terça-feira, 29 de setembro de 2009

Roman Polanski et Lili Caneças

Aos 76 anos, Roman Polanski foi preso na Suiça e encontra-se em risco de ser extraditado para os Estados Unidos - e, se o for, passará o resto da sua vida na cadeia por, há trinta anos atrás, num caso de contornos mal definidos, ter sido condenado por fazer amor com uma rapariga de treze anos. Não conheço os detalhes do processo e, por isso, não posso saber quem tem razão. Polanski é hoje cidadão francês e certamente muita água correrá debaixo das pontes até que a extradição se execute. O que me preocupa é outra coisa. Hoje, no ionline, vem a notícia, dada pela própria, de que, durante uma festa no Rio de Janeiro, em data não especificada, Polanski teria dado um beijo na boca a Lili Caneças, quando esta saía da casa de banho, certamente para retocar a maquilhagem. Ora aí está uma razão mais do que suficiente para o condenar a passar algum tempo atrás das grades - embora talvez não pelo resto da sua vida.

segunda-feira, 28 de setembro de 2009

Sócrates - vitória? PS - derrota?

Anda por aí alguma gente a dizer que o PS teve uma «vitória extraordinária» nestas eleições. Permito-me discordar, eu que até a desejava. Esta conclusão é mais um exemplo típico de olharmos para a política apenas em termos de personalidades – e não de partidos, movimentos ou ideologias nem, muito menos, tendo em conta as possibilidades de contituir um governo eficaz. Ou seja: é verdade que Sócrates evitou o pontapé no rabo que toda a oposição, sem excepção, pretendia dar-lhe. O seu PS chega à frente do PSD, com uma margem relativamente confortável de 7% dos votos mas extremamente desconfortável em termos de número de deputados: apenas 18 a mais do que os que se sentarão na bancada social-democrata. O PS não conseguiu mais do que 96 lugares, uma perda de 24 em relação à anterior legislatura. O único partido com que pode assegurar uma maioria absoluta (para além do PSD, no que seria um impossível bloco central) é o CDS. Para uma maioria de esquerda, tão apreciada por alguns senadores socialistas, seria necessário convencer Louça e Jerónimo ao mesmo tempo. Possível em termos de questões sociais (casamento dos homossexuais, liberalização das uniões de facto, etc.), impossível em tudo o resto. E está ainda para saber qual o preço que os partidos de direita cobrarão por questões assim de menor importância, como deixar passar o orçamento! Deixem-me adivinhar um título possível para uma próxima edição de um qualquer matutino: «Portas condiciona a aprovação do orçamento à retirada do projecto de lei sobre casamentos homossexuais». Impossível? Deixem-me rir. Guterres comprou um orçamento com queijos limianos.

Em suma, Sócrates chegou em primeiro lugar numas eleições disputadas e conseguiu evitar que o Presidente da República lhe apontasse, com ar grave, de dedo em riste e de imediato, a porta de saída. E pode sentir algum contentamento face às dificuldades da detestada Ferreira Leite. Mas encontra-se numa situação em que conseguirá governar. Para além do mais, ao longo dos anos que passaram, não acumulou qualquer capital de simpatia junto das pessoas com quem agora terá necessidade de conversar e negociar - pelo contrário. Não vejo como o PS – mas, muito pior, o país – sairá desta embrulhada. Entretanto, deixem-no para aí a cantar vitória. Até daqui a dois anos!

domingo, 27 de setembro de 2009

Angela Merkel

Angela Merkel deve a sua reeleição exclusivamente à sua personalidade. A grande coligação com os sociais-democratas, que chefia desde há quatro anos, obrigou-a a um permanente compromisso sobre o seu programa e as políticas e acções concretas que, provavelmente, gostaria de ter prosseguido. Mas os alemães preferiram o seu estilo calmo e terra a terra, o seu total domínio das questões internas e dos dossiers importantes e o seu prestígio internacional. Por sua vez, o Partido Social-Democrata pagou cara a experiência deste bloco central em que funcionou, principalmente, como travão aos eventuais excessos de direita, em que os alemães manifestamente não acreditaram. da chanceler; e paga, sobretudo, a terceira via que lhe foi imposta por um Gerhard Schroeder de triste memória, uma espécie de arauto alemão da terceira via, cuja memória conduziu o seu partido ao seu pior resultado de sempre desde a II Guerra Mundial – como acontecerá, no Reino Unido, com o Labour Party, marcado pela memória de Blair e pelos sucessivos disparates de Brown. A subida impressionante da esquerda radical, dirigida por Oskar Lafontaine, é a prova de que governar à direita não é, para os partidos de esquerda, uma forma de conseguir votos. Escrevo a poucos minutos de conhecer os resultados das eleições portuguesas mas espero (como disse no artigo anterior) que, entre nós, este fenómeno não tenha assumido as mesmas proporções.

Agora, Merkel terá as mãos livres (os liberais não terão peso para influenciar decisivamente a chanceler e não o farão, certamente, num sentido mais social). Serão, para ela, os anos da verdade. De qualquer maneira, dentro de quatro anos, os alemães terão direito, se a esquerda despertar, a uma verdadeira escolha, entre partidos diferentes, representando ideologias diferentes e apresentando programas de governo diferentes. Melhor do que estes tons de cinzento que acompanham inevitavelmente as grandes coligações ou os blocos centrais.

