quarta-feira, 31 de maio de 2006

Europeus

(Click to see details)
Os estereótipos têm a alma dura e uma provecta idade. Em particular, os epítetos que se lançam uns aos outros os diferentes povos europeus vêm de muito longe. Vejam-se estes versos de um poema espanhol da Idade Média («Poema de Alexandre»):

As gentes de Espanha são enérgicas e activas
Os Franceses são, para nós, guerreiros corajosos
Os Ingleses uns gabarolas de alma pérfida
Os Italianos (Lombardos) são uns poltrões
E os Alemães, uns ladrões.

A única novidade é que, na altura, os espanhóis admiravam os franceses (mas deve dizer-se que há outros testemunhos em contrário). Deve ter sido depois dos Bourbons e de Napoleão que a opinião mudou. Quanto aos ingleses, quem diria que, na Idade Média, já se adivinhava Tony Blair?

terça-feira, 30 de maio de 2006

Sofia, Diogo e Teresinha em Bruxelas – I



















A Sofia veio, com a Teresinha, no princípio da semana e, como nos casais tradicionais do meu tempo de adolescente (nós partíamos todos de férias para as Caldas com a Mãe e o Pai ficava em Lisboa), o Diogo ficou a trabalhar em Paris e só se juntou à família no fim-de-semana - para um almoço de foie-gras e confit de canard que estava óptimo. Assim, durante quase sete dias, a nossa casa em Bruxelas submeteu-se ao ritmo imposto pela Teresinha, que está linda. É muito sorridente e, de vez em quando, dá enormes gargalhadas. Gosta de comer os dedos - chega a pôr três dedos na boca ao mesmo tempo - mas só chora ou rabuja quando tem sono. Também gosta de adormecer ao colo (o que enerva a avó, quando telefona de Lisboa). É muito exigente em tempo e atenção. A Sofia sabe-o melhor do que ninguém porque passa com a filha a maior parte do seu dia: e a verdade é que não há uma meia hora seguida sem que necessite de se ocupar dela. Mas tanto a Sofia como o Diogo têm feito um trabalho excelente, porque basta ver a Teresinha para nos apercebermos de que ela está feliz, que é uma criança contente e que não anda enervada.

Será preciso dizer que os tios Teresa e Diogo ficaram extasiados com a sobrinha? A Teresa desempenhou, na perfeição, o seu papel de babysitter. E mesmo se o Diogo não tem ainda o à-vontade da irmã para tratar de bebés, pegou nela várias vezes e deu-lhe muitos beijinhos. Que é aquilo de que a Teresinha precisa nesta fase.

Aqui ficam umas fotografias. Tirámos ainda outras na piscina da Rasante mas andam perdidas no disco duro do meu computador e preciso de as procurar.

sábado, 27 de maio de 2006

Mobilidade Social - Europa e Estados Unidos















Mobilidade Social – Europa e América

O Economist não pode ser geralmente acusado de preferir a Europa aos Estados Unidos. Pelo contrário: tenho a certeza de que uma boa parte dos seus artigos se fixa como objectivo uma certa forma de «dizer mal da Europa» cujos alvos de eleição são o Estado Social Europeu (insustentável) e os mercados de trabalho dos países do Velho Continente (inflexíveis!)

Maior razão, assim, para meditar no artigo que foi publicado na sua última edição, sob o título sugestivo de «Snakes and ladders». Aí é dada conta de dois research papers recentemente publicados (ver autores e títulos no final) e dedicados ao estudo da mobilidade social – isto é, expressando a ideia em termos aproximados, da possibilidade de cada indivíduo melhorar o seu nível de vida e de fortuna em relação ao dos seus pais.

Habituámo-nos a encarar a América como a terra da oportunidade, em que os filhos de famílias pobres conseguiam, por uma mistura de trabalho, determinação e instinto, ultrapassar condições desfavoráveis e chegar a situações de bem-estar e riqueza. A mais importante conclusão deste estudo contraria este preconceito. Numa escala de 1 (nenhuma mobilidade social) a 0 (total mobilidade social), os países nórdicos atingem 0,2, a Grã-Bretanha, 0,36 e os Estados Unidos, apenas 0,54.

Mas é no que respeita, em particular, à mobilidade dos mais pobres que as conclusões deste estudo merecem maior atenção. Assim, nos países nórdicos, 75% das pessoas nascidas em famílias pertencentes à faixa populacional dos 20% mais pobres saíram dessa situação antes dos 40 anos; pelo contrário, na América, pouco mais de 50% o conseguiram. Dito de outra forma, um pobre nascido na Suécia tem uma possibilidade de quase 3 em 4 de ser menos pobre antes dos 40; na América, apenas uma possibilidade de 1 em 2.

A mobilidade social nas restantes faixas de rendimento não apresenta diferenças tão significativas, embora exista, ainda aí, uma ligeira vantagem europeia. Segundo os autores, isto permite explicar por que continuamos a acreditar no mito da América como a terra da riqueza adquirida (por oposição à riqueza herdada). Nas sociedades ocidentais desenvolvidas e para a classe média, existe de facto uma mobilidade social importante. E como é a classe média – e não os pobres – que fixa a agenda política (e como é a ela que se dirigem as sondagens, quer no que respeita aos resultados, quer no que respeita à recolha de dados), é fácil convencermo-nos de que essa mobilidade atinge todos os outros estratos sociais.

Há duas explicações para esta posição favorável da Europa. A primeira tem a ver com uma fiscalidade progressiva e um sistema de segurança social que, em conjunto, têm efeitos claramente redistributivos. Mas é o segundo aspecto, que justifica nomeadamente a diferença favorável aos países nórdicos em relação ao resto da Europa, que me parece mais notável. E esse é, simplesmente, a eficiência (e equidade) dos sistemas de educação. Com efeito, considerada isoladamente, a qualidade da educação e instrução é o mais importante factor de mobilidade social.

Era nestas coisas que devíamos reflectir em Portugal. Melhorar o sistema de educação devia ser o principal projecto nacional; não apenas em palavras (como a célebre «paixão pela Educação», de António Guterres), mas em factos, traduzindo-se em acções e medidas concretas com esse objectivo.

Estou longe de comungar na visão apocalíptica que nos é dada, do sistema educativo, pelos amigos de António Barreto, Filomena Mónica ou Fátima Bonifácio; muito longe de considerar que o que importa, em Portugal, é melhorar a educação da elite; e ainda mais longe de acreditar que tudo se resume a voltar aos bons tempos passados, quando havia alunos que sabiam grego e latim e nunca, mas nunca, faziam erros ortográficos. (O que, para além de ser mentira, era conseguido à custa de manter fora do sistema educativo a grande maioria da população.)

Mas as crianças e os adolescentes nascidos nas chamadas «famílias difíceis» e que vivem em não menos eufemísticos «bairros difíceis» (difíceis sobretudo para os que lá nascem e vivem!) têm pela frente um caminho incomparavelmente mais árduo do que as que nascem, já não digo na Lapa, mas em algumas terras de província ou em Campo de Ourique ou Alvalade. Isso é que devia envergonhar-nos. Muito mais do que não termos empresas «de ponta» ou «inovadoras» e, por isso, acharmos que devemos gastar tanto dinheiro em subsídios à actividade económica, dinheiro esse bem necessário para atender aos problemas, esses sim reais, de uma grande parte da nossa população – e precisamente aquela que mais necessita de apoio (não digo, propositadamente: ajuda) para sair da espiral de miséria em que a colocámos.


O artigo no «Economist» encontra-se aqui:
http://www.economist.com/people/displaystory.cfm?story_id=E1_GJSNQRG&CFID=5431048&CFTOKEN=85946044

E estes são os artigos de que lá se fala:
Non-linearities in Inter-generational Earnings Mobility” (Royal Economics Society, London)
http://www2.warwick.ac.uk/fac/soc/economics/staff/faculty/naylor/publications/intgenmobnonlinear.pdf
American Exceptionalism in a New Light” (Institute for the Study of Labour, Bonn)
http://ideas.repec.org/p/iza/izadps/dp1938.html
Ambos os estudos de são de Bernt Bratsberg, Knut Roed, Oddbjorn Raaum, Robin Naylor, Markus Jantti, Tor Eriksson, Eva Osterbacka e Anders Bjorklund.

quarta-feira, 24 de maio de 2006

Lembrança - Hoje



Neste primeiro meu dia de anos em que a Mãe não está comigo: lembrança silenciosa e triste da sua ternura e bondade, e esta saudade que teima em não desaparecer. Com um beijinho do seu filho mais velho.

Botero - «Os Músicos»

No «Público» de hoje

«Um funcionário de casa de leilões Christie's fala ao telefone em frente a um quadro do colombiano Fernando Botero (“Os Músicos”) durante uma sessão dedicada à arte da América Latina que decorreu ontem em Nova Iorque. O quadro foi vendido por 1,59 milhões de euros, um novo recorde para as obras de Botero.»

