segunda-feira, 30 de novembro de 2009

Com uma piscadela de olho a Marcelo Rebelo de Sousa

Seria bom que um clube se imiscuísse nesta lenga-lenga de campeonatos ganhos pelo Porto (quase todos) e, nos últimos anos, muito timidamente, pelo Benfica (uma vez) e Sporting (uma vez também, em 2001-2002; mas, orgulho dos orgulhos, quatro segundos lugares nos quatro últimos campeonatos - festeja-se o que se pode). Essa a única razão por que eu, que nem gosto de futebol e sou sportinguista, torço este ano pelo Braga.

E, já agora, por que não apoiar o seu adepto mais conhecido, Marcelo Rebelo de Sousa, para a Presidência do PSD? Mesmo sem ter nada a ver com este partido...

... Esperando apenas que não aconteça ao Braga o mesmo que ao Boavista que, depois de, na época de 2000-2001, ter interrompido o festim dos grandes, iniciou uma penosa descida aos infernos. Mas nem todos os clubes são geridos por Valentim Loureiro, família e associados.

domingo, 29 de novembro de 2009

Os suíços e os minaretes

Não gosto da Suíça. Sobre os suíços não me pronuncio já que conheço poucos. Mas os resultados do referendo de ontem sobre a proibição de minaretes nas mesquitas construídas no país levam-me a pensar que as coisas não andam bem lá para aquelas bandas.

Já agora, porque não proibir os campanários nas igrejas católicas? Ou, mais radicalmente, as abóbadas de catedrais e mesquitas, indiferentemente! Ou as sinagogas? E os templos budistas. Proiba-se tudo. (Incluindo, já agora, os crucifixos nas escolas!)

É evidente que só espíritos estreitos podem pensar que os minaretes sejam "um símbolo do islão militante". E, ainda que o fossem, lembre-se que não é raro, em livros de História ou de História da Arte, da autoria de insuspeitos autores ocidentais, encontrarmos referências ao catolicismo militante, triunfante ou conquistador: por exemplo, o catolicismo da época das catedrais. Devemos, por isso, destruir as catedrais? Palermice.

O perigo é que já andam políticos oportunistas a interrogar-se sobre se os minaretes serão mesmo indispensáveis ao culto. O que é importante, dizem, é a mesquita; não o adorno. Mas os campanários também não são essenciais... Pode adorar-se Deus em casa, sem o repicar dos sinos.

O choque das civilizações (The Clash of Civilizations and the Remaking of World Order) é um disparate imaginado por um historiador geralmente competente: Samuel Philips Huntington. Não há necessidade de transformar a sua insensata previsão em realidade. Mas é isso que atitudes como a dos eleitores suíços se arriscam a fazer. Que diríamos nós, com efeito, se alguns árabes impedissem a construção de novas igrejas?

Kovacevich e Solomon - Tromboses

Não sabia que Stephen Kovacevich, o magnífico pianista, autor de uma integral das sonatas de Beethoven geralmente considerada como um dos sommets da discografia beethoveniana, tinha tido uma trombose há mais ou menos dois anos; e ainda menos que a sua recente gravação das Variações Diabelli, também de Beethoven, tinha sido feita depois de encetada a sua recuperação.

Como podia adivinhá-lo? Se há uma diferença de concepção entre esta nova interpretação e a da gravação Philips de 1968, ela não tem a ver com qualquer envelhecimento ou incapacidade provocada pela doença. A gravação actual é mais profunda e livre, há um contraste e uma dinâmica nos tempos, uma progressão que não é linear e adere ao ritmo da obra, como só é capaz um grande artista na plena posse das suas faculdades. Ao ouvi-la, nunca pensei que Kovacevich pudesse ter passado por uma situação de saúde que, para um pianista, é potencialmente fatal – impedindo-o de praticar a sua arte. Não é, felizmente, o caso. Ao que parece, Martha Argerich, de que Kovacevich foi o terceiro marido, diz que ele está a tocar melhor do que nunca. Talvez a súbita apreensão da fugacidade da vida e da arte tenham contribuído para conferir outra dimensão ao seu canto.

Veio-me à memória a recordação doutro grande pianista, Solomon (Solomon Cutner), que se viu obrigado a interromper definitivamente a sua carreira em 1956, aos 54 anos, também por cauda de uma trombose que o deixou paralisado do lado direito. Para Solomon, não houve recuperação. Viveu até aos 86 anos, dando lições e tentando transmitir a diversos alunos a sua concepção da música. Mas pode imaginar-se a tristeza e a miséria de um homem para quem o piano era a vida e que se viu incapacitado de tocar e, portanto, de viver. A minha Mãe gostava particularmente duma sua interpretação (disponível em DVD, embora apenas como bónus que se deixa passar facilmente!) da sonata Appassionata de Beethoven. E tinha razão. Olhar as suas mãos, sentir a serenidade com que encara o piano, ouvir o seu som sumptuoso, ao mesmo tempo grave e recolhido, é uma emoção musical incomparável.

Que alegria que Kovacevich, ao contrário de Solomon, tenha podido recuperar.

sábado, 28 de novembro de 2009

Duas estátuas

A estátua de Pedro o Grande, em São Petersburgo, é uma das mais belas estátuas equestres do mundo. Obra do escultor francês Falconet, encomenda da grande Catarina, Imperatriz de todas as Rússias, e por ela inaugurada em 1782, a estátua domina a Praça dos Dezembristas, esses nobres idealistas que tentaram instaurar uma monarquia constitucional por ocasião da subida ao trono de Nicolau I, que sucedia ao seu irmão Alexandre I, o vencedor de Napoleão (a última parte do Guerra e Paz de Tolstoi refere-se a esta revolta). A estátua inspirou Puchkine, o criador da própria língua russa, o seu primeiro grande escritor, extraordinário poeta, prosador notável, que, no seu célebre poema O Cavaleiro de Bronze, reflecte sobre o destino europeu do seu país ao mesmo tempo que afirma o seu amor à cidade de São Petersburgo. Este destino europeu foi construído à força por Pedro – quase como se o tivesse modelado com as suas próprias mãos. Pedro era um gigante. As suas reformas ousadas, a verdadeira revolução que impôs com a força da sua personalidade e a violência dos seus propósitos e das suas acções, afastaram a Rússia da Ásia (e de Moscovo, cidade que detestava) e arrimaram-na à Europa. Durante os dois séculos seguintes, até à Revolução de Outubro, a tensão entre a Rússia civilizada, europeia, residente em São Petersburgo, e a Rússia do regime patrimonial, centrada em Moscovo, foi uma constante da vida política.

Claro que houve reacções – as reacções dos sectores mais conservadores da Rússia czarista e ortodoxa, os boiardos de longas barbas e vestidos de grosseiras túnicas de cafetã. Pedro obrigou-os a rapar as barbas e a vestirem-se como ocidentais, com cabeleiras polvilhadas e maquilhagem. Não era um santo mas um visionário, indiferente ao custo humano dos seus desejos. A construção da nova Rússia, saída directamente do espírito do seu chefe, ou a construção de São Petersburgo, por ele arquitectada, eram obras desmedidas. A vida humana não tinha para si qualquer valor. Só nas obras de São Petersburgo, estima-se que tenham morrido mais de 250.000 servos.

A estátua impressiona pela sua leveza, pelo extraordinário sentido de movimento que transmite. Assenta num bloco de granito de aproximadamente 660 toneladas, doze metros de altura e trinta metros de circunferência. Para a transportar por um percurso de treze quilómetros, foi necessário o trabalho de mais de mil homens durante dezoito meses. Há que confessar que, a seu lado, mesmo outras de grande prestígio, parecem pesadas e artificiais. Quase me atreveria a falar da nossa estátua de D. José, no Terreiro do Paço, da autoria de Machado de Castro, mas isso seria claramente antipatriótico. Há, no entanto, claras afinidades, ressalvadas as proporções, entre a obra desmesurada de Pedro o Grande no estuário do Neva e a reconstrução de Lisboa pelo Marquês de Pombal: a mesma inspiração iluminista, o mesmo conceito de racionalidade na distribuição do espaço, a mesma exigência de uniformidade.

Em contrapartida, a estátua de Alexandre III, da autoria do príncipe P.N. Trubetskoy, é apenas um denso, robusto, compacto bloco de pedra assente no solo, sem nenhuma beleza ou graça. Os habitantes da antiga capital russa não se deixaram enganar. Chamavam-lhe O Hipopótamo. E diziam os seguintes e deliciosos versos:

Nesta praça está uma cómoda.
Sobre a cómoda, um hipopótamo;
Sobre o hipopótamo, um idiota.

Esta estátua foi sempre criticada, a ponto der se poder desconfiar das intenções do seu autor. O irmão do czar dizia que se tratava de uma caricatura. Logo após a revolução de Outubro, os bolcheviques deixaram-na no seu lugar, à laia de recordação severa do antigo regime. Em 1937, Staline mandou-a para uma arrecadação e foi apenas em 1994 que a estátua voltou às ruas de São Petersburgo, encontrando-se agora ironicamente em frente do Museu Lenine – dois autocratas reunidos nas suas representações simbólicas. (É certamente por causa desta história atribulada que não consegui descobrir na internet uma fotografia moderna da estátua).

É estranho – um grande sorriso do destino – que Alexandre III tenha sido representado a cavalo porque ele tinha medo de cavalos e detestava montar. Aliás, no final da sua vida (morreu aos 49 anos com problemas de fígado motivados pelo seu gosto exagerado da bebida – principalmente cognac, ao que parece), gigante de 1 metro e noventa e gordíssimo, já era quase impossível encontrar um cavalo que suportasse o seu peso.