Eleições

Não tenho, evidentemente, que explicar o meu voto - que nem será uma surpresa para aqueles que me conhecem. Mas como alguém que criticou duramente José Sócrates por atitudes tomadas ao longo deste mandato de quatro anos, parece-me necessário dizer que vou votar no Partido Socialista principalmente porque a ideia de ter Manuela Ferreira Leite como Primeira-Ministra pelos próximos dois a quatro anos me parece insuportável. E porque, dadas as recentes atitudes de Cavaco Silva e a sua constante interferência em assuntos que constitucionalmente relevam da competência do Governo (o recente caso do veto à lei sobre as uniões de facto é disso um exemplo claro), me parece indispensável que se crie um verdadeiro equilíbrio de poderes no topo do Estado - razão pela qual a maioria absoluta do PS me parece também desejável, embora não faça dela cavalo de batalha. Para além do mais, os argumentos indecentes em que o PSD assentou a sua campanha, como o caso das escutas e a ideia da asfixia democrática, enojaram-me. E, já agora, porque pertenço àquele núcleo de portugueses que acham que o TGV deve ser feito, e deve ser feito já, para diminuir o carácter periférico da economia, sociedade e cultura portuguesas (não para os espanhóis entrarem por aí adentro, o que já podem fazer de carro; mas para nós sairmos daqui mais facilmente e acedermos mais facilmente à Espanha e à Europa); e com o novo aeroporto de Lisboa, por questões de segurança da nossa capital. O facto de não estar de acordo com a terceira auto-estrada Lisboa/Porto (confesso que, desterrado em Bruxelas, nem sabia que já existiam duas) não chega para me fazer mudar de opinião.

Para mim, o Bloco de Esquerda nunca foi alternativa. Não gosto desses convertidos da UDP que me lembram os jesuítas (e os piores marxistas) na sua forma de estar no mundo e de encarar os outros. E o Partido Comunista, pese embora a simpatia natural de Jerónimo de Sousa (com os limites de alguém que não sabe pensar fora duma cartilha pré-aprendida, como ficou patente na sua passagem pelo Gato Fedorento), nada tem, desde há muitos anos, a oferecer ao país.

Voto Sócrates com a esperança de que possa repensar muitas das decisões que tomou ao longo do seu primeiro mandato e de que assuma um estilo de governação mais humilde e dialogante. Pode ser que me engane; mas no que não me engano, de certeza, é em que Manuela Ferreira Leite faria ou fará muito pior.

sábado, 26 de setembro de 2009

Para a Trezzu








Tudo, na vida, tem solução. Basta saber que há gente que nos ama.

Netas

Tenho passado por um tempo de algumas dificuldades familiares - mas nunca com as minhas filhas ou o meu filho. (Pelo contrário, principalmente quanto ao Diogo, sou eu que o tenho desacompanhado um bocado por causa desses mesmos problemas). Mas estas fotografias mostram o outro lado das coisas e as causas da minha profunda e íntima felicidade. Podia acrescentar fotografias da Sofia e Diogo, Inês e João, Trezzu e Dico, de quem sempre recebo ajuda. Mas opto pelas fotografias das minhas netas juntas, para mostrar a ternura que existe cá para estas bandas.

E, já agora, transcrevo as partes mais relevantes da mensagem da Sofia que acompanhava as fotografias:

«Olá,
Para comemorar as 5 semanas de vida da Constança (só mesmo as mães babadas é que comemoram as 5 semanas...), decidi enviar-vos fotografias recentes (tiradas há mais ou menos 3 semanas, mas não tirámos mais desde então) da família. Aproveito este mail para vos dar novidades, dado que não falo/escrevo convosco desde há algum tempo. Já estou óptima... A Constança já faz as noites, a Xá também (a seguir à Constança nascer passou a acordar mais vezes do que a irmã mas agora já passou), portanto está tudo bem por cá. Aqueles que dizem que um segundo filho é muito mais trabalho não tiveram a sorte de ter as minhas duas filhas. Tudo se passa tranquilamente. Acho que ajuda que a Xá está absolutamente apaixonada pela irmã, a quem deixa fazer tudo e com quem quer estar sempre que possível. A rotina para a Xá ir para a cama é deitar a Constança na cama dela e deixá-las aninhadas durante 5 mns.
Adoram-se....
Muitos beijinhos,
Fia
»

terça-feira, 22 de setembro de 2009

O Público sacode a água do capote

Há, no editorial de hoje do Público, onde José Manuel Fernandes tenta, como se costuma dizer, sacudir a água do capote, esta passagem que merece reflexão: «A 18 de Agosto o Público editou uma notícia, baseada numa fonte identificada como «membro da Casa Civil do Presidente da República» em que esta assumia que esta se interrogava: «Será que em Belém passámos à condição de vigiados?» Uma tal suspeição, assumida por uma fonte do Palácio de Belém, é notícia em qualquer parte do mundo (sublinhado meu). No dia seguinte essa notícia não só não foi desmentida, como foi confirmada por outros órgãos de informação. Escrevi então em editorial: «Se a Presidência da República quis que se soubesse das suas suspeitas sobre o não cumprimento das regras do jogo por alguns actores políticos é porque sente que pode ficar no olho da tempestade depois das eleições de 27 de Setembro».