Se eu tivesse 1,59 milhões de euros, também os dava!

segunda-feira, 22 de maio de 2006

Praias e Poemas - Baleal



David Mourão-Ferreira
Soneto do Amor Difícil

A praia abandonada recomeça
logo que o mar se vai, a desejá-lo:
é como o nosso amor, somente embalo
enquanto não é mais que uma promessa...

Mas se na praia a onda se espedaça,
há logo nostalgia duma flor
que ali devia estar para compor
a vaga em seu rumor de fim de raça.

Bruscos e doloridos, refulgimos
no silêncio de morte que nos tolhe,
como entre o mar e a praia um longo molhe

e súbito surgido à flor dos limos.
E deste amor difícil só nasceu
desencanto na curva do teu céu.

sábado, 20 de maio de 2006

Ganimedes – A propósito de um poema de Jorge de Sena





















Rubens - «Ganimedes»
«O Rapto de Ganimedes» - Mosaico Romano

A história é conhecida. Robert Graves, em Os Mitos Gregos, conta-nos que Ganimedes, filho do Rei Tros, que deu o nome a Tróia, era o mais belo adolescente que vivia na terra. Por isso, foi escolhido pelos deuses como escanção de Zeus. Mais o deus desejava-o e, não se preocupando com cerimónias, transformou-se em águia, mergulhou sobre Ganimedes, que pastoreava o seu rebanho nas planícies de Troada, e raptou-o, tomando-o pelo bico, para depois tomá-lo propriamente, de forma física e vitoriosa. Para compensar Tros pela perda do filho, Hermes, o mensageiro dos deuses, actuando em nome de Zeus, ofereceu-lhe um cepo de vinha em ouro e dois corcéis, e assegurou-lhe que Ganimedes se tinha tornado imortal e que a sua juventude se manteria sempre, sem as indignidades da velhice.

O mito de Zeus e Ganimedes era extremamente popular na Grécia e em Roma como justificação religiosa da pederastia, ou seja, do amor (físico) de um homem maduro por um adolescente. De forma mais profunda, o mito consagra (ainda segundo Robert Graves) a vitória do sistema patriarcal sobre o matriarcal e permite a transformação da filosofia grega num jogo intelectual a que os homens podem dedicar-se sem o concurso das mulheres – na medida em que dispunham dum novo campo de experiências: a homossexualidade. Platão explorará o mito para justificar os seus sentimentos a respeito dos seus discípulos mas, em outras passagens da sua obra, condenará a sodomia, qualificando a fraqueza de Zeus como uma «pérfida invenção cretense». Esta referência a Creta resulta de uma outra história, segundo a qual o Rei Minos teria, por sua vez, raptado Ganimedes para o seduzir, desculpando a sua luxúria com o exemplo do deus.

Ao longo dos séculos, este mito inspirou vários artistas. Mas o seu significado mudou. Rubens, de que deixo aqui a reprodução do quadro «O Rapto de Ganimedes», a acompanhar uma reprodução de um antigo mosaico romano, é disso um exemplo. Na sua obra (sinal dos tempos!), o carácter homosexual da história perdeu-se. Ganimedes substitui Hebe, a deusa da juventude, como escanção dos deuses e recebe dela a taça de Zeus. Ao fundo, os deuses divertem-se! Santa inocência. Nessa altura, já os comentadores cristãos tinham convertido o episódio de Ganimedes numa alegoria do rapto da alma humana por Deus e da sua ascensão ao reino dos céus.

(Tudo isto explica ainda, mais prosaicamente, que o nome de Ganimedes tenha sido dado a um satélite de Júpiter, que é, como se sabe, o nome romano de Zeus).

O poema de Jorge de Sena, que Eugénio de Andrade inclui na sua Antologia Pessoal da Poesia Portuguesa, vai mais longe e parece-me questionar, em geral, o valor dos mitos como de qualquer representação genérica das relações pessoais. Dito doutro modo: nas relações humanas, os mitos não nos permitem aceder ao essencial (ao «decisivo») porque, aí, são os aspectos individuais, as ligações reais e afectivas entre as personagens que verdadeiramente importam. Sem dúvida que os mitos, estas «histórias sobre o mundo dos deuses e a sua relação com o mundo dos homens» (Peter Rietbergen «Europe: A Cultural History»), nos ensinam alguma coisa: neles se plasma uma orientação global, social, e eles constituem representações colectivas da forma como, subconscientemente, os homens encaram a natureza e o sobrenatural, as relações sociais e familiares, o sexo e o desejo, etc.. Mas, se quisermos conhecer a verdade de uma situação concreta, são os detalhes, os pormenores, é o único e individual, e não o abstracto, que devemos procurar. O que temos que saber é, no dizer do poeta, «quem avança em quem? se o deus se entrega, ou é quem viola, e como, o corpo arrebatado? quem é o senhor de quem? ou por acaso foi que o deus se apaixonou? e essa paixão durou? e que destino teve o rebanho dispersado em susto? e a flauta que entre a verdura mal se vê, perdida?». A nada disto, o mito responde.

Aqui fica o poema.

Ganimedes
(1969)

Os pensamentos pastam na verdura,
balindo mansamente em torno dele,
e o rio corre sussurrante em pedras
que as sombras do arvoredo fazem negras.

Numa árvore se encosta o tronco magro
que os cotovelos finca nos erguidos joelhos,
enquanto as finas ancas pousam na verdura
e de uma sombra entre elas pende uma brancura.

Delicados e firmes, os lábios se contraem
na tersa flauta em que os seus dedos dançam
ao mesmo tempo segurando-a leves.
Quase é silêncio a curta melodia.

Do fundo e vítreo azul que imobiliza
o campo e o arvoredo, um ponto negro vem
crescendo em asas, garras, bico adunco
entreaberto à frente de sanguíneos olhos.

E adeja no alto, imensa e monstruosa,
uma ave gigantesca. Os pensamentos sentem-na,
que os faz fugir, dispersos, assustados.
A melodia se suspende. O pastor olha.

Numa surpresa vê que as asas se desabam
sobre ele, escurecendo e recobrindo tudo.
Quando abre os olhos, elas voam vastas
entre ele e o azul, e as garras pela cinta o cingem.

Lá em baixo o rio brilha entre o arvoredo,
e pontos brancos, vagos, são o seu rebanho.
O bico hiante à sua boca chega
numa doçura a atormentá-lo inteiro.

E a negridão se acende pouco a pouco
de um resplendor de carne que é o do céu em volta,
e que o rodeia e rasga de um calor ardente
em que o seu corpo avança como um róseo dardo.

Mas quem avança em quem? O deus se entrega,
ou é quem viola, e como, o corpo arrebatado?
Quem é o senhor de quem? Ou sempre, ou mutuamente?
Ou cada um se humilha à sujeição do outro.

E mais: sem que o soubesse, aquele humano estava
já destinado às garras longamente curvas?
Ou por acaso foi que o deus se apaixonou?
E essa paixão durou? E que destino teve

o rebanho dispersado em susto? E a flauta
que entre a verdura mal se vê, perdida?
E o corpo do pastor, que pensa agora?
Só isto – o decisivo – não sabemos.

sexta-feira, 19 de maio de 2006

Fotos de família

KIDDIE !!!

quinta-feira, 18 de maio de 2006

Retorno à Correspondência entre Sophia de Mello Breyner e Jorge de Sena

Minotauro apunhalado
(Escultura de Salvador Dali)

Esta correspondência continua a fascinar-me. Fico contente por poder assinalar que Guilherme de Oliveira Martins (http://www.cnc.pt/Artigo.aspx?ID=435) se lhe refere também com imensa admiração, salientando, como eu fiz, os poemas escritos por cada um dos poetas a respeito do outro e a carta de Sophia a Mécia de Sena quando Jorge de Sena morreu.

Mas o motivo deste novo artigo é outro.

Numa carta datada de Abril / Maio de 1964, Sophia pergunta a Jorge se recebeu o seu «postal da Grécia». E noutra, de Novembro desse ano, diz: «Mandei-lhe, pela Maria de Lurdes Belchior, um retrato meu na Grécia. Recebeu?»

A viagem à Grécia foi, para Sophia, uma imensa experiência espiritual, que deixou traços em muitos dos seus poemas. Viajando acompanhada de Agustina Bessa Luís, Sophia confessa a Jorge de Sena, na primeira carta, que nem sequer «tento descrever-lhe a Grécia nem tento dizer-lhe o que foi ali a minha total felicidade. Foi como se eu me despedisse de todos os meus desencontros, todas as minhas feridas e acordasse no primeiro dia da criação num lugar desde sempre pressentido. Sobre a Grécia só o Homero me tinha dito a verdade: mas não toda. O primeiro prodígio do mundo grego está na Natureza: no ar, na luz, no som, na água. É uma natureza mitológica onde as montanhas e as ilhas têm um halo azul que não é imaginado, mas sim fenómeno físico objectivo que, segundo me disse o Padre Antunes (...), já era um fenómeno notado e discutido na antiguidade. Sob o sol a pique, numa claridade azul indescritível, o ar é tão leve que nos torna alados e o menor som se recorta com uma inteira nitidez. As enormes e constantes montanhas povoam tudo de solenidade. Cheira a resina e a mel e há uma embriaguez austera e lúcida. (...) Tanto como a natureza (...), espantou-me incrível religiosidade de tudo. Depois da Acrópole, São Pedro de Roma pareceu-me mundano e fútil e pesado. É uma religiosidade tão nua, tão funda, tão intensa, tão solene como eu nunca tinha encontrado. É uma atitude de ligação com o real que está presente em todas as coisas.»