Alexandre III foi o penúltimo czar, pai do célebre Nicolau II, o último dos Romanov, assassinado pelos bolcheviques, com toda a sua família, em Ekaterimburgo, na madrugada de 16 para 17 de Julho de 1918. Alexandre III, se bem que impenitente autocrata, ainda era um homem capaz; o filho era, nas suas próprias palavras, "um asno", para além de "maricas" – no sentido, não de homossexual (ele nem devia saber o que isso era) mas de, como se dizia pudicamente na altura, "efeminado". O Pai chamava-lhe "fifille".

Não é possível duvidar da incompetência do último czar. Nicolau II ("Nicky") era indeciso, estúpido e inculto mas trabalhador esforçado e homem bem-parecido, se bem que baixo (1 metro e setenta) e de porte feminino. Teria dado um excelente monarca constitucional. O problema é que pretendia manter a tradição da autocracia. Assim, a Rússia de antes da revolução viu-se confrontada com um problema para o qual não havia solução: um czar inapto mas absolutamente determinado a exercer o governo do país, a governar, ou administrar, em vez de simplesmente reinar. Além disso, para o czar, governar era tratar da intendência. Preocupava-se com os orçamentos das escolas de província ou com as carreiras de funcionários públicos mas quando um dos seus poucos ministros capazes tentava despertar a sua atenção para importantes assuntos políticos desviava rapidamente a conversa e falava do tempo. O drama da Rússia foi esse: quando seria necessário um homem capaz de compreender a necessidade de liberalização do Estado e do Governo – incentivando uma sociedade que dava tímidos sinais de modernidade – os dois últimos czares eram convictos autocratas e impenitentes conservadores, e o último era um incapaz.

Os que ainda hoje pretendem que a revolução era evitável (o exemplo típico é Hélène Carrére d'Encausse, secretária perpétua da Academia Francesa e especialista em assuntos russos, autora de biografias de Nicolau II e de Lenine) e que o regime teria evoluído no sentido de uma monarquia liberal e constitucional, como acontecera, mas pelo menos um século antes, com os restantes regimes europeus, esquecem este facto. É claro que as consequências da Revolução bolchevista foram desastrosas. Mas qualquer observador imparcial sabe que o regime czarista se tinha entrincheirado numa posição, da qual, por meios pacíficos, não havia saída. A violência foi o efeito inevitável da alarvidade e teimosia dos últimos czares. A estátua de Alexandre III é apenas um exemplo dessa incapacidade de encarar a realidade.

(O conteúdo desta entrada baseia-se em dois livros estupendos de Orland Figes: A People's Tragedy, sobre a Revolução de 1917, mas cobrindo o período 1891-1924; e Natasha's Dance, sobre a história cultural da Rússia. Por sua vez, a última obra de Figes, The Whisperers - Private Life in Stalin's Russia, é uma investigação perturbante sobre as famílias de homens e mulheres perseguidos pelo regime: as mentiras que eram obrigadas a contar, o engano em que viviam, a dor e sofrimento duma vida escondida. Lê-se como um grande romance. Extraordinário).

quinta-feira, 26 de novembro de 2009

Michelangelo di Ludovico Buonarroti

Por falar em Capela Sistina... Havia um crítico de arte italiano (creio, mas não garanto, que era Frederico Zeri) que dizia que a única prova convincente da existência de Deus era a obra de Miguel Ângelo. Porque a sua arte só podia ter sido inspirada pela divindade.

Quando vi a Pietá, em Roma, na Basílica de São Pedro, vieram-me as lágrimas aos olhos. Tratava-se, com efeito, duma beleza sagrada. Mesmo para quem, como eu, nem sequer acredita nessa prova da existência de Deus. Acredito, sim, no génio magnífico, profundo, único, comovente, de um homem: Michelangelo di Ludovico Buonarroti Simoni. Michelangelo, o Imortal.

Foi no Renascimento que nos atrevemos a pensar, pela primeira vez mas ainda de forma muito incipiente e confusa, que o homem poderia ser o seu próprio Deus.

Albert Camus

Albert Camus morreu a 4 de Janeiro de 1960 num brutal desastre de automóvel. A sua morte foi recebida com um sentimento ambíguo. Embora todos reconhecessem as suas qualidades humanas, Camus era, por essa altura, geralmente considerado como um filósofo falhado e um escritor cansado. L'homme révolté, publicado em 1951, tinha-lhe atraído as fúrias de Sartre, que o demoliu, deixando-lhe, para sempre, um amargo sentimento de insuficiência. No elogio fúnebre que mais tarde lhe dedicou, publicado na revista France Observateur, ascendente em linha recta e em primeiro grau do Nouvel Observateur, Sartre fez marcha atrás; mas apenas em relação ao homem, não ao filósofo. Camus representava, disse o grande ordenador da inteligência gaulesa, a herança moderna «daquela longa lista de moralistas» cuja obra constitui o que há de mais valioso na literatura francesa. Mas a verdade era que, na altura da sua morte ou mesmo três anos antes, quando recebeu o Prémio Nobel de Literatura, essa mesma "inteligência" considerava Camus como um filósofo de somenos, uma personalidade sujeita a "esclerose prematura" e, sobretudo, como um traidor por causa das suas posições obre a Guerra da Argélia.

A posição moderada de Camus relativamente ao conflito argelino explicava-se pelas suas origens. Nascido e criado na Argélia Francesa, de família imigrante e pobre, órfão de um pai que apenas conheceu a França para nela morrer na Grande Guerra, Camus estava sempre pronto a deixar Paris para, com um sentimento de inacreditável plenitude e indisfarçável júbilo, se imbuir do, do sol, do mar e do espaço africanos. Opondo conscientemente o carácter fechado e opressivo dos salões metropolitanos ao movimento de luz, liberdade e sensualidade das paisagens argelinas, Camus demonstrava que não fazia parte dessa intelectualidade vagamente pretensiosa que tanto agrada aos franceses. Na sua célebre frase, «entre la justice et ma mère, je préfère ma mère», e embora, como é normal nestes casos, a frase não seja absolutamente exacta e, sobretudo, não reflicta toda a complexidade do seu pensamento, Camus tentou exprimir também este sentimento de inadaptação relativamente ao mundo literário em que tinha penetrado depois de ter conseguido uma bolsa para prosseguir os seus estudos secundários, arrancado a ferros da sua família pela força de vontade do seu professor da escola primária, Louis Germain, a quem dedicou o seu discurso de aceitação do Prémio Nobel. Porque Camus era, também um puro produto da III República Francesa, duma sociedade em que era possível, mesmo para os mais pobres (e o tema da pobreza, da nua, crua, pobreza que, como ele dizia, conduz à ausência de memória, de passado e de História, porque os pobres se preocupam essencialmente com a sobrevivência no quotidiano, surge como um persistente pano de fundo em toda a sua obra), através dum extraordinário sistema de bolsas, escapar, através da educação, aos constrangimentos impostos pelo nascimento. (Embora muitas vezes pagassem um preço alto por isso...)

Note-se que Camus não era um simples colonialista, um defensor impenitente da presença francesa na Argélia. Já na década de trinta, muito antes de os espíritos bem-pensantes de Paris se preocuparem com o problema argelino, Camus explicava «qu'une grande, une éclatante réparation doit être faite (...) au people Arabe». Simplesmente, considerava que essa reparação era devida «par la France toute entière et non avec le sang des Français d'Algérie». Contudo, no final dos anos cinquenta, esta procura de um compromisso liberal (Tony Judt) tornou-se irrelevante. Camus murou-se no interior do seu silêncio. Estava sobretudo cansado. Não queria ser o porta-estandarte de ninguém, o guia de pessoa nenhuma: «Je ne sais pas, ou je sais mal, où je vais».

Como a situação é diferente, hoje! Quase todos se reclamam de Camus, à esquerda, à direita, ao centro, escritores, filósofos, intelectuais, artistas, políticos. Muito se deve ao reconhecimento das suas incontestáveis qualidades humanas (Hannah Arendt dizia que ele era «o melhor homem de França») mas mesmo este reconhecimento necessita explicação. Pode ser que seja apenas uma consequência do olhar crítico que lançamos sobre a arrogância, a mesquinhez e a ganância da nossa própria época. Uma personalidade como Camus, de origem modesta e pudor instintivo (nas palavras do seu professor primário), homem bom e decente, patentemente honesto, «a mais nobre testemunha duma época particularmente ignóbil» (Pierre de Boisdeffre), tem muito para nos atrair. Mas penso que as razões deste continuado interesse por Camus – que vem já da primeira metade da última década do século passado, altura em que foi publicada a sua obra póstuma e incompleta, Le premier homme – são mais complexas. Têm a ver directamente com as posições que Camus sempre defendeu. Estranhamente, mas sem surpresa, as razões por que voltamos a Camus têm muito a ver com as razões da sua rejeição nos anos sessenta e setenta.

Em primeiro lugar, está a sua recusa inapelável da violência. «Il y a des moyens qui ne s'excusent pas». Este absolutismo de intenção toca-nos hoje profundamente porque pertencemos a uma geração que viu e percebeu, como a de Camus tinha visto mas só entendido em parte (escapava-lhe a União Soviética, a China, mais tarde Cuba, o Vietname e o Cambodja) a que inferno nos levam mesmo as boas intenções se não houver cuidado na escolha dos métodos. Para além disso, um tempo que, como o nosso, discute indecentemente a legalidade ou ilegalidade da tortura deve encontrar algum conforto nesta clara linha de demarcação entre o bem e o mal.