A passagem que merece que nos detenhamos um pouco sobre ela é a afirmação sublinhada: «uma tal suspeição é notícia em qualquer parte do mundo». Não é verdade. Um jornal que se preza tem que se assegurar da verdade do conteúdo das notícias que veicula. Não pode basear-se apenas em boatos ou em informações não confirmadas. Basta ter visto o filme All the President’s men, sobre o Watergate, para se compreender o enorme cuidado e o imenso trabalho de investigação que a direcção e a redacção do Washington Post efectuaram antes de trazerem a público uma informação daquela gravidade. Um trabalho que durou semanas, meses… Que os obrigou, a certa altura, a exigirem conhecer a identidade do seu informador. Que implicou os advogados do jornal e, numa fase já muito adiantada, os seus administradores. Não foi trabalho feito em cima do joelho. Muito menos, uma notícia dada com claros propósitos políticos (como o Provedor do Leitor do Público o assinalou).

Para além do mais, o jornal dirigido por José Manuel Fernandes estava em condições de saber, por uma mensagem do seu colaborador na Madeira, velha de dezasseis ou dezassete meses, que as suspeitas da Presidência da República se baseavam em nada – ou ainda pior, como é dito no correio electrónico divulgado pelo Diário de Notícias, em simples paranóia. Dar a notícia nestas condições é de uma inqualificável irresponsabilidade.

Porque a notícia não era anódina… Já o disse várias vezes: se o Governo andasse a vigiar o Presidente da República, a única consequência possível era a demissão do Primeiro-Ministro a o fim da sua carreira política. Uma informação dessa importância, quando não confirmada, não é notícia em nenhuma parte do mundo.

PS Só para acrescentar que o cinismo de José Manuel Fernandes chega ao ponto de o vermos agora pedir responsabilidades ao Presidente da República e exigir-lhe que esclareça devidamente todo este caso. O mesmo, exactamente, que devíamos esperar do director de um jornal que é o principal responsável por esta polémica.

segunda-feira, 21 de setembro de 2009

Faltam duas demissões

Um assessor do Presidente da República decide confiar a um jornalista – sem nenhuma prova – a informação espantosa de que a Presidência está a ser vigiada (de forma que seria obviamente ilegal) pelo Governo. Os jornalistas do Público definem um estratagema destinado a garantir que a notícia tivesse alguma credibilidade: através duma mensagem electrónica, a edição nacional do jornal pede ao seu correspondente madeirense (que levanta dúvidas) que divulgue essa informação, falando de um colaborador do Primeiro-Ministro que teria acompanhado uma viagem do Presidente à Madeira. Esse jornalista conclui – e disso avisa o jornal – que nada do que foi aventado é verosímil. Mais de 16 meses depois, em plena campanha eleitoral, o Público, em primeira página, anuncia que a Presidência da República pensa estar a ser vigiada pelo Governo...

O que se passa quando toda esta porcaria é conhecida? Pôr em questão a idoneidade do colaborador do Presidente da República ou do Director do Público? Não! Em vez disso, dispara-se sobre o mensageiro. A culpa é do Diário de Notícias, que divulgou esta nojeira (em colaboração, é claro, com os serviços secretos e com a Presidência do Governo!) É como se disséssemos que a culpa do Watergate foi do homem que o denunciou – ou dos jornalistas que relataram o caso, obviamente (embora um deles fosse republicano) interessados em conseguir a demissão de Nixon.

Hoje sabemos quem foi o responsável por esta série de disparates gravíssimos (que José Miguel Júdice, com a sua habitual clarividência denunciou): Fernando Lima, assessor de Cavaco Silva, homem de sua inteira confiança, que o acompanha há quase ou mais de vinte anos; e, por sua via – porque não nos retas outra alternativa senão pensá-lo – o próprio Presidente. Coisas destas ditas durante o período da campanha eleitoral não podem senão ser vistas como uma interferência desastrada e desastrosa do Presidente numa campanha em que tem a obrigação constitucional de manter uma estrita independência. Que José Manuel Fernandes, Director do Público, pretenso jornalista, homem com uma evidente agenda política ao serviço dos seus proprietários, considere mais importante saber como foi descoberto o correio electrónico entre colaboradores do seu jornal do que saber como foi possível que uma notícia sem qualquer fundamento fosse nele acolhida, não é grave apenas porque nós conhecemos José Manuel Fernandes.

Assim, as suspeitas de escutas por parte do gabinete do Primeiro-Ministro à Presidência da República foram levantadas por um homem da confiança de Cavaco Silva. Lima terá, segundo documentos a que o DN teve acesso, procurado o jornalista do Público Luciano Alvarez, segundo este último, em nome do próprio Presidente. Num encontro, que terá decorrido em Abril de 2008, «num café discreto da Av. de Roma», o assessor de Belém entregou a Luciano Alvarez um dossier sobre Rui Paulo de Figueiredo, adjunto jurídico de José Sócrates, cujo comportamento teria levantado suspeitas (desmentidas, repita-se pelo próprio jornalista do Público) aquando da visita de Cavaco Silva à Madeira. Lima estaria convencido que este adjunto de Sócrates integrou a comitiva para «observar, o mais dentro possível, os passos da visita do Presidente e o modo de funcionamento interno do gabinete presidencial».