(Numa nota pessoal, o Padre Antunes aqui mencionado é o Padre Manuel Antunes, jesuíta e professor, que, segundo creio, me fez exame oral de Filosofia, nas provas de aptidão à Faculdade de Direito, em 1972.)

Mais tarde, Sophia visita Creta e, em Outubro de 1970, escreve um longo poema, onde aquela primeira impressão da Grécia ainda ressoa, em certas frases, em certas maneiras de dizer (a solenidade do lugar, os olores, os sabores, a luz, a cor):

O Minotauro
(Outubro de 1970. Publicado em «Dual», 1972)

Em Creta
Onde o Minotauro reina
Banhei-me no mar

Há uma rápida dança que se dança em frente de um toiro
Na antiquíssima juventude do dia

Nenhuma droga me embriagou me escondeu me protegeu
Só bebi retsina tendo derramado na terra a parte que pertence aos deuses

De Creta
Enfeitei-me de flores e mastiguei o amargo vivo das ervas
Para inteiramente acordada comungar a terra
De Creta
Beijei o chão como Ulisses
Caminhei na luz nua

Devastada era eu própria como a cidade em ruína
Que ninguém reconstruiu
Mas no sol dos meus pátios vazios
A fúria reina intacta
E penetra comigo no interior do mar
Porque pertenço à raça daqueles que mergulham de olhos abertos
E reconhecem o abismo, pedra a pedra, anémona a anémona, flor a flor
E o mar de Creta por dentro é todo azul
Oferenda incrível de primordial alegria
Onde o sombrio Minotauro navega

Pinturas ondas colunas e planícies
Em Creta
Inteiramente acordada atravessei o dia
E caminhei no interior dos palácios veementes e vermelhos
Palácios sucessivos e roucos
Onde se ergue o respirar de sussurrada treva
E nos fitam pupilas semi–azuis de penumbra e terror
Imanentes aos dia –
Caminhei no palácio dual de combate e confronto
Onde o Príncipe dos Lírios ergue os seus gestos matinais

Nenhuma droga me embriagou me escondeu me protegeu
O Dionysos que dança comigo na vaga não se vende em nenhum mercado negro
Mas cresce como flor daqueles cujo ser
Sem cessar se busca e se perde se desune e se reúne
E esta é a dança do ser.

Em Creta
Os muros de tijolo da cidade minoica
São feitos de barro amassado com algas
E quando me virei para trás da minha sombra
Vi que era azul o sol que tocava o meu ombro

Em Creta onde o Minotauro reina atravessei a vaga
De olhos abertos inteiramente acordada
Sem drogas e sem filtro
Só vinho bebido em frente da solenidade das coisas –
Porque pertenço à raça daqueles que percorrem o labirinto
Sem jamais perderem o fio de linho da palavra.


Jorge de Sena, que deverá ter tido conhecimento do poema directamente por Sophia, responde-lhe, a 13 de Outubro do mesmo ano, de forma ligeira e sorridente. Este poema seria mais tarde publicado por Mécia de Sena, em «Visão Perpétua» (1ª edição: 1980):

Sophia da monarquia
(13 de Outubro de 1970)

Sophia da monarquia,
sofia republicana,
recebi a antologia,
corrigida e ampliada,
com sua dedicatória
de antiga amizade grada
em que anotas a história
e para a História registas
que em Creta tu te banhaste
no esplendor da maresia,
com o meu velho Minotauro.
Em Creta, com o Minotauro,
por onde andamos, Sophia!
Que outros poetas se banhem
em Estorises e Cascaises
de água turva lusitana.
A nós as ilhas da Grécia!
A nós a fonte do dia!
A nós o leite que mana
de ser-se sófia e Sophia!

E assim se falavam dois poetas que eram dois dos maiores do século de ouro da nossa poesia (Eugénio de Andrade), unidos, à distância, por uma segura e comovente amizade.

O Velho Patriarca




No dia da derrota de Mário Soares nas últimas eleições presidenciais (que também foi o dia do nascimento da minha neta Teresinha), escrevi este texto, que oscila entre uma aliviada mensagem de adeus e um comovido elogio fúnebre - mistura que descreve muito precisamente os meus sentimentos actuais sobre este homem. Suponho que, se na altura este blogue já existisse, o texto aqui teria entrada. Assim recupero-o, embora, é claro, ele não seja hoje de primeira actualidade.







O Velho Patriarca

O velho patriarca sente-se fatigado. Numa caligrafia inclinada e nervosa, difícil de decifrar, com as letras a encavalitar‑se umas nas outras, tenta alinhar algumas palavras sobre a folha ainda branca pousada na secretária banal do quarto de hotel. Depois da derrota, a sua mensagem de adeus! Tem ainda que enfrentar os jornalistas e o público. Só depois poderá «tirer la révérence». Será como uma última lição. Jubila‑se! Tarde! Tarde demais?

Dentro de minutos, descerá as escadas, por entre as alas dos apoiantes que, enxugando as lágrimas, desviam o olhar, e dirigir‑se‑á a um estrado colocado a meio da sala, na cave iluminada pelos focos de luz intensa e branca dos operadores da televisão onde celebrou tantas vitórias, e que é hoje o palco inapetecido da sua última récita. Falará para o país mas serão só os seus amigos a receber as suas palavras e a aplaudi‑lo, num ambiente de abafada tristeza, disfarçada por um arremedo de ânimo. Todos têm a consciência de que é uma época que acaba. Mesmo o discurso, que é digno e forte, soa a falso.

No fundo, o patriarca gostaria de poder poupar‑se a esta parada de humilhação pública. Mas há regras neste mundo da política, e reconhecer a derrota com dignidade é a primeira delas. Não é possível sair de cena sem agradecer ao público, ir embora para casa para lamber, sozinho, as feridas abertas. Os homens políticos não têm feridas a lamber; ou, se as têm, escondem-nas, disfarçam. Força! A sua carreira política acabou mas deve a si próprio um grande final com fanfarra e honra; deve-o ao seu passado, ao seu exemplo.

Porque se recusou a ouvir quem lhe dizia que, aos oitenta anos, não devia candidatar­‑se? Para quê, num país onde tinha conseguido tudo? Ninguém o compreendeu – pior: ninguém o acreditou! Apenas viram, no seu gesto, oportunismo e ambição. Ou a arrogância que sempre foi o seu traço mais desagradável.

Pode consolar-se, pensando que teve uma vida longa e cheia, mais, muito mais, vitórias que derrotas, mais dias de sol que de tempestade ou tormenta. Foi, com efeito, uma magnífica viagem! Este último revés, pode vê-lo como uma pequena nota de pé de página num livro enorme e excelente. Nunca desistiu. Foi um homem político, um homem político sempre, e morreu, assim, no campo de batalha! Os patriarcas não morrem na cama: morrem de pé, como as árvores.

Em democracia, não é desonroso ser derrotado. Os homens políticos propõem, decidem os eleitores. Afinal, foi para o garantir que lutou durante toda a vida.

Mas não acredito que tudo isto lhe seja de grande valia, ou conforto, neste momento em que, olhando para a sua mulher e para os seus filhos, se levanta e dá os primeiros passos na direcção da porta por onde se escapa o seu destino.

Morrem cedo os que os Deuses amam








(Alexandre Magno)




Quando preparava o meu breve artigo (prefiro chamar-lhes artigos, a estas peças que aqui coloco; em vez de entradas, que me parece ser o termo consagrado no mundo dos blogues, mas que me desagrada) dedicado a Cesário Verde, encontrei, citada por Joel Serrão a propósito de Carlos de Oliveira, esta frase conhecida e bastante bela: «Morrem jovens aqueles que os Deuses amam».

Julgava, não sei porquê, que ela teria sido dita pela primeira vez por Verlaine, referindo-se a Rimbaud, quando este morreu. (As relações entre Verlaine e Rimbaud foram, como se sabe, exaltadas e tumultuosas: um bom tema para um futuro artigo!) Mas não consegui descobrir nada que confirmasse esta impressão. Por outro lado, parece que Fernando Pessoa a usou a propósito da morte de Mário de Sá‑Carneiro. Mas eu estava convencido, no entanto, de que Pessoa não teria sido o seu autor.

(Ao mesmo tempo, lembrei-me do verso de Camões, dirigido a D. Sebastião: «Maravilha fatal da nossa idade», que também é lindo, mesmo se D. Sebastião o não merecia!)