Em segundo lugar, está a liberdade, a sensualidade, a poderosa atracção física e sexual que se liberta dos seus livros. (Esta é, sobretudo, uma característica de Camus enquanto escritor). Em cada página dos seus romances somos confrontados com um apelo mágico a formas, cheiros, imagens, sons, à beleza, ao sexo. Não consigo compreender como há idiotas (Pierre Bergé, o antigo amante de Yves St-Laurent) que dizem que Camus é "un écrivain pour instituteurs". É claro que algumas das suas obras têm um cunho didáctico - La peste ou La chute (de que gosto menos) são exemplos. Porém, mesmo nestes livros, as personagens estão vivas, as paisagens movem-se, as sensações inundam o leitor. Camus é, nesta perspectiva, um escritor decididamente moderno.

E, depois, há a tragédia duma existência ceifada, uma vida brilhante que um acidente transforma em destino (Bernard Fauconnier). Como todos os que morrem jovens (os que os Deuses amam), a nossa memória de Camus é, para sempre, a do homem ainda novo com o cigarro ao canto da boca, a face dos seus quarenta e seis anos, com a inerente promessa de um futuro incumprido, a aventura incomparável duma existência que não sofreu nem os compromissos da maturidade tardia, nem a indignidade da velhice.

Para mim, que mergulhei fascinado no L'homme revolté, e que nunca, mesmo quando era jovem, me desviei da sua mensagem principal de recusa de qualquer violência, para mim que sempre defendi, com unhas e dentes, a ideia de que os fins nunca justificam os meios, afastando-me tantas vezes dos meus amigos mais à esquerda ou (bastante) mais à direita, para mim que devorei L'étranger e quase aprendi La peste de cor, este retorno a Camus é consolador. A vingança duma História que se reconhece nos seus homens bons e dignos. A afirmação dum pensamento que recusava a violência e a imposição, baseado na modéstia conferida por uma enorme inteligência mas também pela abnegação e atenção aos outros.

Não me importa nada saber se o seu corpo repousará no Panteão como, ao que parece, pretende Nicolas Sarkozy. (Parece que não porque uma parte da família se opõe). Mas gostaria que a sua lição persistisse entre nós, nesta espécie de Panteão espiritual definido pela comunidade do saber e da cultura de que, à minha medida, gosto de pensar que faço parte.

Museus Pagos ou Gratuitos - e Laurinda Alves

Num breve comentário publicado na edição de hoje do "i", e a propósito da Casa das Histórias, o novo museu de Paula Rego, em Cascais, de entrada gratuita, Laurinda Alves tece algumas considerações sobre «a lógica de pagar ou não entrada nos museus». Começa por dizer que se deve pagar entrada porque «não (tem) nada a certeza de que a gratuidade garanta a qualidade. Muito pelo contrário». O preço do bilhete «paga a segurança e a manutenção do espaço bem como as obras; financia a diversidade das exposições; contribui para a boa conservação das colecções permanentes e impede que os museus vendam obras do acervo para sobreviver»

Estas são boas razões. Não tenho a respeito desta questão uma opinião definitiva – tranchée, como diriam os franceses. Mas isso não é particularmente grave. E este é um assunto em que podemos, sem que daí venha mal ao mundo, ter pontos de vista diferentes. Claro que, a Laurinda Alves, poderia opor-se que todas as situações enumeradas teriam solução no âmbito duma política cultural adequada. E, quanto à sua ideia de que a gratuitidade não se traduz em maior número de visitantes de museus, poderia dizer-se que, se é verdade que esta relação não é automática, o preço do bilhete (por vezes, como concede, demasiado elevado) pode ser dissuasor.

Onde começo a sentir-me incomodado é quando passamos desta discussão razoável para o argumento de que a massificação de visitantes pode ser perversa, pois a proximidade das obras de arte requer tempo e silêncio. «Como alguém disse, contemplar um quadro de Rembrandt é tão exigente como perceber a divisão do átomo».

Isto é muito bonito. Também eu, ao ler algumas obras de Henry James, dou por mim a invejar as personagens que se encontram na Galleria delle Uffizi, em Florença, sozinhas diante do Nascimento de Vénus, de Botticelli; ou no Louvre, a apreciar a Mona Lisa, sem milhares de pessoas ao lado. Ou sobretudo, deixando o escritor americano e passando para a minha experiência pessoal, posso facilmente imaginar (infelizmente, só imaginar!) como gostaria de estar na Capela Sistina, sozinho e maravilhado, sem necessidade de ouvir o palrar dos japoneses vindos em grupos de turistas, de máquina fotográfica em punho. (Embora, se bem me lembro, todos estes museus ou salas sejam de entrada paga. Em Florença, aliás, a bicha para comprar o bilhete era tal que desisti e ainda só conheço o quadro de Botticelli através das gravuras dos livros de arte).

De acordo em que contemplar um quadro merece intimidade. Uma das minhas piores experiências artísticas foi a visita à célebre exposição consagrada a Vermeer, na Haia, nos anos noventa, em que, mesmo pagando, estávamos pelo menos vinte pessoas debruçadas sobre cada quadro – e no caso de Vermeer, pintor quase miniaturista, isso era bastante desagradável.

O hic está em que evitar essa massificação através do preço do bilhete é claramente discriminatório – e pela pior razão, que é a do dinheiro sonante. Com efeito, nada garante que quem tenha dinheiro para comprar o bilhete aprecie a intimidade tão cara a Laurinda Alves (os meus turistas japoneses não pareciam particularmente preocupados com qualquer ideia de privacidade do olhar). É claro que seria difícil, senão impossível, definir um critério diferente. O do dinheiro tem a vantagem enorme da simplicidade e não pode exigir-se de um guarda de museu que faça um juízo sobre a capacidade intelectual ou a sensibilidade artística de cada visitante. Mas mesmo que se aceite que pagar entrada é uma necessidade imposta pelas melhores razões do mundo (e repito que, quanto a isso, não tenho opinião formada), é intelectualmente desonesto sugerir que uma dessas razões pode ser a preservação da emoção artística. Não pode. Pagar bilhete é apenas, e quando muito, o instrumento duma crua selecção. Nada mais.

quarta-feira, 25 de novembro de 2009

O casamento dos homossexuais - Um artigo de Esther Mucznik

Podemos discordar uns dos outros e comportarmo-nos como pessoas civilizadas? Claro que sim; e, se o fizermos, muitas vezes descobrimos que até há assuntos sobre os quais podemos concordar.

Não estou de acordo com muitos dos artigos que Esther Mucznik tem publicado no Público – nomeadamente com aqueles que se referem a Israel. Defendo a constituição de dois Estados na actual área da Palestina mas, ao mesmo tempo, não consigo deixar de pensar que a questão do Médio Oriente, que aflige há tanto tempo a paz mundial, teve a sua origem, em 1948 e já antes, em actos terroristas dirigidos contra a população palestiniana levados a cabo pelo Estado de Israel então recém-constituído – actos que se perpetuaram no tempo, como acontece, nos nossos dias, com os ataques a Gaza e a continuação do processo de construção de colonatos judaicos em território palestiniano.

Por isso, é com muito gosto que saliento a qualidade do último artigo desta autora publicado na edição da passada quinta-feira, 19 de Novembro, do mesmo jornal, sob o título A Homossexualidade em Debate. Esther Mucznik analisa o problema da homossexualidade – e, em particular, do casamento entre homossexuais e da adopção por homossexuais – com rigor, elevação e humanidade. O seu texto é merecedor de aplauso ainda mais porque, como afirma, «não (defende) nenhum direito especial, nenhum privilégio para nenhuma minoria, seja ela étnica, religiosa ou sexual» e «não (gosta) das manifestações de orgulho gay».

Isso não a impede de tratar este assunto de forma muito inteligente. Em primeiro lugar, recusa-se a considerar o problema do casamento dos homossexuais em si mesmo, separado da questão mais geral da orientação ou identidade (identidade não é, contudo, uma expressão utilizada por Mucznik) sexuais. Isso leva-a a considerar acertadamente que a sua aceitação não deve depender primordialmente de quaisquer eventuais efeitos positivos na redução dos preconceitos contra os gays ou as lésbicas. A simples aprovação duma lei na Assembleia da República não teria, segundo Mucznik, qualquer efeito nessa matéria. Como não bastam, acrescento eu, outros argumentos utilitaristas, relativos a situações cuja solução é certamente essencial mas que não justificam, por si só, a consagração legal do casamento homossexual. Com efeito, quase todas essas questões práticas (o direito à protecção social, o direito à casa de morada da família; eventuais direitos sucessórios) poderiam ser resolvidas através de regimes diferentes, por exemplo, semelhantes às uniões de facto do direito francês (os célebres PACSPacte Civil de Solidarité) que, aliás, se aplicam tanto a homossexuais como a heterossexuais que não pretendam casar-se ou até a pessoas que pretendam apenas organizar a sua vida em comum, sem necessária referência à ideia de família baseada no sexo.