Todas estas informações constam de uma mensagem electrónica enviada por Alvarez ao correspondente na Madeira, Tolentino de Nóbrega, no qual relata o encontro com Fernando Lima e sugere que até seria bom que a história viesse da Madeira, para que o ónus não recaísse sobre a Presidência: «O Lima sugere e eu acho bem duas perguntas para o início do trabalho (até porque a eles também interessa que isto comece na Madeira para não parecer que foi Belém que passou esta informação, mas sim alguém ligado ao Jardim)». Vão ao ponto de dizer que se trata de paranóia – mas, mesmo assim, importante: «Nem os homens do Presidente da República arriscam a falar por telefone». Admitindo que «tudo» não passe de «paranóia do Presidente e do Lima, Alvarez, de férias, faz questão de frisar que «não deixa de ser grave que o PR pense isto e que ande a passar informação ao Público, manifestando grande vontade da história vir a público». E nisso, estamos de acordo. É grave! Seria gravbe, principalmente se fosse verdade.

O Provedor dos Leitores do Público já disse o que tinha a dizer sobre este assunto. Numa palavra, que o jornal de que é Provedor agiu mal – contra todas a regras de uma deontologia esquecida (para além de lhe ter rebuscada a correspondência!)

Fernando Lima foi hoje afastado, ou demitido, por Cavaco Silva. Mas faltam duas demissões.

A primeira, evidente, de José Manuel Fernandes. Não se brinca com os leitores, não se publicam notícias claramente falsas ou não fundamentadas, principalmente em fase de campanha eleitoral. O reconhecimento de que o Público se limitou a ser correia de transmissão de Fernando Lima basta para impor a demissão de um director que pactuou com essa atitude.

A segunda, de Cavaco Silva. Permitir (ou ignorar) que um seu assessor lance uma suspeita desta gravidade sobre o Governo do país – e andar, durante tanto tempo, a fugir com o rabo à seringa, a evitar o assunto, a fingir que nada sabia – é uma atitude indigna. É uma regra não escrita da actividade política – e de qualquer outra – que devemos assumir a responsabilidade pelos actos dos nossos colaboradores. O Presidente deve resignar. Não tem, infelizmente, condições para continuar a representar os portugueses... Que não são desonestos como os seus colaboradores.

terça-feira, 15 de setembro de 2009

Ernesto Sabato - O Túnel

Entre O Tempo e o Vento (primeira parte, O Continente), de Erico Veríssiomo, e as minhas investigaçoes sobre António Conselheiro e a Guerra dos Canudos, devorando, mesmo sem grande entusiasmo (explicarei porquê), A Guerra do Fim do Mundo, de Vargas Llosa, li dum assentada O Túnel de Ernesto Sabato. Romance magnífico, intrigante - intrigante porque magnífico, magnífico por intrigante. A voir.

Será que o romance policial á a forma privilegiada de descrição do mundo moderno? Que, mesmo quando não estamos à procura de um assassino (porque como, em O Túnel, ele nos é revelado na primeira linha), uma violência que assume formas variadas, mais ou menos graves, representa um momento essencial da nossa existência a que não conseguimos renunciar por mais que nos esforcemos por seguir uma vi(d)a dita normal? Será que esse poder exercido sobre o corpo dos outros e que contém um elemento do mal – uma espécie de revelação da existência do diabo na vida humana (ver o Boulgakov de O Mestre e Margarida ou o recente obituário de Tony Judt relativo a Leszek Kolakowski, publicado na última edição da New York Review of Books) – representa afinal a presença inevitável desse mesmo mal num mundo que deixou de ter referências religiosas, uma presença que, no aspecto moral, o século XX tornou inevitável?

A questão pode colocar-se mesmo para quem, como eu, não comunga de nenhuma religião e até acredita que o mal está, muitas vezes, no exercício desmesurado da paixão religiosa (e por isso é que a expressão religiões seculares, algumas vezes aplicado aos movimentos totalitários do século XX pode ter algum sentido).

Este romance, de pouco mais de cem páginas, confronta-nos directamente com estes e outros problemas. Deixemos mesmo de lado a questão de saber se O Túnel é um romance policial. Afinal, ela tem uma importância claramente menor. Deixem-me fazer a pergunta de forma diferente: será que um romance, cuja primeira frase nos anuncia o homicídio, o culpado e a vítima (e o nome do culpado e da vítima são repetidos de forma aparentemente desnecessária ao longo do livro), pode exprimir o carácter determinante do que devemos entender pela ideia de existência? Uma existência marcada pela solidão absoluta, pela incapacidade de olhar para fora de nós mesmos, uma longa e desnecessária corrente que flui através de um túnel dentro do qual esquecemos até as pequenas janelas que nos poderiam ligam ao mundo exterior? Como se tudo, na vida, se equiparasse à nossa incapacidade de nos afastarmos de nós próprios: En tout cas, il n’y avait qu’un seul túnel, obscur et solitaire: le mien.

Estas são algumas das perguntas que nos deixa o primeiro romance de Sabato. A experiência de um criminoso preso ou manietado num asilo pode afinal representar a essência, a alma, o espírito, do homem moderno? Estaremos todos – ou, pior ainda, os melhores de entre nós (e é neste sentido que me permito pensar em Dostoiévski e no seu Crime e Castigo) – condenados a esta incapacidade de encontrar valores ou de nos atermos a comportamentos que nos permitam encarar e resolver as situações do dia-a-dia? Sabato apresenta-nos um homem de raciocínio sólido, que usa os princípios normalmente sãos da lógica aristotélica para justificar os seus actos sem razão. No segundo volume da Peregrinação Interior, António Alçada Baptista falava do maluquinho que tinha sempre razão. Aqui, a situação é bem mais trágica; mas o raciocínio é o mesmo. Um homem olha para o mundo e vê nele um conjunto de sinais que a lógica e a razão permitem interpretar de certa forma. Que essa forma nada tenha a ver com a realidade é, no final de contas, um erro do pensamento silogístico – não um erro do universo ou um erro seu. Na sua forma de interpretar o mundo, tudo tem a sua lógica; a lógica que o leva a matar a única pessoa que poderia, afinal, compreendê-lo.

