Entre
O Tempo e o Vento (primeira parte,
O Continente), de Erico Veríssiomo, e as minhas investigaçoes sobre António Conselheiro e a Guerra dos Canudos, devorando, mesmo sem grande entusiasmo (explicarei porquê),
A Guerra do Fim do Mundo, de Vargas Llosa, li dum assentada
O Túnel de Ernesto Sabato. Romance magnífico, intrigante - intrigante porque magnífico, magnífico por intrigante.
A voir.
Será que o romance policial á a forma privilegiada de descrição do mundo moderno? Que, mesmo quando não estamos à procura de um assassino (porque como, em
O Túnel, ele nos é revelado na primeira linha), uma violência que assume formas variadas, mais ou menos graves, representa um momento essencial da nossa existência a que não conseguimos renunciar por mais que nos esforcemos por seguir uma vi(d)a dita normal? Será que esse poder exercido sobre o corpo dos outros e que contém um elemento do mal – uma espécie de revelação da existência do diabo na vida humana (ver o Boulgakov de
O Mestre e Margarida ou o recente obituário de Tony Judt relativo a Leszek Kolakowski, publicado na última edição da
New York Review of Books) – representa afinal a presença inevitável desse mesmo mal num mundo que deixou de ter referências religiosas, uma presença que, no aspecto moral, o século XX tornou inevitável?
A questão pode colocar-se mesmo para quem, como eu, não comunga de nenhuma religião e até acredita que o mal está, muitas vezes, no exercício desmesurado da paixão religiosa (e por isso é que a expressão
religiões seculares, algumas vezes aplicado aos movimentos totalitários do século XX pode ter algum sentido).
Este romance, de pouco mais de cem páginas, confronta-nos directamente com estes e outros problemas. Deixemos mesmo de lado a questão de saber se
O Túnel é um romance policial. Afinal, ela tem uma importância claramente menor. Deixem-me fazer a pergunta de forma diferente: será que um romance, cuja primeira frase nos anuncia o homicídio, o culpado e a vítima (e o nome do culpado e da vítima são repetidos de forma aparentemente desnecessária ao longo do livro), pode exprimir o carácter determinante do que devemos entender pela ideia de existência? Uma existência marcada pela solidão absoluta, pela incapacidade de olhar para fora de nós mesmos, uma longa e desnecessária corrente que flui através de um túnel dentro do qual esquecemos até as pequenas janelas que nos poderiam ligam ao mundo exterior? Como se tudo, na vida, se equiparasse à nossa incapacidade de nos afastarmos de nós próprios:
En tout cas, il n’y avait qu’un seul túnel, obscur et solitaire: le mien.
Estas são algumas das perguntas que nos deixa o primeiro romance de Sabato. A experiência de um criminoso preso ou manietado num asilo pode afinal representar a essência, a alma, o espírito, do homem moderno? Estaremos todos – ou, pior ainda, os melhores de entre nós (e é neste sentido que me permito pensar em Dostoiévski e no seu
Crime e Castigo) – condenados a esta incapacidade de encontrar valores ou de nos atermos a comportamentos que nos permitam encarar e resolver as situações do dia-a-dia? Sabato apresenta-nos um homem de raciocínio sólido, que usa os princípios normalmente sãos da lógica aristotélica para justificar os seus actos sem razão. No segundo volume da
Peregrinação Interior, António Alçada Baptista falava do maluquinho que tinha sempre razão. Aqui, a situação é bem mais trágica; mas o raciocínio é o mesmo. Um homem olha para o mundo e vê nele um conjunto de sinais que a lógica e a razão permitem interpretar de certa forma. Que essa forma nada tenha a ver com a realidade é, no final de contas, um erro do pensamento silogístico – não um erro do universo ou um erro seu. Na sua forma de interpretar o mundo, tudo tem a sua lógica; a lógica que o leva a matar a única pessoa que poderia, afinal, compreendê-lo.
Mata-a, nas suas palavras, na sua ideia, por amor. Mas esse amor que ele proclama não é mais do que um exercício de auto-análise: a aplicação do silogismo ao acto do amor que, para existir, tem, pelo contrário, que viver, que se transformar em existência ou realidade – que não pode quedar-se apenas por uma essência descarnada, leve, pobre e suja.
Esse amor que leva – ou exige – a morte da pessoa amada não é mais do que a aplicação dos critérios da lógica formal ao que tem que ser um exercício da vida. É por isso que o narrador se encontra num túnel: num corredor estreito e escuro de que nunca poderá sair senão pela morte – num caixão de mogno lavrado e refulgente, com pegas de metal dourado e travessas de madeira preta. O objecto do amor deixa de existir; a pessoa amada perde a sua identidade e, com ela, a sua força e o seu poder de se fazer amar e de provocar o amor. O ciúme – o verdadeiro ciúme, aquele que destrói a possibilidade do amor porque termina inevitavelmente na destruição do ente amado – transforma o ente amado num ser inexistente. Nada nele permanece senão a imagem que dele se faz o amante louco. Trata-se, apenas, duma forma de posse, de propriedade, de domínio – que elimina o seu próprio objecto. Não andamos longe de Shopenhauer quando concluímos que a relação entre esses dois seres deixa simplesmente de existir – a identidade devora a partilha.
É por isso que a destruição do objecto – o assassinato, o homicídio – se torna inevitável. Porque, afinal, se trata apenas duma forma de suicídio.
Assim,
O Túnel representa esta incapacidade do homem moderno de se reconciliar consigo próprio. Este túnel não é apenas o de Juan Pablo Castel – mas o nosso, o de todos nós. É a modernidade que se entranha na nossa miserável vida para nos atormentar com sonhos de plenitude e grandeza... Sonhos que nos levam à morte ou ao hospício.
Isto dito, trata-se de um grande, grande, romance...