Se a questão não é, nem apenas nem principalmente, legal, continua Mucznik, também não é religiosa. O seu argumento chocará alguns. Esther Mucznik afirma, em suma, que nada do que faça o legislador pode ter efeito na forma autónoma como as diferentes religiões encaram este problema; em contrapartida, qcrescento eu, as religiões também não podem pretender que as suas regras tenham efeitos civis. «A igreja, a sinagoga e a mesquita têm as suas próprias normas». Consequência: o Estado tem também as suas. As águas devem ser cuidadosamente separadas.

Excluídas todas estas razões – ou não-razões – para a aceitação do casamento homossexual (e da adopção por homossexuais que, como Mucznik afirma com lucidez, logicamente se seguirá, se não agora, pelo menos mais tarde – e seja dito que os dados empíricos existentes, embora reconhecidamente escassos, não permitem sustentar a ideia de que a família homossexual seja prejudicial às crianças), somos assim colocados perante a questão que é, na verdade, fundamental. Discutir o casamento dos homossexuais é, afinal, discutir a aceitação da própria homossexualidade. Não têm razão aqueles que dizem que não aceitam o casamento homossexual mas aceitam a homossexualidade. Porque do que se trata é, em suma, de discutir o direito à diferença.

Claro que se trata duma questão difícil – pode mesmo dizer-se fracturante em termos sociais. Mas isso decorre de mexer «com o tipo de certezas estruturantes nas quais somos educados e que radicam essencialmente na questão da sexualidade». Rejeitamos «à partida o que nos parece "anormal"; assusta-nos um mundo em que o "anormal" possa ser tratado como "normal"». E Mucznik engrena então uma série de perguntas: «Quais serão as regras então? Onde estará o bem e o mal? Como educar os nossos filhos? Qual o futuro de uma sociedade em que uma parte significativa da população não procria ou procria de forma não "natural"?» Para responder desapaixonadamente que «o anormal sempre existiu. Apenas era (e ainda é, embora cada vez menos) remetido para as margens escuras da sociedade, na pior das hipóteses estigmatizado como vergonhoso, sujo e perverso, na melhor como doença a extirpar. Em qualquer dos casos, objecto de rejeição e de chacota, de exclusão e de perseguição.»

O judaísmo de Mucznik – uma aguda consciência da perseguição de que foram alvo os judeus, pela simples razão de o serem, ao longo da sua imensa história – permite-lhe compreender, de forma particularmente aguda, o que está em causa. Por isso, parece-me importante terminar transcrevendo pura e simplesmente o último parágrafo do seu belo artigo. Ele diz, em poucas palavras, o essencial do que deve ser dito sobre este tema – mas também, e principalmente, sobre todas as formas de discriminação em que "o outro" é posto em causa por não se conformar com a nossa ideia de "normalidade" ou "naturalidade":

« (...) Apenas a liberdade e um tratamento igual perante a lei, sem discriminações negativas ou positivas, pode acabar com o "marranismo", ou seja, uma existência dupla, fonte de sofrimento individual intenso e de fragmentação social. Porque "marranos" são todos os que têm de esconder, de recalcar uma parte da sua identidade profunda por esta ser estigmatizada pela sociedade - sejam eles conversos judaizantes ou homossexuais praticantes...»

Não podia ser melhor dito.

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

Pobrecitos

Que dirá o meu irmão Francisco depois da derrota do Benfica, em casa, contra o Vitória de Guimarães, por 0-1? Ele, que falava das "triangulações de sonho", num arroubo poético que é revelador da forma como os benfiquistas têm encarado este início de época; ele, que terminava uma recente entrada no seu blogue Como no Início (ver endereço no fim desta entrada) com um "viva" ao Jesus, três "vivas " ao Benfica e um "Viva Portugal". Maldosamente (oh! esta inveja de sportinguistas que vêem o seu clube a penar a meio da tabela), aconselhei-o, aliás, a acrescentar um "Viva Salazar". Por causa de Fátima, do fado e do futebol.

Outro benfiquista ilustre que participa num programa de televisão que o meu genro João – mais um ilustre fanático do clube da Luz capaz de transformar golos marcados com a mão em jogadas perfeitamente legais e breves empurrões na área adversário em agressões a merecer cartão vermelho, se uma e outra atitudes favorecerem o Benfica – me informou chamar-se Trio de Ataque (eu ainda andava pela época dos Donos da Bola mas parece, João dixit, que este passava na SIC e acabou há bastante tempo), outro benfiquista ilustre, dizia eu, antes de me perder nos meus próprios meandros, António Pedro de Vasconcelos, cineasta de talento, autor do célebre O Lugar do Morto, em que Ana Zanatti e Pedro Oliveira protagonizavam uma cena quente, disse recentemente que Jesus era melhor treinador do que Mourinho. Estava a falar do Jesus, Jorge – e não da outra conhecida personagem do mesmo nome que, pode garantir-se sem risco de errar, se se dedicasse ao futebol seria certamente o melhor treinador do mundo, mas que, se andar por aí (e há quem duvide que ande em qualquer lugar), estará certamente preocupado com outras coisas.

Como pode ver-se pelos exemplos dados, não há benfiquistas inteligentes. Ou melhor, mesmo quando são perspicazes e boas pessoas na vida normal, basta pô-los a falar do Benfica que todos acabam a dizer asneiras das boas. E o seu normal bom feitio desaparece subitamente se nos atrevemos a discordar deles ou, até, apenas, a chamar-lhes a atenção para alguns pormenores desagradáveis: foras de jogo, faltas na área, livres mal marcados, e mesmo (à atenção do Francisco) algumas triangulações falhadas...

É claro que, este ano, um sportinguista devia ter a humildade de se calar e de olhar o sucesso da equipa do outro lado da segunda circular com modéstia e circunspecção. Assim, fico à espera de mais um disparate do Presidente Bettencourt para poder malhar no meu clube. Entretanto, dá-me algum prazer gozar com o Francisco e o João. O que foi a razão principal de ter perdido algum tempo a preparar este texto.

http://comonoinicio.blogspot.com

sábado, 21 de novembro de 2009

As novas faces da Europa

Valerá a pena comentar a nomeação de Herman Van Rompuy e Catherine Ashton, Baroness Ashton of Upholland, para os dois postos fundamentais, na estrutura das instituições europeias, respectivamente, Presidente do Conselho e Alta-Representante para as Relações Externas (e Vice-Presidente da Comissão)? Se o nome do primeiro já corria pelos bastidores em Bruxelas (era mesmo um segredo de polichinelo já que a imprensa discutia descaradamente quem o iria substituir como Primeiro-Ministro), a segunda foi uma verdadeira surpresa. Pode mesmo dizer-se que, até agora, ninguém tinha pensado na Baronesa para o cargo que, afinal, lhe veio a cair no regaço. Ashton começou as suas andanças europeias há menos de dois anos, quando foi nomeada por Gordon Brown para substituir Peter Mandelson na altura em que este abandonou o lugar de Comissário para o Comércio na primeira Comissão presidida por Durão Barroso (ainda continuamos a chamá-lo assim aqui em Portugal; em Bruxelas e na Europa, é apenas Barroso, ou melhor, o Président Barroso, pronunciar "Barrôsô"; ou President Barroso, pronunciar "Baroso") e voltou a Londres para assumir o cargo de Ministro das Empresas, Comércio e Indústria. Ainda se falou de Mandelson para o cargo que veio agora a ser atribuído a Ashton mas calculo que a França não terá gostado da ideia. Sarkozy não o suporta e são conhecidas as divergências entre ambos a propósito da política comercial da União Europeia. O antigo Comissário, um dos mais fiéis aliados de Tony Blair mas também um político que teve de se demitir duas vezes do Governo britânico por alegadas impropriedades (de que foi, aliás, ilibado), era geralmente considerado como sendo "demasiado liberal" e, por alguns ou muitos, exageradamente oportunista.

Catherine Ashton deve a sua nomeação a três circunstâncias: é socialista (embora da "terceira via"), mulher e britânica. O cocktail ideal! O facto de não ter qualquer experiência internacional (para além daquela que acumulou nas negociações de acordos comerciais) e de não parecer que consiga, pelo menos de início, afirmar-se como a face da política externa europeia – se é que esse bicho existe – foi considerado questão de somenos. Mas é duvidoso que venha a ser o dela, o número de telefone que Kissinger reclamava quando pedia algum que pudesse contactar facilmente nessa Europa de que tanto se falava e que ele, infelizmente, quase desconhecia. Mesmo assim, Solana, antes de ser o oficioso Ministro dos Negócios Estrangeiros desta Europa que temos, tinha sido Secretário-Geral da NATO.

Por sua vez, Van Rompuy foi nomeado pela sua suposta e pressuposta capacidade de construir consensos, qualidade que, segundo se pensa na Europa, faz necessariamente parte do perfil de qualquer Primeiro-Ministro belga. Não me preocupa particularmente o tratamento condescendente de que é alvo na imprensa britânica – e não só nos tablóides mas também em jornais ou revistas que deveriam ser um bocado mais rigorosas, como o Economist (já agora, quando é que ponho termo à minha assinatura neste magazine que, depois da sua viragem à direita nos anos noventa, crescentemente me irrita?). Mr Who?, como lhe chamam por lá, pode revelar-se um político capaz e há muito em Van Rompuy que agrada: uma certa austeridade e modéstia no trato e uma competência discreta fazem dele o exacto oposto de Tony Blair – e isso, para mim, é muito, muito, positivo. O que me preocupa são as suas tendências claramente conservadoras, mesmo para um político oriundo do Partido Popular Europeu; a sua oposição à adesão da Turquia (que contraria a linha ainda oficial da Comissão Europeia mas que deve agradar a Sarkozy e Merkel); e, principalmente, a sua recusa, enquanto político belga, de assinar a convenção europeia para a protecção das minorias étnicas e linguísticas, com o objectivo evidente de permitir que os flamengos mantenham a mãos livres para tratarem como entenderem (submissão ou expulsão) os valões instalados na Flandres. Estas coisas são (muito) graves.