Mata-a, nas suas palavras, na sua ideia, por amor. Mas esse amor que ele proclama não é mais do que um exercício de auto-análise: a aplicação do silogismo ao acto do amor que, para existir, tem, pelo contrário, que viver, que se transformar em existência ou realidade – que não pode quedar-se apenas por uma essência descarnada, leve, pobre e suja.

Esse amor que leva – ou exige – a morte da pessoa amada não é mais do que a aplicação dos critérios da lógica formal ao que tem que ser um exercício da vida. É por isso que o narrador se encontra num túnel: num corredor estreito e escuro de que nunca poderá sair senão pela morte – num caixão de mogno lavrado e refulgente, com pegas de metal dourado e travessas de madeira preta. O objecto do amor deixa de existir; a pessoa amada perde a sua identidade e, com ela, a sua força e o seu poder de se fazer amar e de provocar o amor. O ciúme – o verdadeiro ciúme, aquele que destrói a possibilidade do amor porque termina inevitavelmente na destruição do ente amado – transforma o ente amado num ser inexistente. Nada nele permanece senão a imagem que dele se faz o amante louco. Trata-se, apenas, duma forma de posse, de propriedade, de domínio – que elimina o seu próprio objecto. Não andamos longe de Shopenhauer quando concluímos que a relação entre esses dois seres deixa simplesmente de existir – a identidade devora a partilha.

É por isso que a destruição do objecto – o assassinato, o homicídio – se torna inevitável. Porque, afinal, se trata apenas duma forma de suicídio.

Assim, O Túnel representa esta incapacidade do homem moderno de se reconciliar consigo próprio. Este túnel não é apenas o de Juan Pablo Castel – mas o nosso, o de todos nós. É a modernidade que se entranha na nossa miserável vida para nos atormentar com sonhos de plenitude e grandeza... Sonhos que nos levam à morte ou ao hospício.

Isto dito, trata-se de um grande, grande, romance...

domingo, 13 de setembro de 2009

Manuela Ferreira Leite e José Sócrates

Confesso que não sou imparcial. A ideia de que Manuela Ferreira Leite possa vir a ser a próxima Primeira-Ministra de Portugal deixa-me aterrorizado. Mas todos os que lêem este blogue sabem também que não sou um admirador incondicional de José Sócrates. Tenho-o criticado imensas vezes; julgo que, nele, se juntam uma despropositada confiança em si próprio e uma não menos terrível incapacidade de compreender que, em democracia, há – ou deveria haver – uma discussão de ideias que deveria sobrepor-se ao combate entre adversários. Sócrates, com todas as suas qualidades (persistência que, contudo, por vezes se transforma em vã teimosia, coragem política, capacidade de comunicação) é o principal responsável pela pouca qualidade da nossa democracia (embora o termo asfixia democrática seja manifestamente exagerado), principalmente através das suas intervenções parlamentares nos debates da Nação em que, tantas vezes, a necessidade de destruir pessoalmente o adversário se sobrepôs à discussão de temas e projectos. É certo que foi ele que criou essas sessões de prestação de contas do Governo; mas usou-os sobretudo para fins de comício e propaganda.

Paga agora o preço do seu orgulho oco. Conseguiu transformar uma eleição que poderia basear-se no balanço da sua política governamental numa votação sobre o seu carácter. O seu principal erro recente: não ter remodelado o governo após as eleições europeias. Foi como se dissesse: «Sei o que faço. O que me diz o povo não me interessa».

Não me parece que tenha ganho alguma coisa com esta estranha campanha do Partido Socialista, preocupado em apresentar programas, planos, projectos, propostas, acções... Afinal, estando no Governo há quatro anos, essas coisas já deveriam estar feitas ou, pelo menos, quase feitas.

Tendo em conta o que foi dito e a forma como foi dito, não compreendo como pode considerar-se o debate de ontem como uma vitória de Manuela Ferreira Leite – ou sequer, como um empate técnico. A Presidente do PSD não disse quase nada – e o que disse roçou o disparate (vale apenas afirmar, em 2009, que não somos uma província de Espanha?) ou o iníquo (essa de dizer que a posição do Governo pode equiparar-se a quem mata pai e mãe só para dizer que é órfão mereceria uma resposta que só não veio porque o debate estava no fim e Sócrates já estaria cansado). Defender a inclusão, nas listas do PSD, de pessoas acusadas de crimes graves e dizer, de forma mentirosa, que nunca se pronunciava sobre processos judiciais em curso, foi mera hipocrisia (mas, uma vez mais, Sócrates, preocupado com o caso Freeport, foi incapaz de lhe responder que já por mais de uma vez Ferreira Leite se referiu a Lopes da Mota, presidente do Eurojust, que, ainda por cima, é alvo de mero processo disciplinar e não criminal, considerando-o incapaz de representar Portugal nessa instituição).