De seguida, pensei ter encontrado a solução quando dei com uma frase muito parecida, de Nietzsche (na «Origem da Tragédia»). O texto é o seguinte: «Placés entre l'Inde et Rome et contraints de choisir entre deux tentations, les Grecs surent inventer une troisième forme (la tragédie), d'une pureté toute classique. Certes, ils n'en jouirent pas longtemps. Mais pour cela même ils la firent immortelle: car les favoris des dieux meurent tôt, c'est une loi qui régit toutes choses; même s'ils sont assurés de vivre ensuite auprès d'eux pour l'éternité.»

Mas, mais tarde, uma outra referência, no «Google», diz-me que se trata de um aforismo helénico! E eu continuo na dúvida – e à procura.

segunda-feira, 15 de maio de 2006

Foz do Arelho



Esta é a minha praia, e como aqui se vê, ao pôr-do-sol, naqueles fins de tarde em que nos deixávamos ficar, deitados na areia, até vir a escuridão, o frio e a humidade.

A Mãe adorava o mar da Foz e, por vezes, pedia‑me que a trouxesse até aqui. Parávamos normalmente lá em baixo, nos cafés que apareceram nos últimos anos, ao longo da estrada que atinge a praia pelo lado da Lagoa e que não existia no meu tempo. Durante uma hora ou duas, conversávamos, sentados em cadeiras de madeira que se guardam no Inverno, diante do areal, e daquele mar, simultaneamente verde e azul, e verde-claro e azul-escuro, e por momentos quase castanho, e debruado a branco pela espuma das ondas que rebentam ao longe e se aproximam da terra, a rastejar, perdendo a pouco e pouco a força e engrossando a areia na sua passagem. Conhecíamos inúmeras histórias de gente que morreu no mar, por desleixo, ignorância ou temeridade sem sentido. Lá em casa contava‑se que, uma vez, o meu Pai se viu obrigado a deixar fugir (e deixar morrer) um homem que se aventurara para além do limite das ondas. O Pai ainda tentou salvá-lo mas teve que desprender-se dele porque sentiu que seriam ambos levados para o largo, onde nenhum resistiria. Não sei se a história é autêntica – não fui à praia no dia em que dizem que aconteceu – mas é daquelas histórias que, reais ou imaginárias, se incrustam na memória das famílias e se tornam, de certo modo, verdadeiras com a passagem do tempo e à força de serem repetidas.

A Mãe era uma excelente ouvinte e, por isso, essas conversas que tínhamos assemelham‑se, na minha memória, a longos monólogos recitados diante do mar; e acho que o seu olhar reflectia os meus desejos e as minhas ansiedades, acolhia as minhas alegrias e, tantas vezes, deixava‑se fechar, como coberto por reposteiros de veludo escuro, perante as minhas tristezas. Pelo menos, é assim que quero recordar-me desses momentos raros em que, perto da praia e já longe da juventude, ainda éramos cúmplices.

O mar ainda lá está, as ondas são as mesmas, o areal enorme tem a cor de um amarelo claro, quase branco, que tinha quando eu me deitava nele. Há umas casas novas no outro lado da Lagoa, e uns cafés a mais deste lado. Mas, para mim, há uma pessoa a menos. E isso muda tudo.

domingo, 14 de maio de 2006

Manuel Maria Carrilho


Sempre considerei Manuel Maria Carrilho um homem arrogante mas inteligente. Face à publicação do seu último livro, e da inevitável polémica que se lhe seguiu – da qual, como é evidente, nenhum bem lhe virá – creio que tenho rever, em parte, a minha opinião. Sobra assim, apenas, a arrogância, que é certamente o que explica que, de tanto se olhar ao espelho, Carrilho já se tenha esquecido de que o mundo existe. Coitado do Dinis!

Cesário Verde (25 de Fevereiro de 1855 - 19 de Julho de 1886)


A minha neta Teresinha é, pelo Pai, o Diogo, descendente de Jorge Verde, o único irmão de Cesário Verde que sobreviveu. (Quando expliquei esta relação familiar ao meu filho mais novo, que também se chama Diogo, ele riu-se por achá-la rebuscada mas a mim, pelo contrário, ela parece-me «simple enough».) Há alguns dias, navegando na Internet e procurando matéria para escrever um destes artigos, topei com uma notícia bibliográfica de Cesário Verde, que mandei à Teresa, a mãe do Diogo. Deu-me vontade de reler os seus poemas e procurei na minha biblioteca a Obra Completa, na edição de Joel Serrão. É pena que este trabalho – que, segundo os especialistas, é a mais completa e precisa recolha das poesias de Cesário Verde – não tenha podido manter, certamente por razões editoriais, o título original de «O Livro de Cesário Verde» organizado, como se sabe, por Silva Pinto, amigo próximo do autor, e cuja primeira edição remonta a 1887, o ano que se seguiu à sua morte. Seria triste que se perdesse este título, através do qual tivemos, pela primeira vez, acesso à obra do poeta e a que nos habituámos.

José Joaquim Cesário Verde nasceu a 25 de Fevereiro de 1855, em Lisboa, na freguesia de Santa Maria Madalena, filho de José Anastácio Verde e de Maria da Piedade dos Santos Verde. O pai era um abastado comerciante de ferragens e outras mercancias com estabelecimento na Rua dos Fanqueiros, nºs 2 a 8. Possuía ainda uma quinta em Linda-a-Pastora onde, no final da vida, Cesário se refugiará por longos períodos, e que é referida em alguns dos seus versos. A partir dos cinco anos do poeta, a família muda-se para a Rua do Salitre (casa do actual nº 5, perto do Largo do Rato).

Aos dezassete anos, Cesário começa a trabalhar com o Pai. Logo no ano seguinte (1883), publica as primeiras poesias. Mais tarde, desiludido pelo desprezo da crítica pelos seus trabalhos poéticos, dedicar-se-á quase exclusivamente aos negócios. É nessa fase que visita Bordéus e Paris (1883) e, segundo Óscar Lopes e António José Saraiva Saraiva, terá também ido a Londres, em data não precisada. Em Paris, Columbano conta que Cesário Verde esperara discretamente num café a passagem de Victor Hugo, vindo de um teatro próximo, apenas para o ver passar.

Data de 1879, a seguinte descrição do aspecto físico do poeta, pela mão do editor Henrique Marques:
«Era um rapaz alto, direito, elegante, simpático, cabelo curto, alourado, olhos azuis, vestindo sempre fato azul, de jaquetão, de corte inglês, sapatos amplos, com todo um ar britânico que ele parecia querer aparentar; caminhava também à inglesa, passo largo...»

Três anos mais tarde, é a vez de Fialho de Almeida o descrever da seguinte maneira:
«Alto e mui grave, vestido de azul e com um colarinho voltado sobre uma gravata escarlate, tinha bem a figura do carácter, e não se podia mirá-lo sem logo se ver, na ingénua arrogância, o quer que fosse do ser filtrado misteriosamente por uma estranha e aristocrática selecção. O tipo era seco, com uma ossatura poderosa, a pele de fêmea loura, rosada de bom sangue, a cabeça pequena e grega, com uma testa magnífica, e feições redondas, onde os olhos amarelo-pardos de estátua, ligeiramente míopes, tinham a expressão profunda, rectilínea, longínqua, que a gente nota nos marítimos acostumados a interrogar o oceano por dilatadas estensões».

(Note-se, para além da hesitação sobre a cor dos olhos – azuis simples ou amarelo-pardos «de estátua» – a diferença do estilo que nos dá, no caso de Henrique Marques, uma fotografia a preto-e-branco, e algo desbotada, e, no de Fialho de Almeida, um retrato a cores, retocado pelo artista.)

A tuberculose, que já tinha vitimado a sua irmã Júlia, em 1872, e o seu irmão Joaquim Tomás, dez anos depois, declara-se nele e progride rapidamente. Parece que os primeiros sinais terão ocorrido em 1877. No final, foi acompanhado pelo famoso médico Sousa Martins. Morreu a 19 de Julho de 1886, pelas cinco horas da manhã, com apenas 31 anos (mais novo do que Rimbaud, mais velho do que Mário de Sá-Carneiro, que tinha 26 quando se suicidou).

A poesia de Cesário Verde foi mal recebida. Provavelmente, era enganadoramente simples. Os termos utilizados correspondiam, muitas vezes, a expressões corriqueiras, que os críticos condenavam por não terem foro de cidade em matéria poética. Assim, aquilo que hoje nos encanta, a sua sensibilidade particular, as referências ao quotidiano, um evidente erotismo, deixava frios os seus contemporâneos. Angelina Vidal, escrevendo sob o pseudónimo de Juvenal Pigmeu, minimiza-lhe o talento; mas mesmo os seus amigos o consideravam um poeta menor. Lopes de Mendonça dir-lhe-ia: «A tua obra, pequena e dispersa, não é daquelas que se impõe à admiração incondicional da posteridade».