A generalidade das reacções às nomeações de quinta-feira, com a óbvia excepção dos que para elas contribuíram, foi negativa. Um título do Público descreve bem a situação: "surpresa, perplexidade e desilusão em toda a Europa": Daniel Cohn-Bendit não vai por caminhos travessos: "A Europa bateu no fundo". Alguns jornais são ainda mais duros: "Zés-ninguéns" ou "equipa de sonho (que) põe a Europa a dormir". Mesmo os mais recatados falam de "desconhecidos", de "figuras apagadas", "de nomes fracos para grandes desafios".

Há pessoas que dizem que Durão Barroso sorri. Nesta troika, ele é, sem dúvida, o mais conhecido – pode mesmo dizer-se o único conhecido. Por enquanto, nenhum dos novos nomeados lhe faz sombra (embora eu, se estivesse no seu lugar, começasse a desconfiar de Van Rompuy, que já anunciou a sua intenção de representar a União Europeia nas reuniões do G-20 e que me parece perito em actuar pela calada). Mas quem ri com gosto são o Presidente francês e a Chanceler alemã (o Primeiro-Ministro britânico, em fase final de mandato e perante sondagens catastróficas, está numa fase em que já não ri de nada). Porque estas nomeações, acompanhadas pela contínua perda de poderes da Comissão, reforçam claramente o peso dos Governos e dos seus acordos pontuais no processo de tomada de decisão da União Europeia – ou seja, a sua componente intergovernamental. Que é, precisamente, o que querem os pesos pesados da Europa dos nossos dias – e a razão profunda destas nomeações.

PS. Sou funcionário da Comissão Europeia. Devo dizer, de forma expressa, que considero este blogue como uma forma particular de comunicação com a minha família e os meus amigos. Não sou uma figura pública e não penso que venham bisbilhotar o que escrevo ou que o que escrevo tenha alguma importância para além desse círculo fechado. Normalmente, não sentiria necessidade de clarificar a minha posição. Mas, nos tempos que correm, todo o cuidado é pouco para além de que, gato escaldado... de água fria tem medo.

quinta-feira, 19 de novembro de 2009

Noronha do Nascimento foi a Belém

O Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, Juiz Conselheiro Noronha do Nascimento, encontrou-se com o Presidente da República, Professor Cavaco Silva, numa audiência no Palácio de Belém que, segundo os jornais, durou cerca de uma hora.

No final do encontro, Noronha do Nascimento produziu algumas declarações que, pelo seu carácter aparatoso, merecem ser referidas.

Assim, afirmou que, juntamente com Cavaco Silva, "passou em revista questões que têm a ver com a Justiça". Ainda segundo o Presidente do Supremo, a Justiça (a maiúscula é, presumo, uma decisão editorial; não acredito que Noronha do Nascimento tenha dito expressamente "justiça com letra grande") é uma das questões que "preocupa" o Presidente da República, sendo um tema pelo qual este "se interessa com muita frequência".

Sinceramente, estamos perplexos. Uma audiência entre o Presidente da República e o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça é passada a discutir questões de justiça. E, ainda por cima, questões sobre as quais o Presidente se preocupa e interessa. E com muita frequência!

De certeza que nem trocaram uma palavrinha sobre as escutas a Sócrates? Nada disseram sobre o novo treinador do Sporting? Não veio à baila o próximo jogo de Portugal com a Bósnia-Herzegovina? Muito chatas, afinal, devem ser essas conversas. Anda todo o país a discutir estes assuntos e os dois Presidentes não dispõem nem dum minutinho para falar deles. Passam o tempo, vejam bem, a discutir essas coisas da justiça.

Só resta saber por que Noronha do Nascimento sentiu a necessidade de se dirigir aos jornalistas no final de tão insípido diálogo. Mais valia ter-se calado. O preferível, mesmo era que tivesse saído pela porta das traseiras, evitando encontros inoportunos com a gente da comunicação social.

Netas

Hoje, dei pela primeira vez o biberão à Constança. Ela ficou sozinha comigo enquanto a Sofia foi assistir a uma conferência de Paul Krugman a Louvain. Dormiu sossegadamente uma boa parte do tempo mas, antes de adormecer, esteve bem: calma e risonha. Quase deu uma gargalhada! No que só faria seguir os passos da Xá que deu a sua primeira gargalhada ao meu colo; e não se trata de presunção de avô babado porque, felizmente (senão ninguém acreditaria), esse momento está gravado em vídeo!

Pouco depois, chegou a Xá com o Pai. E foi nessa altura que tirámos esta fotografia. Ah! Já agora: foi hoje mesmo que fui ao barbeiro. Daí o meu ar de skinhead (embora pacífico e anti-racista).

quarta-feira, 18 de novembro de 2009

Desemprego

Há controvérsia nos números mas não há dúvida sobre o essencial. O desemprego não cessa de aumentar. (E diminui ao mesmo tempo a população activa). Mesmo os dados do Ministério do Trabalho apontam para uma taxa de desemprego de 9,8%, correspondente a 548 mil pessoas sem emprego. O inquérito do Instituto Nacional de Estatística é ainda mais assustador. Segundo estes últimos números, que incluiriam os inactivos disponíveis (83 mil pessoas que não procuraram emprego nas últimas quatro semanas), os desencorajados (34 mil que acham que não vale a pena procurar trabalho) e os que se encontram em situação de subemprego visível (66 mil pessoas que queriam trabalhar mais horas), estariam em causa mais de 730 mil pessoas, ou uma taxa de desemprego de 12,9%.

Isto é catastrófico. O desemprego é, não o esqueçamos, um verdadeiro flagelo que destrói a personalidade, no plano físico e moral. É causa de pobreza, de doença, de ansiedade e de desespero. Uma política económica que não se preocupe essencialmente com o emprego não é digna desse nome. Repare-se que não estou a sugerir que se proteja indefinidamente o emprego, por exemplo, adiando o encerramento de empresas claramente inviáveis. Isso seria, a prazo, insustentável e contraproducente. Estou, sim, a falar de utilizar todos os meios razoáveis ao nosso alcance para inverter a tendência actual. A receita liberal – de que o crescimento leva ao emprego e de que devemos concentrar-nos essencialmente em assegurar, através do investimento privado, que os desempregados regressem rapidamente ao mercado de trabalho – não é suficiente. Assim, por exemplo, poderá ser necessário assegurar uma certa divisão do trabalho existente (aceitando, por exemplo, menores horários com menores salários ou simplesmente menores salários para permitir o emprego de mais gente), como se faz, por exemplo, na Alemanha.

Paul Krugman, Prémio Nobel da Economia no ano passado, que a minha filha Sofia foi ouvir a Louvain-la-Neuve exactamente no momento em que escrevo (deixando-me pela primeira vez sozinho com a Constança, que está a dormir na sua cadeirinha), salienta que não vale a pena pensar que aqueles que são actualmente forçados ao desemprego poderão encontrar rapidamente colocação noutras empresas, mais sólidas ou mais prósperas. Diz ele que, nesta altura, apenas vão engrossar o exército dos desempregados, dos que nada têm nem sequer a esperança. E é por isso que o desemprego de longa duração cresce como nunca. Só em Portugal, 253 mil pessoas procuram trabalho há mais de um ano.

E sobretudo não se diga que se trata de preguiçosa ou de gente que se encosta ao famoso modelo social europeu e, contente por viver deste lado do Atlântico, sobrevive. Essa conversa mete nojo. Aos que dizem estes disparates, sugiro que experimentem viver com o subsídio de desemprego: logo verão se conseguem simplesmente almoçar e jantar todos os dias – para já não falar de manterem a dignidade a que todos temos direito. Para além de que é bom não esquecer que, daquele universo de desempregados, apenas 350 mil recebem esse subsídio. E isto é se acreditarmos nos dados fornecidos pelo Ministério do Trabalho. Porque o INE aponta para 240 mil pessoas, ou seja, apenas 43% ou 34 % (consoante os números que utilizarmos) do total dos desempregados. O resto – bem, quanto ao resto, não se sabe. Mas a subida horrível dos níveis de pobreza, em Portugal como noutros países, em particular, nos Estados Unidos e nos países da antiga Europa de Leste, é sem dúvida uma consequência desta situação.

Ingelizmente, não sinto, na acção do Governo, o sentimento de urgência que esta situação exige. Tardam as anunciadas obras públicas – o famoso estímulo keynesiano; parecem multiplicar-se, em vez de diminuir, os empecilhos á actividade das empresas, nomeadamente em matéria de acesso ao crédito. E a protecção social, decerto por razões orçamentais, não permite (longe disso!) resolver a situação dos mais desfavorecidos – de que faz parte, hoje, uma franja importante da chamada classe média. Não admira que os portugueses se sintam desanimados. Que se instale nas famílias, nos indivíduos, o desalento ou mesmo o desespero. O contrário é que seria de admirar.

domingo, 15 de novembro de 2009

Novo treinador do Sporting

Quem é? Não conheço. Sei que se chama Carlos Carvalhal mas, até agora, nunca tinha ouvido falar dele. Será que alguém pode esclarecer-me? Um desconhecido, através dum comentário anónimo à notícia no Público, já recomendou que não guardássemos já os lenços brancos. De qualquer maneira, e como primeira reacção, esta parece-me uma contratação falhada. Mas espero para ver. Quem sabe?