Mas, por outro lado, é muito provável que Ferreira Leite tenha mesmo ganho o debate. O que lhe importava era deixar que o seu adversário se enredasse precisamente nessas propostas ou explicações sobre as quais ela não pretende comprometer-se. Os documentos exibidos por Sócrates a comprovar as suas contradições foram afastados com o argumento falacioso de que «as circunstâncias mudaram» (lembre-se que a oposição do PSD ao TGV, por exemplo, é anterior à crise!).

O que é grave, nestas eleições, é que Manuela Ferreira Leite quase não precisa de dizer nada para não as perder – ou memo para ganhá-las. O PS continua caído num canto do ringue, recuperando do soco no estômago das eleições europeias. Ao PSD basta que o árbitro não interrompa o combate – e deixe o seu adversário caído por tempo suficiente, mesmo sem necessidade de terminar a contagem até 10 que asseguraria a vitória por KO.

E, para uma notável análise, que me parece pertinente e com a qual concordo em termos gerais, do que se passou ontem na SIC, pode ver-se o artigo do Director do I, Martim Avillez de Figueiredo, aqui:

http://www.ionline.pt/conteudo/22814-comentario-ao-debate-socrates---ferreira-leite

sexta-feira, 11 de setembro de 2009

Super Flumina Babylonis

Os restos mortais de Jorge de Sena foram hoje transladados para Portugal. Lembrem-se os seus versos, que já aqui transcrevi:






Esta é a ditosa pátria minha amada. Não.
Nem é ditosa, porque o não merece.
Nem minha amada, porque é só madrasta
Nem pátria minha, porque eu não mereço
a pouca sorte de ter nascido nela.


Sena volta a este país cuja história, segundo ele, no seu célebre Sermão da Guarda, quando, em 1977, pronunciou o tradicional discurso do 10 de Junho, esteve «sempre repartida entre o anseio de uma liberdade que ultrapassa os limites da liberdade possível (ou sejam as liberdades dos outros, tão respeitáveis como a de cada um) e o desejo de ter-se um pai transcendente que nos livre de tomar decisões ou de assumir responsabilidades, seja ele um homem, um partido, ou D. Sebastião» – e poderíamos acrescentar a miragem oriental, africana ou, recentemente, europeia, o Marquês de Pombal ou Salazar.

Desta Pátria, em sua opinião, apenas se aproveitava o povo, que o resto era «vil canalha, e mesquinha (e a minha amargura de erudito é a descoberta de que realmente o foi sempre - pelo menos do século XVII em diante, quando realmente não merecíamos senão ter continuado espanhóis...)»

Mas este povo – o povo, e não essas pretensas elites – era também capaz de fazer nascer o Camões descrito no soberbo e sublime conto Super Flumina Babilonys, o homem pobre, alquebrado, cego, mas orgulhoso do seu saber e incapaz de vender alma e versos por tenças, pensões ou esmolas, o homem que sabia que era «um grande poeta, (que) transformava em poesia tudo o que tocava, mesmo a miséria, mesmo a amargura, mesmo o abandono da poesia (e que), tremendo todo, mas com a mão muito firme, começou a escrever... Sobre os rios que vão de Babilónia a Sião assentado me achei... Riscou, desesperado. Recomeçou. Sobre os rios que vão por Babilónia me achei onde sentado chorei as lembranças de Sião e quanto nela passei... E ficou escrevendo pela noite adiante». Com uma mesura que, melhor do que ninguém, ele saberia manter, estas palavras podiam aplicar-se a Jorge de Sena: também ele sabia que era um grande poeta, escritor, erudito, e também não estava disposto a vender-se por trinta dinheiros.

Portugal não mereceu Jorge de Sena. Temeu a sua inteligência, a sua incorruptibilidade, a sua teimosia e contumácia críticas. Rejeitou-o como ente estranho enquanto vivo e, mesmo depois de 1974, ainda houve quem se recusasse a recebê-lo, a trazê-lo para nós, sob o estranho argumento, que escondia medo e inveja, de que já não seria português: ele, o autor de Sinais de Fogo, um dos mais importantes romances portugueses do século XX, um dos nossos maiores poetas e, seguramente, a par de Eduardo Lourenço e poucos outros, um dos poucos homens de cultura que soube reflectir sobre Portugal e, mesmo não escondendo (mas quem pode levar-lho a mal?) a amargura do exilado, guardou sempre o sentido crítico que a sua inteligência lhe impunha e soube sempre distinguir o trigo do joio, reconhecendo a arte dos seus congéneres que o mereciam. As suas cartas a vários autores portugueses (Sophia, Ruy Belo, Eduardo Lourenço, Eugénio de Andrade, tantos outros) são disso exemplo vivo e, perdoem-me esta opinião pessoal, o poema que escreveu quando morreu Adolfo Casais Monteiro é um testemunho coberto de lágrimas e de amor da amizade que os uniu sempre e deles ficou para além do tempo.

Mas, se Portugal não mereceu Jorge de Sena, Jorge de Sena merece Portugal. E é claro que lhe seria devido lugar no Panteão. Mas, pensando bem, e conhecendo-o como o conhece alguém que apenas o leu, talvez seja melhor que fique nos Prazeres, donde poderá avistar o Tejo, com a enorme beleza dos seus fins de tarde, uma beleza que, contudo, como ele compreendeu, traz consigo o germe da nossa destruição, porque nos torna complacentes e, até, maus.