Mas Cesário é o único poeta do grupo realista que consegue, de facto, superar a herança romântica. O seu objectivo é descrever a sociedade real: o dia-a-dia de uma Lisboa, que se passa à vista dos vizinhos, as acções simples do quotidiano, os namoros, as idas ao campo, os operários, as varinas, as patrulhas que passam, uma engomadeira tuberculosa, a irmã morta, o irmão a quem se lhe abriam cavernas no peito... E, como dizem Lopes e Saraiva, para exprimir este mundo, até então desconhecido da poesia, renova a «estilística tradicional da nossa poesia», utilizando, à maneira de Eça, uma adjectivação surpreendente («quando passas, aromática e normal»; «pés decentes»; «cheiro honesto»). A sua imaginação é fértil e feliz e, nele, os homens e as mulheres simples acedem à poesia.

Depois de Silva Pinto, Eugénio de Andrade, Carlos de Oliveira, Rodrigues Lapa, Amaro de Oliveira e Joel Serrão foram algumas dos homens de letras que contribuíram para que Cesário Verde se alcandorasse ao lugar de destaque que é hoje o seu na poesia portuguesa. Saliente-se, em particular, que, segundo indicação de Joel Serrão, «num tempo em que não havia ainda fotocopiadoras, Eugénio de Andrade transcreveu à mão, com todo o seu rigor, poesias de Cesário Verde publicadas em jornais ausentes da Biblioteca Nacional de Lisboa». E acrescente-se que Cesário, admirado por Fernando Pessoa, é mestre confessado de Álvaro de Campos.

Quanto aos poemas, a dificuldade está em escolher entre eles. A primeira edição de «O Livro» encontra-se mesmo disponível em rede mas a leitura é difícil (aqui: http://www.gutenberg.org/etext/8698). Os seus poemas, em forma mais acessível, podem ainda encontrar-se aqui: http://www.biblio.com.br/Templates/cesarioverde/mpoesias.htm.

Por onde começar? «O sentimento de um Ocidental» (1877) é, segundo tantos, a sua obra-prima. «Nós», de 1884, dá algumas indicações biográficas. «Contrariedades» (1877; publicado como «Nevroses», em 1876) é, para mim, dos melhores; há uma ferocidade e uma ironia neste texto que me agradam especialmente. «Deslumbramentos» (1875) é um dos seus primeiros poemas e o primeiro verso é magnífico: «Milady, é perigoso contemplá-la…».

Por questões de espaço, transcrevo apenas um poema, mais pequeno mas com bastante graça:

De Tarde
(1877)

Naquele «pic-nic» de burguesas,
Houve uma coisa simplesmente bela,
E que, sem ter história nem grandezas,
Em todo o caso dava uma aguarela.

Foi quando tu, descendo do burrico,
Foste colher, sem imposturas tolas,
A um granzoal azul de grão-de-bico
Um ramalhete rubro de papoulas.

Pouco depois, em cima duns penhascos,
Nós acampámos, inda o sol se via;
E houve talhadas de melão, damascos,
E pão-de-ló molhado em malvasia.

Mas, todo púrpuro a sair da renda
Dos teus dois seios como duas rolas,
Era o supremo encanto da merenda
O ramalhete rubro das papoulas.

sábado, 13 de maio de 2006

Eugénio de Andrade sobre Jorge de Sena


Peguei por acaso numa antologia da obra de Eugénio de Andrade «Poesia e Prosa», publicada em 1990, e encontrei lá este texto sobre Jorge de Sena, retirado de «Os Afluentes do Silêncio» (título belíssimo como quase todos os títulos das obras de Eugénio de Andrade!)



«Nota Breve sobre Jorge de Sena

Não sei o lugar que Jorge de Sena ocupa nas letras portuguesas, nem é isso questão que me preocupe. Sei, sim, o lugar que ele ocupa no meu espírito e no meu coração; isso me basta. E aí, o lugar dele, há já longos anos, é muito alto. Reconhecer em Jorge de Sena um dos homens mais lúcidos e inquietos e brilhantes do nosso tempo – como já tem sido dito – é uma maneira cómoda de arrumar alguém que escolheu a incomodidade, sem nenhuma inocência ou ilusão, como modo de existir e pensar por conta própria. Se muitos dos seus contos ou ensaios ou escritos ocasionais provam, sem dúvida, o que se diz, tais páginas não ocultam também o admirável poeta que Jorge de Sena é. À sua finura crítica, ou à vasta cultura, ou à inteligência das suas interpretações, todos lhe devemos alguma coisa, mas é o surdo rumor do seu canto, tão cioso de nada excluir, que mais me prende e perturba. E, contudo, o que em Jorge de Sena mais tem sido diminuído ou apoucado é justamente a sua poesia, essa poesia que tão dificilmente tem feito caminho, por ser das mais densas e complexas que entre nós se escreveu de Fernando Pessoa para cá. A mim se me revelou ela de chofre, leitor seu desatento que fui até então, numa noite em que me leu As Evidências. (Lembrar-me-á o poeta, mais tarde, que o livro me deve «a letra de forma».) À densidade e complexidade, que lhe dificultam o acesso, deverá acrescentar-se aquela «espécie de rudeza» que Matias Aires, numa epígrafe de Fidelidade, diz que «a arte leva consigo». Isto bastaria para fazer de Jorge de Sena um poeta difícil, como se diz, se não houvesse ainda a sua truculência barroca, o seu amor pelos clássicos, o seu gosto pelos modernos, o seu interesse pelo ocultismo, a sua simpatia pelo existencialismo, a sua polémica com o farisaísmo, a sua nostalgia do catolicismo, o seu exaltado paganismo, etc., etc., e muito disto, quanta vez, a puxar por si ao mesmo tempo, como os fios de oiro do Sá-Carneiro. E, contudo, uma tal poesia está na grande tradição do nosso «lirismo especulativo» que de Sá de Miranda chega a Pascoaes e Pessoa – linha esta de que Sena é continuador, sem a menor dúvida. Dir-se-á que se lêem mal os clássicos, como se tem lido mal Jorge de Sena... É então tempo de os relermos a todos, clássicos e modernos, e verificarmos como, de uns aos outros, a música de cada um se repercute e acrescenta, e dá sentido e medida à nossa própria música»

Uma poesia de Jorge de Sena


É difícil escolher uma única poesia, numa obra tão vasta e diferente, como a de Jorge de Sena. Gostaria de transcrever os «Sete Sonetos da Visão Perpétua», de que Mécia de Sena nos diz que o marido gostava imenso. Mas decidi-me pelo poema «Carta a meus Filhos sobre os Fuzilamentos de Goya», do livro «Metamorfoses» - meditação sobre o famoso quadro «3 de Mayo», de que junto uma reprodução - porque me parece que reflecte melhor esse «lirismo especulativo» de que fala Eugénio de Andrade (ver, neste blogue, «Eugénio de Andrade sobre Jorge de Sena»).

(Caricatura de Rui Knopfli, 1977)




















Carta a meus filhos sobre os fuzilamentos de Goya

Não sei, meus filhos, que mundo será o vosso.
É possível, porque tudo é possível, que ele seja
aquele que eu desejo para vós. Um simples mundo,
onde tudo tenha apenas a dificuldade que advém
de nada haver que não seja simples e natural.
Um mundo em que tudo seja permitido,
conforme o vosso gosto, o vosso anseio, o vosso prazer,
o vosso respeito pelos outros, o respeito dos outros por vós.
E é possível que não seja isto, nem seja sequer isto
o que vos interesse para viver. Tudo é possível,
ainda quando lutemos, como devemos lutar,
por quanto nos pareça a liberdade e a justiça,
ou mais que qualquer delas uma fiel
dedicação à honra de estar vivo.
Um dia sabereis que mais que a humanidade
não tem conta o número dos que pensaram assim,
amaram o seu semelhante no que ele tinha de único,
de insólito, de livre, de diferente,
e foram sacrificados, torturados, espancados
e entregues hipocritamente à secular justiça,
para que os liquidasse «com suma piedade e sem efusão de sangue.»
Por serem fiéis a um deus, a um pensamento,
a uma pátria, uma esperança, ou muito apenas
à fome irrespondível que lhes roía as entranhas,
foram estripados, esfolados, queimados, gaseados,
e os seus corpos amontoados tão anonimamente quanto haviam vivido,
ou suas cinzas dispersas para que delas não restasse memória.
Às vezes, por serem de uma raça, outras
por serem de uma classe, expiaram todos
os crimes que não tinham cometido ou não tinham consciência
de haver cometido. Mas também aconteceu
e acontece que não foram mortos.
Houve sempre infinitas maneiras de prevalecer,
aniquilando mansamente, delicadamente,
por ínvios caminhos quais se diz que são ínvios os de Deus.
Estes fuzilamentos, este heroísmo, este horror,
foi uma coisa, entre mil, acontecida em Espanha
há mais de um século e por violenta e injusta
ofendeu o coração de um pintor chamado Goya,
que tinha um coração muito grande, cheio de fúria
e de amor. Mas isto nada é, meus filhos,
apenas um episódio, um episódio breve,
nesta cadeia de que sois um elo (ou não sereis)
de ferro e de suor e sangue e algum sémen
a caminho do mundo que vos sonho.
Acreditai que nenhum mundo, que nada nem ninguém
vale mais do que uma vida ou a alegria de tê-la.
É isso que mais importa – essa alegria.
Acreditai que a dignidade em que hão-de falar-vos tanto
não é senão essa alegria que vem
de estar-se vivo e sabendo que nenhuma vez
alguém está menos vivo ou sofre ou morre
para que um só de vós resista um pouco mais
à morte que é de todos e virá.
Que tudo isto sabereis serenamente,
sem culpas a ninguém, sem terror, sem ambição,
e sobretudo sem desapego ou indiferença,
ardentemente espero. Tanto sangue,
tanta dor, tanta angústia, um dia
- mesmo que o tédio de um mundo feliz vos persiga –
não hão-de ser em vão. Confesso que
muitas vezes, pensando no horror de tantos séculos
de opressão e crueldade, hesito por momentos
e uma amargura me submerge inconsolável.
Serão ou não em vão? Mas, mesmo que o não sejam,
quem ressuscita esses milhões, quem restitui
não só a vida, mas tudo o que lhes foi tirado?
Nenhum Juízo Final, meus filhos, pode dar-lhes
aquele instante que não viveram, aquele objecto
que não fruíram, aquele gesto
de amor, que fariam «amanhã».
E, por isso, o mesmo mundo que criemos
nos cumpre tê-lo com cuidado, como coisa
que não é só nossa, que nos é cedida
para a guardarmos respeitosamente
em memória do sangue que nos corre nas veias,
da nossa carne que foi outra, do amor que
outros não amaram porque lho roubaram.