Face Oculta: as escutas e o Público

No editorial do Público de hoje, volta-se ao tema das conversas entre José Sócrates e Armando Vara. A tese aí defendida é que as conversas existem e o Primeiro-Ministro devia esclarecer o seu conteúdo. Isto porque, assim, "o país vai ficar sem saber". Como se fosse "um país de surdos".

Passa o Público uma esponja sobre o seguinte detalhe (que deve considerar insignificante): as escutas foram ilegais e, como tal, mandadas destruir pelo Presidente do Supremo Tribunal de Justiça. É preciso dizê-lo com força. As cassetes não serão destruídas por qualquer indevida pressão do poder político sobre o poder judicial (como insinua o jornal) mas porque o poder judicial, pela boca do seu mais alto magistrado, Noronha do Nascimento, pessoa que nunca fez favores a ninguém e cuja independência é unanimemente reconhecida, decidiu pela sua ilicitude.

Será que o Público não compreende a gravidade do que pede? Suponhamos que não se tratava do Primeiro-Ministro mas do Presidente da República, da líder da oposição ou, simplesmente, de qualquer um de nós. Alguém decidia ilegalmente escutar as suas ou nossas conversas. E, não contentes com termos de sofrer essa indignidade, ainda seríamos obrigados a justificar-nos. Que disparate!

Não. O país não está surdo. É o Público e quejandos (Ferreira Leite, Pacheco Pereira) que estão tontos. Nada mais.

Já agora. Pacheco Pereira acha que quem não concorda com ele (por exemplo, no caso das escutas) é situacionista. Nem mais. Assim, são situacionistas o Diário e o Jornal de Notícias e, em particular, João Marcelino, o Director do primeiro dos jornais referidos. É o que resulta dum recente post no seu blogue Abrupto. Para o conhecido historiador e político, essa coisa de poder haver opiniões diferentes sobre um mesmo assunto é mera ilusão: pura e simplesmente impossível. Discordas? És situacionista! Estás ao serviço do... grande capital (?). («Ah, desculpem, gralha temporal. Isso era dantes, na minha gloriosa fase revolucionária»). Em suma, quem não está com Pacheco Pereira está necessariamente com José Sócrates. Pobre de mim que não gosto nem dum nem doutro.

sexta-feira, 13 de novembro de 2009

O Pai, a Académica e o carro

Imagino a conversa. André Villas Boas diz: «O André Villas Boas fica na Académica. O Sporting e a Académica não conseguiram chegar a acordo sobre a transferência do André Villas Boas.»

Fico contente por saber que a Académica guarda um bom treinador. O meu Pai era um adepto fervoroso, ferrenho, selvagem, do clube de Coimbra, daqueles que são capazes de correr atrás dos árbitros para lhes bater (era o que contava a Mãe). Julgo que o era, sobretudo, em virtude duma grande saudade dos seus tempos de estudante. Contava-nos, com algum orgulho, que, na Faculdade, era conhecido pela alcunha "Simoni", nome dum avançado que, como ele, viera da Covilhã para as bandas do Mondego: no caso concreto, transferido do Sporting da Covilhã para a Académica.

A primeira vez que fui ao futebol, ainda pela mão do Pai (devia ter onze anos), foi precisamente em Coimbra para assistir a um jogo entre a Académica e o Vitória de Setúbal. E lembro-me (nessa altura, todos lá em casa, excepto o Francisco que, por ser muito mais novo, tinha autorização para fazer coisas em que os outros nem pensavam, éramos - forçosamente - da Académica) de ter vibrado nesse célebre campeonato (1966/67 ou 1967/68) em que a Académica disputou o título e acabou em segundo lugar, a sua melhor classificação de sempre (Treinador: Mário Wilson).

Há sempre um reverso da medalha. Nesse ano (1966, 67 ou 68), no início da época, o Académica jogou contra o Vitória de Guimarães. Nós estávamos nas Caldas em casa do Avô. Ao intervalo, perdíamos por 2-0. O Pai começou a bufar e, num dos seus repentes, meteu-nos a todos no carro, um Ford Corina GT, verde-garrafa, e - ala! - partimos para a Foz do Arelho. Pois não é que, enquanto andávamos de lá para cá, dentro do carro, fartos, fartinhos, como quaisquer miúdos dentro dum automóvel em movimento, a Académica marca três golos e ganha o jogo? E não é que o Pai prometeu e decidiu que, sempre que a Académica jogasse em Coimbra, iríamos de passeata à Foz?

Não conseguiu manter a promessa. Não era suficientemente sádico para nos obrigar a passar as tardes de domingo enfiados no carro. Mas ele, passou-as. Quando se tratava da Académica, não tinha o juízo todo. Um pouco como o Francisco e o meu genro João com o Benfica... mas essa é outra história.

Já agora, e para se ver como as crianças gostam de andar de automóvel, lembro-me de, quando ainda fazia a viagem por estrada de Bruxelas a Lisboa, a Teresa e o Diogo começavam a perguntar "quando chegamos?" aí por volta de Waterloo - vinte quilómetros depois da partida, ou seja, mais ou menos 1% do percurso total de dois mil e duzentos.

A Trezzu entre os agro-betos

A minha filha Trezzu vai este fim-de-semana à feira da Golegã. De acordo com informações que li num artigo no "i" (a última vez que fui à Golegã em altura de feira deve datar de há mais de trinta e cinco anos e a memória já me falha), a feira da Golegã é, em primeiro lugar, a Feira Nacional do Cavalo. Mas atenção. Depois dos desfiles, exposições e palestras dedicadas ao nobre equídeo, e dos torneios de pólo, ou seja, quando chega o pôr-do-sol, tudo muda. Milhares de pessoas chegam à vila e começa a corrida ao abafadinho, o vinho licoroso tradicional da região. Fora do centro, há quem venda a sua produção caseira ao litro. Fartas bebedeiras!

A noite continua no Lagar, a principal discoteca lá do burgo. Na sexta, temos a "Festa do Chapéu"; no sábado, a festa "Be a Gentleman". Continua o regabofe! Começam os vómitos!

Os principais animadores da noite são os agro-betos. O "i" explica o conceito nestes termos: "Está a ver a equipa de râguebi de Agronomia? Forcados com quintas e três nomes? Tipos que antes de saberem andar de bicicleta já sabem montar a cavalo? Gente que domina o conceito de ensebar casacos? É disso que se trata".

Quando a festa acaba, vem a ressaca. E não há meio de fugir para Lisboa, para descansar entre os lençóis duma boa caminha. São cento e trinta quilómetros de carro e há uma brigada da GNR em cada rotunda. Isso é o que mais custa: passar a noite num molho de agro-betos a cair de bêbedos. Quase apetece não ir. Mas quem não vai é maricas. Claro!

Boa sorte, Teresa! Beba pouco...

(A maioria – a quase totalidade – das frases desta entrada foram transcritas do artigo do "i". Os meus parabéns ao autor, desconhecido, pela graça sem maldade do seu texto.)

O duplo do treinador do Sporting

A Rainha Vitória falava de si na primeira pessoa do plural. "We are not amused", costumava dizer. Era uma velha chata, pouco inteligente, teimosa e desagradável. Pudera! A aturar todas as cabeças coroadas da Europa de então que, de uma forma ou doutra, eram seus filhos, netos ou sobrinhos (os mais conhecidos, Willy, Nicky, respectivamente, eram o Imperador Guilherme II da Alemanha e o Czar Nicolau II da Rússia), que razões teria ela para andar contente? "We are not pleased".

Vem isto a propósito das declarações ouvidas esta manhã àquele que, com toda a probabilidade, será o novo treinador do Sporting, André Villas Boas. Villas Boas tem apenas 42 anos, é jovem e bem-parecido, e não tem ar de ser chato. Mas tem esta particularidade: fala de si na terceira pessoa. Diz coisas assim: "Espero que a Académica e o Sporting discutam a contratação do André Villas Boas". Como se estivesse a mencionar alguém conhecido, um amigo com quem se almoça ou se vai aos copos. Ficamos com a impressão de estarmos a olhar para um sósia.

Dizem que Mourinho faz a mesma coisa. É verdade que Villas Boas parece uma cópia a papel químico de Mourinho, de quem foi adjunto. Uma cópia declinada em tons de ruivo, com a mesma barba de três a quatro dias cuidadosamente aparada. Um verdadeiro Special Two. Esperemos, para bem do Sporting, que tenha o mesmo talento. Mas não há razão para esta mania de falar de si próprio como "o André".

Ponho-me a pensar. Será que deverei começar a falar deste blogue como o blogue do Zé Pedro Pessoa e Costa em vez de dizer banalmente "o meu blogue". A dizer: "Como vêem, a minha entrada de hoje no blogue do Zé Pedro diz respeito ao André Villas Boas", ou coisas do género? Será que isso me aumentaria o prestígio?

Ou será que ainda teremos saudades de Paulo Bento e da sua famosa frase: "Com naturalidade"?

terça-feira, 10 de novembro de 2009

Corrupção e Impunidade

O artigo do Director do "i", Martim Avillez de Figueiredo, na edição de sábado desse jornal, é importante porque afirma a existência de uma ligação clara entre a impunidade do poder e a solidariedade social. Esta é o resultado mais importante dum artigo reflectido, sereno, objectivo e implacável no seu diagnóstico e nas suas conclusões.

