruxelas, há mês e meio, Nino Machaidze cantou de forma magnífica, mas longe, muito longe, de se comparar a essa soirée de Berlim. A única verdadeira rival de Callas é Joan Sutherland. Mas, peço desculpa aos admiradores da soprano australiana, nada do que ela faz ultrappassa o canto de Maria Callas, naquele inesquecível quarteto e nas sua restantes intervenções numa ópera que, para ela, era muito especial.

Callas...

quarta-feira, 13 de maio de 2009

Chagos Islands - Diego Garcia

Para quem ainda gosta de pretender que houve alguns efeitos benéficos do imperialismo, eis um exemplo relativamente recente do que se passou com os habitantes das Chagos Islands, a principal das quais, Diego Garcia, foi tranformada num grande porta-aviões norte-americano. E, mais grave, este foi o resultado duma espécie de passagem de poderes entre o Império britânico moribundo o Império americano nascente. Por pretensas necessidade geo-estratégicas, os habitantes das Chagos Islands foram expulsos do seu lugar de origem e dispersos entre as Ilhas Maurícias e alguns lugares de Inglaterra, na sua maioria perto do aeroporto de Gatwick. Uma boa parte deles morreu, quase sem se saber porquê! De nostalgia ou, como diríamos, nós, portugueses, de saudade! A vida nas ilhas era pautada por uma inacreditável beleza. Nada que se comparasse aos sítios horrendos para onde foram mandados.

Para conseguir este resultado, os estrategas militares americanos mentiram ao seu próprio Governo e ao Congresso; exigiram dos britânicos, sem pudor algum, a entrega das ilhas sem os nativos, ou seja, para sermos claros, depois da expulsão das populações autóctones; e os britânicos, esses cederam, porque lhes pagaram. Para isso, foi, no entanto, necessário considerar a população das ilhas como emigrantes temporários - homens e mulheres que lá viviam quase desde sempre! A história - de arrepiar - é contada, com detalhes aflitivos, no livro de David Vine, Island of Shame: The Secret History of the US Military Base on Diego Garcia, e comentada por Jonathan Freedland no artigo A Black and Disgraceful Site na última edição da New York Review of Books (disponível aqui, se conseguirem aceder ao site: http://www.nybooks.com/articles/22691).

Duas lições: o imperialismo mente; e o imperialismo norte-americano mente tanto como os restantes, não obstante essas ideias que por aí correm de que se trata duma forma nova de domínio, mais soft que o imperialismo tradicional. Nada que não soubéssemos! Mas esta narrativa faz-nos lembrar, bem a propósito, o horror do que representou, para os nativos, a invasão europeia e, depois, americana. Nenhuma ponte, nenhuma estrada, nenhum caminho de ferro, poderá compensar essa dor, essa tristeza, essa saudade. E pontes, estradas, caminhos de ferro e barragens, são, infelizmente, a única coisa de que os países europeus se gabam de ter trazido aos países que dominaram! (Como nós, portugueses, com Cabora Bassa, em Moçambique.) Há pouco tempo, Sarkozy vinha dizer que, na análise do imperialismo, se devia ter em conta o que a Europea trouxe a esses países atrasados - certamente incapazes de aceder, por si mesmos, à modernidade! É uma forma nova de celebrar o bom Rei Leopoldo II, o proprietário do Congo, o homem dos escravos, das crianças de mãos cortadas para garantir que os pais trouxessem a borracha nas quantidades requeridas! Pudéssemos, ao menos, dizer que estas coisas tinham acabado: este livro mostra, infelizmente, que não!