quarta-feira, 10 de maio de 2006

Interlúdio

Há já dois dias que aqui não escrevo. Para além do feriado do dia 9 (dia de uma Europa cujo cansaço é evidente) – e os dias feriados, numa casa com dois adolescentes, são os mais cansativos – veio o dia de anos da Vanda (a 10) com jantar num restaurante tunisino perto de casa. Tenho continuado a leitura de Murakami (com piscadela de olhos à Ana, que também anda a lê-lo). E, ao mesmo tempo, comecei um livro de história bastante interessante («The Great Divergence» de Kenneth Pomeranz), que mostra que, no final do século XVIII, a diferença económica entre a Europa e a China não era assim tão grande que justificasse o salto em frente dado pelos europeus na conquista do mundo; e, assim, atribui o «milagre europeu», expressão consagrada mas que não é do agrado do autor, principalmente, e para além de ao acesso fácil a novos meios de energia, como o carvão, à abundância de terra e ao acesso a formas de gestão do espaço e da terra, nomeadamente das florestas, introduzidas pela expansão colonial – num resumo muito simplificado de um argumento complexo mas a ter em conta em certos debates actuais, lusos e não só, sobre a pretensa superioridade da civilização europeia. Continuo a actualização do meu iPod, o que me permite ir passando em revista os principais discos da minha colecção de clássicos: neste preciso momento em que escrevo, escuto o «Concerto para Piano» de Schumann, na interpretação de Maria João Pires, com Claudio Abbado a dirigir a Orquestra de Câmara da Europa. Maria João Pires não é Martha Argerich (mas quanta gente é Martha Argerich?) mas gosto muito desta sua interpretação. Dou alguma atenção – a merecida – à Comissão. Tenho que telefonar ao meu genro João a perguntar-lhe quem será o novo treinador do Benfica. Falo com os meus irmãos, penso na minha Mãe e tenho saudades de ver a minha neta. Em resumo: estou bem.

segunda-feira, 8 de maio de 2006

Trezzu



Eu chamo-lhe Trezzu. Está linda! Temos passado, ambos, momentos difíceis, com a morte da Mãe e do Zé Maria, primo e padrinho. Mas, nestas coisas, como sempre digo, o que conta é a ternura e o amor. Aqui fica uma fotografia de cada um de nós, à espera de tirarmos uma juntos.

Criadas e cartas de amor - Portugal nos anos 70


Em Portugal, há trinta ou quarenta anos, muita gente não sabia ainda ler e escrever. E assim, quando a nossa criada Amélia encontrou o Armindo e começaram a namorar (e até, tempos antes, a pensar em namorar), precisou de alguém que lhe lesse as cartas que recebia e lhe escrevesse as que iriam, em resposta, de Lisboa às Caldas da Rainha, onde ele trabalhava como marceneiro. Será preciso lembrar que, então, não havia telemóveis e que mesmo o telefone era caro e usado apenas, por gente que não nadasse em dinheiro, em casos de urgência?

A Amélia recorreu a mim, que era o mais velho dos três rapazes que viviam lá casa. E assim, pelo menos uma vez por semana, cabia-me o encargo de passar ao papel, em letra arredondada, facilmente legível, as frases de amor – melhor seria dizer: de atenciosa amizade – da Amélia. As cartas quase não variavam. Depois de uma introdução em que se davam e pediam notícias recentes, e em que se inquiria pela saúde do outro e se ofereciam novas da própria, seguia-se o corpo dedicado à evolução da amizade e, depois, do namoro ou, mais tarde, aos preparativos para o casamento. Eu tentava alterar um pouco certas frases ou expressões mas a Amélia era inflexível naquilo que considerava serem os parâmetros da decência e as conversas apropriadas entre duas pessoas que uma relação caracterizada por uma intimidade crescente mas distante. Não havia espaço para a imaginação ou lugar para o amor, e as cartas assemelhavam-se a ofícios saídos de repartições públicas. As suas exigências davam uma coisa do género:

«Senhor Armindo,
Espero que esta carta o encontre de saúde, que eu por aqui me fico bem. A senhora e os meninos estão também bem e recomendam-se. E o senhorArmindo, como tem passado? Eu, no fim-de-semana, fui a casa da minha irmã, na Amadora. Espero que, um dia destes, possa acompanhar-me lá para conhecer a minha irmã, o meu cunhado e os meus sobrinhos. Por agora, não conto ir às Caldas senão nas férias da Páscoa mas, nessa altura, ficarei com a senhora e os meninos durante, pelo menos, quinze dias. Receba um aperto de mão desta que muito o estima. Amélia.»

O senhor Armindo transformou-se, com o correr do tempo, no Armindo, mas nunca chegaram a tutear-se. E a última frase, quantas vezes a tentei alterar! Até ao casamento, contudo, a Amélia sempre se recusou a mudá-la e a enviar ao seu noivo e futuro marido, em vez deste respeitoso «passou-bem», um simples e casto beijo.

(Texto inspirado por «A Felicidade dos Amantes», encontrado no blogue «Disperso Escrevedor» (http://sonhocomandavida.blogspot.com/), de Manuel José Matos Nunes. E há lá outros parecidos, impondo uma visita.)

domingo, 7 de maio de 2006

Inês


É difícil encontrar fotografias minhas com a Inês, mas isso é porque, normalmente, é ela que está por detrás da máquina. Esta família teria muito menos memória fotográfica, se a Inês não tivesse descoberto este talento. Fica aqui esta, dos seus anos, em Outubro de 2005.

Wilhelm Kempff (25 de Novembro de 1895 - 23 de Maio de 1991)


A primeira gravação integral das Sonatas para piano de Beethoven foi efectuada por Arthur Schnabel (1882-1951) – e ainda hoje é um gosto ouvi-la. Mas a geração da minha Mãe, e ainda a minha, entrou no universo das obras para piano de Beethoven através das integrais de Wilhelm Kempff. Kempff gravou três integrais das sonatas de Beethoven. A primeira, em 78 rotações, entre 1926 e 1945, é praticamente inacessível e, a julgar por dois ou três discos que encontrei recentemente, o som é horrível. A segunda (mono), publicada entre 1951 e 1956, é uma maravilha, tendo sido reeditada pela Deutsche Gramophon (DG) em 1995. E a terceira (stereo), a mais conhecida, apareceu nos anos 60 e foi utilizada pela DG na sua edição completa das obras de Beethoven.

Kempff nasceu em 1895, na província de Brandeburgo, na Alemanha, originário de uma família de músicos de igreja, e numa altura em que Brahms, Bruckner e Verdi ainda viviam. Morreu em 1991, em Positano, Itália, onde, a partir de 1957, dava aulas a jovens pianistas. Gostava de salientar as suas ligações ao mundo da música clássica e romântica. Estudara com Heinrich Barth que, por sua vez, fora aluno de Hans von Bülow (o primeiro marido de Cosima Liszt, que o deixou para seguir Wagner e tornar-se na célebre Cosima Wagner, que dirigiu Bayreuth com mão de ferro depois da morte do marido e, perdendo a dignidade, se tornou amiga de Hitler, morrendo em 1930, com noventa e três anos). Von Bülow estudara, é claro, com Lizst (foi assim que conheceu a sua filha) e, ao que se diz, Liszt encontrara Beethoven. A história do encontro de Liszt, ainda criança, com um já envelhecido Beethoven, que lhe teria pegado ao colo e beijado, entronizando-o como seu sucessor, é, segundo tudo indica, apócrifa. Não está em causa o génio ao piano de Liszt, já quando criança. Todos os que o ouviram concordaram em que era um pianista excepcional. Clara Schumann dizia que a sua forma de tocar piano provocava temor e espanto. Segundo ela, Liszt não respeitava, nem regras, nem forma, nem estilo, mas recriava tudo isso de uma maneira prodigiosa. A sua arte era a vida. Mas, ao que parece, o encontro com Beethoven nunca teve lugar.