O principal problema de Portugal "não é a economia, estúpido!" É a justiça, que se atrasa, que hesita, que tropeça, que cai. É a justiça que deve constituir a prioridade, "a urgência", de qualquer governo. Pela razão simples de que a solução do problema da justiça em Portugal é essencial se quisermos assegurar a existência do sistema democrático.

Podiam acrescentar-se outras razões. Há muitos anos, fui ouvido num inquérito organizado por uma universidade americana, a pedido, creio, do Ministério da Economia, destinado a identificar os principais entraves à criação de empresas e, em particular, ao investimento directo estrangeiro no nosso país. Já nessa altura, identifiquei a lentidão da justiça, neste caso, a justiça cível e laboral, como o principal obstáculo à melhoria da situação nesse domínio. Não mudei de opinião.

Na justiça penal, o caso é mais grave. Trata-se de homens e mulheres acusados que factos que, por definição (por serem considerados crimes), violam os princípios elementares que devem reger a vida em sociedade. Não só esses homens e mulheres têm direito a não serem considerados suspeitos por mais do que o tempo estritamente necessário às necessidades da investigação – por exigências de justiça e protecção dos direitos fundamentais – como o corpo social, ou seja, todos nós, deve poder saber em tempo útil se as acusações se confirmam e, em caso afirmativo, que exigir que sejam tornadas públicas as penas aplicadas.

Mas na justiça cível, estes atrasos também têm consequências. Assim, durante muito tempo, em Portugal, era quase impossível para a maioria dos fornecedores conceder crédito aos seus clientes, a não ser em circunstâncias bem definidas ou a taxas de juro bastante elevadas (que, às vezes, se escondem por detrás dum aumento importante do preço de aquisição das mercadorias ou serviços fornecidos a crédito). Com efeito, a perspectiva de passar anos em tribunal para reaver o montante dos seus créditos desencorajaria a maioria. Mesmo que algumas das mais recentes alterações ao Código do Processo Civil tenham melhorado, senão corrigido, este estado de coisas, durante muito tempo ele foi um travão claro ao desenvolvimento das relações económicas entre empresas. O mesmo se diga do crédito e do mercado laboral. Uma justiça rápida é condição essencial do desenvolvimento económico. Há uma clara correlação positiva entre os países mais ricos e aqueles em que a justiça funciona, depressa e bem.

Nos casos de corrupção, de que fala particularmente Martim Avillez de Figueiredo, baseando-se nas obras de Ulrich Beck e Barbara Hudson, a situação é ainda mais grave. Com efeito, como diz, não podemos continuar indefinidamente a pedir sacrifícios a uma população que vive em condições extremamente difíceis se esta se convencer de que existem indivíduos ligados ao poder, esses mesmos indivíduos que decidem, ao mesmo tempo, os impostos que aquela paga e as prestações que recebe, mas que se comportam como uma quadrilha de malfeitores.

É claro que, em grande parte, estas razões também se aplicam às chamadas elites económicas – que se oferecem bónus escandalosos ao mesmo tempo que despedem trabalhadores. Mas é mais grave no caso das elites políticas porque o comportamento destas atinge os próprios fundamentos do contrato social. E, mesmo se não aceitarmos a ideia do contrato social, na sua formulação moderna, proposta por Rawls, e lhe preferirmos uma posição diferente, como, por exemplo a que nos propõe Amartya Sen, no seu recente livro, The Idea of Justice, que prefere considerar realizações em vez de regras e instituições, aplicando os métodos da social choice theory (simplificação extrema de um argumento muito complicado, que ainda não tenho a certeza de ter bem digerido), a conclusão de Martim de Figueiredo impõe-se seja qual for a concepção adoptada: é o sentimento de justiça da comunidade que é mortalmente ferido por situações daquela natureza.

É por isso que, para além de ineficiente porque impede uma utilização óptima dos recursos sociais, a corrupção é o dissolvente mais poderoso da unidade e solidariedade sociais (o mesmo podia dizer-se da desigualdade económica, pelo menos quando se ultrapassam certos patamares, mas não é disso que se trata agora).

Como já tinha dito numa entrada anterior neste blogue, seria bom que o Governo dedicasse algum tempo a estas preocupações. Porque, repetindo Martim de Figueiredo: "É a justiça, estúpido". Sócrates deveria ter cuidado. Vem aí uma nova direcção do PSD que bem poderia fazer deste e doutros casos idênticos a sua bandeira. Isso seria perigoso para o Governo e poderia abafar esta tentação de provocar novas eleições que parece animar o executivo; mas também supõe que o PSD conseguisse afirmar uma linha política coerente – ou, pelo menos, que as cabeças que por lá pudessem chegar a acordo sobre qualquer coisa que seja. O que não é certo nem sequer provável. É pena. Um país no estado em que se encontra Portugal precisa duma oposição forte e, sobretudo, credível. Até para evitar a repetição destas situações.

sábado, 7 de novembro de 2009

Paulo Bento e o Sporting

Paulo Bento nunca me impressionou como treinador e de há muito que considerava inevitável a sua demissão que chegou agora mas, tal como ele mesmo afirma, pelo menos com quatro meses de atraso.

Reconheço, contudo, que o seu gesto teve uma elegância rara nestas coisas do futebol, principalmente na medida em que Paulo Bento renunciou de livre vontade às remunerações que lhe seriam devidas até ao final do contrato cumprindo o que já tinha dito antes (mas que outros, nas mesmas circunstâncias, facilmente esqueceriam): que receberia o seu salário até ao preciso momento em que deixasse de treinar o Sporting – nem mais um dia!

E o mais elementar sentido de justiça obriga-me a acrescentar, em primeiro lugar, que Paulo Bento é um sportinguista de garra e coração; e, depois, que ele não é o único, nem sequer o principal, responsável pelo que se passa no clube e pelas enormes dificuldades da equipa neste início de época.

Mas já não lhe restavam desculpas nem já ninguém acreditava nas suas justificações. Parte porque não podia ficar mais tempo mas, pelo menos, parte pelo seu próprio pé.

PS. Já agora, está na altura do Sr. José Eduardo Bettencourt passar a apresentar-se e a falar em público como Presidente do Sporting e não como um menino mimado e vagamente imbecil que se limita a repetir as mesmas frases a todo o propósito ("Paulo Bento forever"; "Nunca teria coragem de demitir o Paulo Bento. Never"), dando, para além do mais, a desagradável impressão de que (só) está preocupado em que saibamos que conhece bem a língua inglesa. Para o caso de o Sr. Bettencourt as ter esquecido, aqui ficam as traduções, aliás bastante simples, das expressões inglesas que utilizou: Para sempre. Nunca.

Os 40 anos de Juliette Binoche

Numa entrevista transcrita pelo jornal "i", Juliettte Binoche afirma, a dado passo, que os quarenta anos são "muito difíceis". Custa-me desenganá-la e tenho pena de lhe meter mais medo mas quero preveni-la de que os cinquenta são ainda piores. Dos sessenta (e setenta e oitenta) não falo porque, felizmente, me falta algum tempo para lá chegar. Mas não tenho ilusões. A ideia de que "a vida começa aos quarenta" foi inventada, de certeza, por alguém que, por essa idade, começou a cair da tripeça e se quis agarrar a uma imaginária bóia de salvação. Coitado! Afogou-se.

Isto dito – basta olhar para a fotografia! – Juliette Binoche tem argumentos de sobra, todos bastante sólidos (a beleza, a inteligência), para passar descansada a sua pequena crise dos quarenta. Outras mulheres estão em muito piores situações e a maioria dos homens é nesta fase que começa a olhar para as garotas de Ipanema – e não como filhas brincando na praia!

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

O cronista Alberto Gonçalves e o casamento dos homossexuais

Agora que José Manuel Fernandes deixou a direcção do Público, privando-me do prazer de comentar alguns dos seus editoriais mais polémicos, será que lhe encontrei substituto em Alberto Gonçalves, sociólogo (ao que parece, amigo de Filomena Mónica, que lhe prodiga conselhos), cronista no Diário de Notícias? O seu último artigo, sob o título Os Casamenteiros, publicado a 26 de Outubro, dá-me fartas razões de esperança.

Alberto Gonçalves considera que a prioridade dada pelo Governo ao reconhecimento do casamento homossexual é um disparate. Está no seu direito – embora apeteça dizer que não deve ser grande disparate para os mais interessados, ou seja, os homossexuais. Onde a porca torce o rabo é quando se consideram os seus argumentos.

Diz então o conceituado sociólogo que, se é verdade que parece absurdo que alguém pretenda condicionar a "felicidade" de sujeitos "que se amam" e aspiram a consagrar esse "amor" na instituição matrimonial (aspas suas não minhas), não o é menos que uma tal situação «é também uma maçada recorrente no mundo real». Ou seja, os direitos dos cidadãos são estabelecidos pela lei e «a lei não anda, ou não deveria andar, longe de um relativo "consenso" acerca do seu objecto». (O que quer isto dizer? Akguém pode explicar-me o que significa concretamente esta frase?) E continua com esta pérola: «É por isso que, independentemente dos respectivos sexos, três (ou quatro, ou quinze) criaturas adultas e livres não conseguem casar mutuamente: porque a sociedade condena a poligamia e a lei determina em conformidade. A censura social, ou os "costumes", fundamenta igualmente a interdição penal do incesto, bem como obsta à pedofilia, aos pactos de suicídio e a inúmeras actividades que inúmeros indivíduos apreciam exercer e, por culpa de terceiros, legalmente não podem».