Resta-nos que a sua obra será integralmente republicada. Os meus livros de Jorge de Sena são já apenas colecções de folhas que se descolaram com o tempo. Será bom ter a oportunidade de os ler de novo sem me preocupar se caem as páginas.

terça-feira, 8 de setembro de 2009

Manuela Ferreira Leite e Alberto João Jardim

Manuela Ferreira Leite diz que não se sente, na Madeira, um clima de «asfixia democrática» como a que encontra no Continente. Salvo o devido respeito (que, como dizíamos na Faculdade de Direito, com assumida ironia, «é o máximo»), a chefe do PSD anda a brincar com o país.

Eu poderia multiplicar os exemplos. Deixem-me lembrar apenas um. Há cinco ou seis anos, apareceu num jornal madeirense a notícia de que um dos dezoito directores-gerais das secretarias regionais do governo de Jardim se preparava para apoiar o PS nas eleições que se seguiriam. Tanto bastou para que fosse organizada uma reunião de desagravo ao grande líder – e, evidentemente, nenhum dos funcionários presentes assumiu publicamente a posição contestada: todos lhe uraram eterna lealdade. Jardim, com o mesmo à-vontade que lançou esse simpático «fuck you» aos jornalistas que questionavam a utilização de um carro oficial para as deslocações de Manuela Ferreira Leite em campanha eleitoral na Madeira (verdade seja dita que a Presidente do PSD foi mais correcta e inteligente quando se pronunciou sobre este incidente menor - se bem que eu nunca imaginasse ouvir essas doces palavras tais palavras da boca da professora!), Jardim, este nosso caudilho lusitano, declarou, naquela altura, que qualquer dirigente da administração regional que apoiasse o partido da oposição seria posto na rua.

E não é só isto. Nenhuma empresa regional ou local de importância é dirigida senão por apaniguados do inefável Alberto João. A Madeira é um claro caso de ditadura baseada em voto pretensamente democrático. Jardim é um autocrata de pacotilha, mas um autocrata – considera-se chefe por direito divino ou por eficácia burocrática – oh, as famosas obras públicas – e acha que todos aqueles que discordam das sua opções ou opiniões são broncos, atrasados mentais ou anti-patriotas regionais (a ideia da Nação preocupa-o pouco!)

Um governo do PSD – ou do PS – que não se ocupe da forma como é gerida a Madeira (e, em certa medida, mas com menor arrogância, os Açores) não merece o voto de nenhum cidadão. Um Presidente da República que aceite este estado de coisas não cumpre os deveres do seu cargo (e não me refiro exclusivamente a Cavaco Silva; outros pactuaram; na minha opinião, quem menos o fez foi ainda Jorge Sampaio).

A Madeira é, enfim, uma espécie de Venezuela, só que com menos importância internacional. Mas tem importância nacional. Ferreira Leite desqualifica-se ao dar a entender que considera o que por lá se passa como o exercício normal de uma democracia. E contradiz-se: que eu saiba, Sócrates também foi eleito com o voto maioritário dos cidadãos. E nisto, tenho a certeza de ter razão. Até o Sobe e Desce do Público parece estar de acordo comigo.

Não há nenhuma comparação entre a asfixia democrática que se sente na Madeira e a que Ferreira Leite entende que exista no Continente, mesmo se este Continente tem José Sócrates como Primeiro-Ministro. Isto não quer dizer que a Madeira não tenha evoluído, económica e socialmente, durante o longo governo de Jardim. Eu conheci esta região há trinta anos: e não há comparação entre a pobreza que então existia, as estradas que nos faziam andar a 20 quilómetros por hora de média, a falta de futuro para todos comparada com a sua actual pujança económica. Mas Portugal também evoluiu sob governos socialistas e, mesmo, sob o governo de Sócrates. E, sobretudo, a eficácia económica não justifica todos os meios. Nem sequer é garantai de sucesso: o fontismo não conseguiu aguentar a Monarquia.

Em Portugal, hoje, o que perdemos foi a noção de uma democracia em que os adversários se respeitavam mesmo quando defendiam posições diferentes. O que perdemos foi o tempo de Soares e Sá-Carneiro; ou mesmo esse, mais recente, de Guterres e Rebelo de Sousa. Disso têm culpa Sócrates e Ferreira Leite: ambos, e nas mesmas proporções.

O que perdemos foi o espaço de diálogo democrático. A discussão de ideias, de programas, de projectos. O que perdemos foi a possibilidade de falarmos...


PS Peço desculpa por ter recorrido a uma caricatura para ilustrar esta artigo. Mão era a minha intenção porque acho que as coisas de que trato aqui são suficientemente sérias. Mas a verdade é que não consegui encontrar, na estratosfera, uma só fotografia de Ferreira Leite e João Jardim lado a lado, falando cordata e coloquialmente. Será que não se querem ver juntos? O leitor que decida!

domingo, 6 de setembro de 2009

O que andamos a perder

Vasco Pulido Valente foi convidado a escrever um guião sobre um texto de Camilo Castelo Branco. Mesmo não sendo inteiramente analfabeto (palavras suas), três coisas o impressionaram. «Primeira, a quantidade de palavras, que não conhecia e que (foi) obrigado a procurar em dicionários (os melhores do mercado), em que elas, para (sua) surpresa, não constavam. Segunda, as dificuldades da construção sintáctica, que já não (lhe) eram familiar(es) e quase (o obrigaram) a decifrar certo português como latim. E, terceira, o já esperado embaraço – e também vergonha – de traduzir prosa para acção. Como dizia alguém a Scott Fitzgerald, por volta de 1930, não é possível fotografar adjectivos – nem verbos, nem preposições». Acrescente-se, contudo – mas trata-se de mera correcção quase inapropriada – que Scott Fitzerald foi bem adaptado ao cinema e foi, também, um argumentistas de talento.