De qualquer maneira, Kempff sempre se sentiu herdeiro de uma tradição pianista que assentava no exemplo desses mestres. Há uma poesia muito particular na sua forma de tocar. As suas mãos passam sobre as teclas, numa imensa serenidade. As notas seguem-se umas às outras com a evidência das coisas simples. No início da sua carreira, nas década de 1910 e 1920, os jovens pianistas eram apreciados mais em função da sua imaginação e da capacidade de recriar o universo do compositor que pela sua capacidade de tocar irrepreensivelmente todas as notas da partição. (Talvez porque o disco se não tivesse ainda afirmado como o meio privilegiado de acesso às obras musicais. Cortot, um extraordinário pianista francês, que interpretava Chopin como ninguém mais, enganava-se frequentemente.) Kempff mantinha a tradição dos grandes pianistas de outros tempos, que eram também improvisadores. A grande magia da sua interpretação das sonatas de Beethoven tem a ver com esta liberdade – fantasia aliada a rigor.

Para além de Beethoven, foi um intérprete privilegiado de Brahms, Shubert (de quem deixou a primeira integral da sonatas para piano, ainda hoje magnífica) e Schumann. Curiosamente, não sentia afinidades com Chopin e não conheço nenhuma gravação sua de obras deste compositor. De Liszt, ficaram poucas peças, gravadas cedo na sua carreira. Algumas foram redescobertas por Alfred Brendel e publicadas num dos três volumes da edição da Philips dos «Grandes Pianistas do século XX», que foi dedicada a Kempff.

Em Maio de 1957, Kempff visitou Sibelius. O compositor, que morreria meses depois, pediu-lhe que tocasse a sonata «Hammerklavier», a sonata no.29 de Beethoven, talvez a mais célebre sonata da história da música, e certamente uma das mais difíceis de interpretar. Quando Kempff acabou, Sibelius disse-lhe: «O senhor tocou, não como um pianista, mas como um homem!»

Mas, de Kempff, a história mais bonita é, para mim, a seguinte. Perto do fim da sua vida, em Positano, quando tocava para amigos, parou subitamente e disse: «Tenho passado a minha vida a transmitir a beleza, através da música. Hoje, apercebo-me de que já não estou em condições de o fazer, com a qualidade que sempre me exigi.» Nunca mais tocou piano em público. Não admitia ser recordado como alguém que tivesse deixado degradar a sua arte.

sexta-feira, 5 de maio de 2006

Comissão Europeia em seminário


Corre por aqui, em Bruxelas, a informação de que os membros da Comissão Europeia, sob a direcção de Durão Barroso, se teriam reunido em seminário, em Laeken, no fim-de-semana passado.

Diz-se que se dividiram em três grupos. O primeiro tratou dos aspectos internos da vida da União Europeia e, em especial, do modelo social europeu; considerou ainda o lançamento de projectos, do tipo «Moeda Única» ou «Mercado Interno», da iniciativa da Comissão, que pudessem dar um sinal de progresso e quebrar o pessimismo que se tem instalado no processo de construção europeia. O segundo ocupou-se da posição da União Europeia no mundo, e do papel que caberia à Comissão neste domínio. O terceiro entendia procurar uma solução para a crise aberta com a rejeição, por vários países, do Tratado da Constituição Europeia.

Pois bem. Segundo os boatos, as conclusões terão sido as seguintes:

1. Quanto ao modelo social europeu, apenas um Comissário, o Sr. Spidla (checo, socialista e sindicalista) se teria mostrado partidário de uma acção europeia visando o seu reforço ou a sua consolidação. Os restantes Comissários, ou se opuseram, ou se desinteressaram. Em matéria de projectos de futuro, os senhores Comissários parece não terem conseguido encontrar nenhum. O mais que falaram foi de «gestão de crises» – o que teria o efeito hilariante de fazer depender a afirmação do projecto europeu de tsunamis, terramotos ou outras catástrofes naturais.

2. Relativamente à presença da Europa no mundo, aqueles senhores concluíram que a tarefa se apresentava difícil, ou mesmo impossível. Com efeito, o actual quadro institucional não permite avanços significativos em sede de política externa. O Sr. Solana não será, afinal, o Ministro dos Negócios Estrangeiros da União Europeia e não é possível fundir os serviços que, no Conselho e na Comissão, se ocupam das relações externas. Enfim: também aqui, progresso nulo. A culpa será de não se ter aprovado a Constituição.

3. Mas, quanto à Constituição, a Comissão guardará de Conrado o prudente silêncio (sobre a origem desta expressão: http://ciberduvidas.sapo.pt/php/resposta.php?id=10669). Afinal, a responsabilidade pelas dificuldades por que passa o Tratado é dos Estados-Membros e, assim, não parece conveniente que a Comissão se empenhe na sua aprovação.

Mas, afinal, que foram os senhores Comissários fazer a Laeken? Como diz o meu amigo Carlos, espera-se que, pelo menos, tenham aproveitado o parque. Mas já nem me lembro se, no fim-de-semana passado, o tempo estava bonito.

«Sarkozy em Camarate» - Artigo de José Miguel Júdice


Não sei se será possível encontrar este artigo de José Miguel Júdice no «Público» porque a edição em rede do Público só é acessível a assinantes. Mas trata-se de um notável artigo de um grande advogado. José Miguel Júdice ensina-nos que «o grande teste para os direitos da cidadania não pode ser feito em relação aos que cumprem as leis, respeitam as regras sociais, não transgridem. Com esses é, felizmente, muito fácil que as polícias não prevariquem e que possa ser afirmado que "quem não deve não teme". Não, a luta secular pelos direitos fundamentais que constam hoje de documentos com força constitucional e legal, fez-se para defender os "outros", os que provavelmente não cumprem as leis, não nos respeitam e transgridem nos seus comportamentos». E diz-nos ainda que «a última coisa de que Portugal necessita é de movimentos violentos das áreas suburbanas que possam resultar de uma sensação de pertença a um grupo desvalorizado e tratado sem humanidade nem decência.»

Ao mesmo tempo, acrescenta, com razão, que «a defesa dos direitos humanos faz-se também pela luta contra a criminalidade. Uma sociedade onde o crime esteja impune e onde os cidadãos se sintam justificadamente inseguros é propícia a derivas securitárias.»

Nos tempos que correm, em que estas derivas ameaçam engolir liberdades essenciais, é bom que venha alguém lembrar que a beleza e dignidade do Direito, e a dignidade pessoal dos juristas, passam por censurar sem transigência qualquer violação dos direitos fundamentais, mesmo dos direitos dos criminosos; por recusar a condenação antecipada, mesmo de gente que, à primeira vista, parece ser culpada; e por não aceitar a amálgama entre todos os que vivem nos mesmos bairros difíceis. Conviria que os senhores que decidem estas operações policiais pensassem em quanto é difícil manter um mínimo de dignidade quando se vive nesses locais e nessas condições; e que devemos inclinar-nos com respeito por quem o consegue, que mais não seja porque a sua tarefa quotidiana é muito mais difícil do que a nossa.

Isto foi o que aprendi, primeiro na Faculdade de Direito (mesmo antes do 25 de Abril porque alguns professores, como Magalhães Colaço, Sousa Franco, Jorge Miranda ou Marcelo Rebelo de Sousa, já nos ensinavam essas coisas) e, depois, ao longo da minha vida de jurista, mesmo se me transformei, com o tempo, numa espécie de «jurista não praticante». Mas, talvez por isso mesmo, por estar afastado do quotidiano pesado da administração da justiça em Portugal, mantive a minha preocupação com os aspectos essenciais da liberdade e justiça, em particular num tempo em que, segundo me parece, os mais pobres ou mais desfavorecidos estão, de facto, afastados dos mecanismos de justiça excepto quando esta os acusa e prende.

Com este artigo, José Miguel Júdice dá aos advogados razões para se orgulharem da sua profissão.

(Artigo aqui: http://jornal.publico.clix.pt/noticias.asp?a=2006&m=05&d=05&uid=&id=76964&sid=8415)

John Kenneth Galbraith (1908-2006)


Nos anos já longínquos em que comecei o curso de Direito, a vida não era fácil para um aspirante a jurista com gosto por questões económicas. Para além das «Lições de Economia», de Pereira de Moura, havia muito pouca coisa que pudesse ler-se com interesse e ainda menos com agrado.