PS. Depois de perderem, na House of Lords, a acção que iniciaram contra o Reino-Unido por terem sido espoliados da sua pátria (reconheço que esta é uma forma parcial de descrever a situação, mas vem de dentro da alma!), os habitantes das Chagos Islands recorreram para o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem. Eles nem pretendem exigir a saída dos americanos: apenas que lhe seja dada a possibilidade de viverem e morrerem onde nasceram!

sexta-feira, 8 de maio de 2009

Praga - Férias e trabalho

Praga! Eu, e milhões de outros turistas. No primeiro dia, quinta-feira da semana passada, cansado de me ter levantado demasiado cedo, só me apetecia fugir. Mas depois habituei-me às ruas da capital checa e fugi dos destinos turísticos mais evidentes. Em Praga, é essencial utilizar os transportes públicos: eléctrico e metro. Os chauffeurs de táxis são particularmente desonestos (excepção: a cadeia AAA). Mas, depois de nos habituarmos à cidade, é difícil não ceder ao seu charme. Um exemplo: as vendas públicas de bilhetes para concertos nas mais variadas igrejas, palácios ou casas municipais. Fui a dois: alguma desilusão porque, em salas que dariam para algumas centenas de pessoas, só se encontravam trinta, no máximo, e metade desses trinta eram japonesas que aplaudiam a torto e a direito. Visitei o Museu Kafka e almocei num winebar lá perto, bastante agradável por sinal e claramente não destinado aos turistas que se sentavam, alguns metros mais longe, nas esplanadas junto da Ponte Charles. Andei a pé, em média, cinco horas por dia.

A reunião, em Tábor, na Boémia do Sul, correu bastante bem. A conferência foi moderada por uma sueca lindíssima, Maria Borelius, que detém, no seu país, o recorde da ministra que menos tempo esteve em funções: apenas oito dias. Foi forçada a demitir-se depois de reconhecer que não tinha pago os impostos devidos pela babysitter que contratara para tomar conta dos filhos. E apenas agravou o seu caso quando disse que não conseguiria suportar os encargos financeiros daí decorrentes: com efeito, ela e o seu marido ganhavam mais de um milhão de euros por ano e isto sem contar a sua fortuna pessoal, que era bastante. Mesmo assim, gostei imenso dela. Ajudei-a a preparar a conferência e fui recompensado (?) por uma pergunta que me fez sem me prevenir diante de toda a assistência! A sua prestação foi extraordinária. Sem medo de interromper os oradores, colocando questões cheias de bom senso, recusando aceitar o género de conversa e de calão próprio de políticos e funcionários comunitários, Maria transformou o que teria sido uma conferência tradicional, chata e sem interesse, num debate vivo e agradável. Só não o pôde fazer com a minha comissária, a inefável Madame Hübner, polaca de origem, porque uma das suas assistentes a proibiu formalmente de interromper o discurso. E, com isso, todos perdemos: e principalmente a Comissária, que leu um papel preparado, sem graça nem garra.

Fica aqui, neste primeiro bilhete de Praga, a imagem do monumento às vítimas do comunismo e da placa que se encontra a seu lado. Extraordinária construção escultural que representa a forma como o totalitarismo devorava (literalmente) a personalidade humana. Do homem em primeiro plano, desaparecem pedaços do corpo até que ele se tranforma em nada (e é difícil não pensar em Milosz e na sua «La pensée captive»). Mas, ao mesmo tempo, se a olharmos de trás para a frente, trata-se ainda de uma parábola da ressurreição: o corpo que do nada se refaz. Um monumento particularmente comovente. Da mesma forma, o texto da placa comemorativa transporta-nos para uma época que fez parte das vidas dos países do lado de lá da cortina de ferro e que se saldou pela enorme explosão de liberdade que constituiu a queda do Muro de Berlim. É importante compreender que a lembrança do totalitarismo se encontra ainda presente nos espíritos destes povos que o sofreram durante mais de quarenta anos. Isso foi muito claro nas diversas intervenções na conferência, cujo tema era, aliás, «Vinte anos depois da queda do Muro; Cinco anos depois do alargamento». Há uma espécie de medo de um regresso ao passado, de um sentimento de que nem tudo está ainda ganho. Daí, algumas das reacções que nos parecem incompreensíveis, mesmo a nós que sofremos a ditadura de Salazar, omeadamente quando se fala das relações com a Rússia.

Em suma - e haverá mais bilhetes sobre Praga - uma viagem bastante agradável, pessoal e profissionalmente.