Com excepção da última observação – porque nem me ocorre compor guiões para livros nem passa pela cabeça de ninguém pedir-me que o faça – eu, que ando a ler alguns grandes livros brasileiros (Ubaldo Ferreira, Nelida Piñon, Erico Veríssimo), tenho sentido exactamente a mesma coisa. Exceptuando, talvez, Machado de Assis, cujo génio ultrapassava o que ele chamava «palavras complicadas», temo-nos tornado analfabetos em relação aos grandes nomes da literatura de língua portuguesa. Não acreditam? Releiam Os Maias e escrevam-me depois a dizer quantas vezes foram consultar o dicionário. E nem é um livro particularmente difícil.

Os meus livros portugueses (incluo tudo o que se escreve em português) que leio estão cheios de pequenas cruzes feitas a lápis à margem de certas linhas para indicar palavras que me proponho procurar no dicionário. E, como Pulido Valente, não me considero analfabeto. E, como ele, infelizmente, na maioria dos casos, não consigo encontrar essas palavras nos dicionários que consulto. Talvez por viver em Bruxelas há pouco menos de vinte e cinco anos (meu Deus!), sinto-me quase mais à vontade quando leio textos franceses. E – mais importante ainda – se quero encontrar uma palavra num dicionário, consigo sempre. Se não estiver no Larousse, está no Robert, se em nenhum dos dois, no Littré.

Assistimos a um empobrecimento generalizado da língua sobre o qual deveríamos reflectir. Não se trata apenas de um problema nacional. Falamos (nós, os portugueses, mas também os americanos, os franceses, os alemães...) com um léxico de menos de cem palavras – aquelas de que precisamos para acorrer às situações quotidianas. E nem isso: todos os estudos dizem que nem sequer somos capazes de responder às questões correntes com que somos confrontados no decurso da nossa vida normal – no médico, no banco, no centro de emprego, numa agência de viagens, numa companhia de aviação... Entre um lado e outro – entre o utente e o profissional que presta serviços – existe um fosso quase insuperável, provocado, ou pela incompreensão de uns ou pelo uso de um insuportável jargão por parte de outros.

Christopher Lasch dizia que uma das razões do empobrecimento da democracia residia numa crescente falta de interesse pelas razões, argumentos e valores do homem comum. Em outras épocas (ele falava dos Estados Unidos), mesmo os homens que não faziam parte das elites conseguiam ser ouvidos (Mr Smith goes to Washington). A sua palavra contava; a sua acção também. Mas isso implicava que houvesse uma forma de todos nos entendermos – com alguma cultura e elevação. Basta olhar para os comentários que são enviados para os jornais ou ouvidos na televisão por portugueses, franceses, ingleses, americanos, italianos, espanhóis... para percebermos que essa qualidade já não existe. O mal é que isso se reflecte sobre todos nós.

sexta-feira, 4 de setembro de 2009

Manuela Moura Guedes, Sócrates e as eleições

Se a ideia de suspender o «Jornal de Sexta» da TVI, apresentado por essa personagem desengonçada e desengraçada que dá pelo nome de Manuela Moura Guedes e que invade algumas das nossas casas (aquelas que têm a televisão ligada para esse canal, o que não é o meu caso!) às sextas-feiras à noite, foi tomada com o objectivo de favorecer José Sócrates e o PS, só pode dizer-se que o tiro saiu pela culatra. E isto é tão claro que autoriza mesmo a interpretação contrária: a de que a decisão foi tomada para favorecer o PSD. A menos – e sabemos muito pouco sobre este assunto – que o que Manuela Moura Guedes se propunha dizer, esta noite, a propósito do caso Freeport, fosse de tal forma grave que pudesse colocar a empresa para que trabalha(va) em situação grave de responsabilidade criminal ou civil.

De qualquer maneira, é certo que esta decisão só pode prejudicar Sócrates e permitirá a Ferreira Leite arvorar-se em defensora de uma imprensa livre e independente que, nos seus tempos de ministra, nunca se esforçou por proteger. E não são, certamente, as suas infelizes declarações sobre a suspensão da democracia (por seis meses? um, dois anos?) que nos deixarão descansados.

Até Miguel Pais do Amaral – pouco suspeito de simpatias de esquerda – confessou que, com ele, o «Jornal de Sexta» nunca teria existido. Só existiu, com efeito, porque Manuela Moura Guedes era a mulher do director da TVI, José Eduardo Moniz. Marinho Bastos disse tudo o que havia a dizer a respeito do jornalismo que aí era feito.

Faço um apelo a todos os meus amigos de esquerda – alguns comunistas, outros, poucos, do Bloco de Esquerda – que, pelas boas razões (a enorme desilusão relativamente a Sócrates), não confiem o país ao PSD e à senhora professora doutro tempo, cujo objectivo primeiro é distribuir reguadas pelos alunos que se portam mal!