Assim, a descoberta de Galbraith foi uma alegria. Aqui vinha um economista que escrevia em linguagem clara, num estilo corrido, e sem usar fórmulas matemáticas ou expressões a que apenas os iniciados (que, na altura, eram «os» do ISEF – Instituto Superior de Economia e Finanças, como se chamava então) tinham acesso. E que, não sendo marxista (há mesmo quem o tenha considerado o verdadeiro herdeiro intelectual de Keynes), falava de problemas que nos afectavam a todos: o capitalismo americano, a sociedade da abundância, o novo Estado industrial, numa espécie de variações sobre um mesmo tema, a concentração de poder no Estado, nas empresas, e nos gestores e produtores. A estes temas, correspondem os seus três livros mais conhecidos: «American Capitalism» (1952); «The Affluent Society» (1958); e «The New Industrial State (1967). Também os seus livros de divulgação eram fantásticos. «Money. Whence it came, where it went» é, ainda hoje, um dos livros mais acessíveis que conheço sobre moeda e questões monetárias.

Há quem diga que, mais do que um economista, era um sociólogo e que os seus livros reflectiam e descreviam a América do seu tempo. O que o interessava era, não as teorias económicas que desprezava, mas os fenómenos de poder e os interesses políticos. Considerava que os seus colegas perdiam influência junto do público por ignorarem estas dimensões. Para ele, os economistas (que eram «económicos» com as ideias e mantinham, durante a vida inteira, as mesmas que tinham na altura em que acabavam os cursos) viviam num mundo imaginário de concorrência perfeita onde nada se passava que tivesse a ver com a realidade da vida.
John Kenneth Galbraith morreu a 29 de Abril, com 98 anos, em plena posse das suas faculdades, mas algo esquecido. Há uma década, queixou-se do que chamava o síndroma do «ainda». Cada vez que mostrava o seu interesse por questões política e económicas (e toda a sua vida se tinha interessado por elas), ou que intervinha publicamente sobre qualquer assunto, ou que criticava um livro ou um artigo, alguém dizia: «Ainda trabalha; ainda se interessa pelas coisas; ainda lê esses livros; ainda deixa o olhar correr sobre uma mulher bonita…» Queriam dizer: ainda está vivo! Para a maioria das pessoas, isso era surpreendente.

O seu percurso foi algo parecido com o de Arthur Schlesinger, que já aqui referi. Nasceu no Canadá, de famílias modestas, mas deve ter sido a única vez, durante toda a sua vida, que foi modesto (dizia, aliás, que a modéstia era uma virtude muito sobrevalorizada). Trabalhou com Roosevelt, era amigo e confidente de Kennedy e foi conselheiro de todos os que valiam alguma coisa no Partido Democrático. Era um gigante, não apenas em termos físicos (2 metros de altura), mas em termos intelectuais. E tinha o sentido da frase: várias expressões que hoje usamos frequentemente (o melhor exemplo é: «conventional wisdom») foram usadas por ele pela primeira vez.

E tinha imensa graça. No obituário que foi publicado no «Economist» (disponível aqui: http://www.economist.com/people/displaystory.cfm?story_id=6877092), conta-se que, quando foi Embaixador na Índia, no tempo de Kennedy, enviava directamente as suas cartas ao Presidente porque, dizia, passar pela Secretaria de Estado era como «fornicate through the mattress» (que traduzo envergonhadamente por «fazer amor através do colchão»).
Era, o que chega a parecer estranho nos dias de hoje, um liberal, no sentido que a palavra tem nos Estados Unidos, ou seja, um homem de esquerda convencido da importância do papel do Estado, para corrigir injustiças sociais e regulamentar os mercados, de que desconfiava instintivamente. Mas não era sectário e muitos dos seus amigos eram conservadores. Só não tinha paciência para ignorantes e não aceitava a desonestidade no plano intelectual.

Envelhecer é, também, ver partir aqueles que nos influenciaram ou simplesmente contribuíram para o nosso desenvolvimento intelectual, mostrando-nos caminhos, oferecendo-nos problemas e sugerindo-nos soluções. Tenho a certeza de que, como diz o «Economist», os Estados Unidos estão um pouco mais pobres depois da morte de Galbraith mas, no que me respeita, o que sinto é uma saudade enorme do tempo em que abri os seus livros pela primeira vez.

quarta-feira, 3 de maio de 2006

Saudade



«Numa fotografia tirada mais de um ano antes de morrer, a Mãe aparece de perfil. Engordara, a sua face enchera-se e deixara de mostrar os traços recortados e quase rectilíneos que lhe desenhavam a cara quando era mais nova. Estava muito bonita. Tinha setenta e três anos, mas ninguém lhe daria mais do que sessenta ou mesmo, até, uns cansados cinquenta. Por isso, nunca nos convencemos de que morresse tão cedo.»

Ao fundo, à esquerda, vêem-se duas fotografias de que a Mãe gostava muito. Na primeira, o Pai está comigo ao colo: esta fotografia foi tirada no casamento da Tia Vicas e do Tio Carlos. Na segunda, estou eu com o meu filho, debaixo de um toldo na praia Maria Luísa. Assim, a Mãe fica na companhia de três gerações de gente que amava imenso.

Só mais uma nota: foi a Vanda que descobriu esta fotografia da Mãe, tirada em 2004, a 10 de Abril, no dia de anos do Diogo.

Nós todos


A Mãe teria gostado de saber que estávamos juntos neste Domingo de Páscoa.
Falta a Sofia, que tirou a fotografia. E faltam o Diogo (genro) e o João, que estavam com as suas famílias.

Pai e Diogo


Todos os anos, tiramos uma fotografia juntos. Esta foi a última.

Teresinha, Mãe e Avô


Sem comentários! Ou melhor, sim... Descubram as parecenças!

Teresinha


Finalmente uma fotografia da Teresinha. Como engordou desde que nasceu! E está muito querida. A tia Ana diz que parece uma joaninha.

terça-feira, 2 de maio de 2006

Simplicidade de Sophia de Mello Breyner

Em Sofia, admiro a forma como recria o mundo numa simples frase. A nudez enganadora das palavras chega a fazer esquecer, por vezes, que nada é banal no que diz. Os exemplos poderiam ser imensos mas ficam, por agora, estes, tirados de «No Tempo Dividido», publicado em 1954:

(No mar passa)
No mar passa de onda em onda repetido
O meu nome fantástico e secreto
Que só os anjos do vento reconhecem
Quando os encontro e perco de repente.

(A Liberdade)
A liberdade que dos deuses eu esperava
Quebrou-se. As rosas que eu colhia,
Transparentes no tempo luminoso,
Morreram com o tempo que as abria.

(Dia)
Como um oásis branco era o meu dia
Nele secretamente eu navegava
Unicamente o vento me seguia.

(Poema de amor de António e Cleópatra)
Pelas tuas mãos medi o mundo
E na balança pura dos teus ombros
Pesei o ouro do Sol e a palidez da Lua.

Um pouco mais longo, mas talvez um dos mais belos:

(A Estátua)
Nas suas mãos a voz do mar dormia
Nos seus cabelos o vento se esculpia

A luz rolava entre seus braços frios
E nos seus olhos cegos e vazios
Boiava o rasto branco dos navios.

Ou simplesmente:

(Tarde)
O que eu queria dizer-te nesta tarde
Nada tem de comum com as gaivotas.

(Praia)
As ondas desenrolam os seus braços
E brancas tombam de bruços.

E não resisto a acrescentar, desta vez de «Mar Novo» (1958):

(Perfeito)
Perfeito é não quebrar
A imaginária linha

Exacta é a recusa
E puro é o nojo.

segunda-feira, 1 de maio de 2006

Teresinha em Estrasburgo

Teresinha, Sofia e Diogo em Estrasburgo. (Sim, sei que a ordem devia ser outra, com os pais em primeiro lugar; e que o título desta entrada é algo redutor.) A Sofia apresenta um «paper» numa conferência, o Diogo aproveitou o fim‑de‑semana comprido para desanuviar de Paris e do trabalho e a Teresinha acompanhou-os porque ainda não pode ficar longe deles. Ontem, os pais foram jantar fora e a Teresinha ficou em casa com os tios Ana e Pedro. O Pedro telefonou‑me com ela ao colo para me fazer inveja. Ao que parece, estava sossegada e bem–disposta. E eu, aqui, com ciúmes e a pensar por que não fui ter com eles!

Rui Tavares

Não me parece que as pessoas se definam pelo que lêem. Há muito sacana que lê e gosta de boa poesia. Mas é possível que duas pessoas se encontrem em torno de alguns autores em particular, numa espécie de experiência intelectual partilhada. Em relação a Rui Tavares (de que li, recentemente, «Pobres e Mal-Educados» e «O Pequeno Livro do Grande Terramoto), é essa a sensação que tenho. Por sua causa, peguei de novo em Calvino («As Cidades Invisíveis»), Murakami (leio em francês mas os títulos ingleses dos livros são: «A Wild Sheep Chase» e «Dance, Dance, Dance») e decidi-me a ler e reler a obra completa de Sebald. Melhor do que perder tempo com romances que, em Portugal como noutros países, saem do prelo à velocidade do relâmpago, sem critério editorial nem interesse de maior.