Não contente com isto, que já não é pouco, Alberto Gonçalves insiste em tornar a sua posição absolutamente clara. E, assim, para mal dos nossos ou seus pecados, continua: «Sei que as comparações não são inéditas e que os activistas gay se indignam imenso com elas. De acordo com o cliché, não é sério equiparar a homossexualidade ao incesto. Pergunto: porquê?»

A mim, a diferença parece-me simples, até mesmo de uma "cristalina simplicidade", como dizia alguém que conheci, de quem não gostava e que era jurista como eu (só os juristas usam estes termos). Ser homossexual não é uma escolha mas uma orientação da personalidade de certos indivíduos, no mais iguais a todos os outros, que preferem, emocional e sexualmente, desenvolver relações com pessoas do mesmo sexo. Ser homossexual faz parte da identidade sexual de cada um. O incesto é, pelo contrário, um acto relativamente ao qual há margem de escolha; ou seja, de que, num sentido ético, as pessoas podem abster-se. Há nele um momento de liberdade – e consequente responsabilidade – que não existe, nem tem que existir, no facto de alguém ser homossexual ou heterossexual.

A diferença é comprovada, se necessário, por este facto elementar: admitirmos casamentos entre pessoas do mesmo sexo não significa que aceitemos que dois irmãos ou duas irmãs se possam casar entre si. Aceitarmos o casamento homossexual não significa que aceitemos que um homossexual se possa casar com três ou quatro pessoas.

Por outro lado, a proibição da pedofilia assenta na evidência de que uma das partes nessa relação impõe a outra, que, em razão da sua menor idade, se apresenta indefesa, um dado comportamento que se traduz em prejuízos imensos para a criança ou adolescente que o sofre e fere a nossa sensibilidade e sentido de justiça. Mesmo que viesse alguém dizer que a atracção pedófila também faria parte da identidade sexual, nem mesmo assim a pedofilia poderia ser admitida porque atenta contra a dignidade e os direitos de outrém. O que não é, evidentemente, o caso dos homossexuais (ou heterossexuais) que desenvolvem relações com pessoas maiores ou equiparadas que nelas consentem. Para além do mais, não há razão nenhuma que permita ligar a pedofilia à homossexualidade: nem sequer razões estatísticas.

Quanto aos pactos de suicídio, eles não são para aqui chamados, nem de perto nem de longe.

Já agora, suponha-se, por absurdo, que alguém aparecia por aí a proibir o casamento entre heterossexuais. Utilizaria Alberto Gonçalves os mesmos exemplos para se opor a uma tal medida? Obviamente que não. Bastar-lhe-ia dizer que os heterossexuais teriam direito à "felicidade" e aspirariam a consagrar "o seu amor" através do casamento. E decerto não concordaria com alguém que lhe chamasse a atenção para o facto de essas e outras proibições serem "uma maçada recorrente no mundo real".

Pior ainda é que a argumentação de Alberto Gonçalves roça a indecência. Porque ele bem sabe – ou então é brincadeira pretender que é sociólogo – que tratar da mesma forma a homossexualidade e os outros comportamentos que se refere, a que está associada, seja por que razão for (mas, pelo menos no caso da pedofilia, com toda a razão), uma valoração social negativa, é uma forma clara de fazer equivaler algo que é perfeitamente normal a acções vergonhosas e, por esta via, fazer transbordar sobre os homossexuais uma tal indignidade. Se não fosse isto, os seus argumentos seriam sobretudo risíveis ou meramente estúpidos.

Quanto a mim, estou moderadamente contente. Excepto nos seus piores momentos, quando a ideologia lhe toldava o espírito (como, por exemplo, contestou a nomeação de uma mulher grávida para Ministra da Defesa espanhola, com o argumento de se tratar de mera manobra de propaganda), era agradável contestar as opiniões de José Manuel Fernandes. Quase nunca concordava com ele, irritava-me aquela sua mania de ter (uma certa) resposta para tudo e considerava-o perigosamente parcial para um jornalista; mas reconhecia-lhe a qualidade da inteligência. Não tenho a certeza de que o mesmo aconteça com este novo candidato ao título pouco invejável de pessoa mais comentada no meu blogue.

quinta-feira, 5 de novembro de 2009

Face Oculta

Armando Vara rendeu-se ao inevitável e pediu a suspensão do seu mandato como administrador executivo do BCP. Com efeito, seria, pelo menos, irónico que um homem acusado de corrupção ou aceitação de subsídio ilegal pudesse continuar a fazer parte dos corpos gerentes de uma instituição de crédito. Desde o início deste processo que me pareceu que o Banco de Portugal interviria. Armando Vara, que, ao que parece e, se é verdade, para sua honra, terá comunicados aos seus colegas da administração do banco a sua intenção de se demitir imediatamente após a sua constituição como arguido no processo Face Oculta (quem inventa estes nomes?), facilitou a vida de toda a gente com esta sua decisão. Por outro lado, compreendo que peça a suspensão do mandato em vez da demissão. Com efeito, ele é arguido, não culpado. A presunção de inocência aplica-se a ele como a qualquer outra pessoa. O único problema é que, com os atrasos e demoras na administração da justiça em Portugal, esta situação corre o risco de se manter por longo tempo e não se sabe se o banco aceitará continuar a ser dirigido apenas pelos seis administradores restantes (para além de que, sendo em número par, pode acontecer que aumentem as situações em que o Presidente, Carlos Santos Ferreira, se verá obrigado a usar do seu voto de qualidade para desempatar os votos do conselho e permitir a tomada de decisões – o que não é particularmente saudável).

Goste-se ou não de Armando Vara (e eu, nem por isso!), a verdade é que ele tem um notável percurso bancário e a maioria dos que com ele trabalharam tem boa ou muito boa opinião a seu respeito. A sua situação, neste momento, e tendo em conta a forma como actua a justiça em Portugal, não é invejável. Mesmo que inocente – e nada diz que não o seja – está de antemão condenado a um processo longo depois do qual, e mesmo que seja absolvido, haverá infelizmente quem venha dizer que só o conseguiu por tráfico de influências. Se for culpado, era bom, para todos nós, que essa culpa fosse demonstrada sem sombra de dúvida e com celeridade. O que, evidentemente, não vai acontecer.

Resta-me acrescentar que a decisão de Armando Vara torna (ainda mais) insustentável a posição de José Penedos, Presidente da REN (Redes Energéticas Nacionais), e Paiva Nunes (Administrador da EDP Imobiliária), outro dos arguidos, que não adoptaram a mesma atitude e pretendem teimosamente manter-se nos seus cargos. Quanto ao primeiro, a fruta cairá de madura porque o seu mandato chega ao fim dentro de um mês e não é previsível, por muito bom que tenha sido o seu desempenho, que o Governo proponha a sua recondução. Não sei o que acontecerá a Paiva Nunes mas suponho que, mais tarde ou mais cedo, também ele se verá obrigado a pedir a demissão ou a suspender o mandato. Percebo o dilema de ambos: consideram-se inocentes e sabem que o processo se arrastará.

Nisto, bem podíamos olhar para os Estados Unidos. Lá, estas coisas resolvem-se a tempo e horas. Cá não! O novo Governo e, principalmente, o novo Ministro da Justiça, bem podia dedicar algumas horas a reflectir sobre estas questões.

terça-feira, 3 de novembro de 2009

Claude Lévi-Strauss (21 de Novembro de 1908 - 1 de Novembro de 2009)

Quem sou eu para acrescentar o que quer que seja ao coro de elogios e homenagens que se seguiu ao anúncio da morte de Claude Lévi-Strauss, na noite de sábado para domingo, depois de uma vida que durou mais do que um século? Pouco posso dizer sobre o estruturalismo, de que ele foi um dos principais, digamos, mensageiros, método que informou a maioria dos seus escritos teóricos. Mais qualquer coisa sobre o seu célebre livro Tristes Trópicos, que me encantou quando lhe peguei pela primeira vez, teria pouco mais de vinte anos, numa edição que, se não estou em erro, era das Edições 70. Um livro de viagem, a viagem mesmo, um romance, uma crónica? Mais isso, certamente, do que um simples livro de antropologia. Uma obra que nos convida a reflectir sobre a análise das relações entre o mundo antigo e o mundo moderno, sobre o lugar do homem na natureza, o sentido da civilização e do progresso.

Mas foi, antes disso, um rapaz de dezassete anos, totalmente incapaz de compreender métodos sociológicos ou antropológicos (funcionalismo, estruturalismo, etc.), e quase ainda gago diante doutros termos que depois vieram a fazer parte da sua vida (marxismo, capitalismo, fascismo, liberalismo), que se encantou com o conjunto de informações encontrado nas Estruturas Elementares do Parentesco e que se espantou diante da importância dada, nas sociedades então chamadas selvagens (termo que Lévi-Strauss contribuiu para afastar do vocabulário antropológico), ao irmão da mãe, que desempenhava o papel de verdadeiro chefe da família. Tudo isso me parecia, então, semelhante a um conto de fadas e me abriu os olhos para os diferentes tons das cores do mundo. Esta foi uma lição que nunca esqueci e que, ainda hoje, principalmente hoje, me serve de armadura contra todos aqueles que cantam os louvores de uma única civilização ou cultura (que é - será necessário dizê-lo? - sempre a sua própria), e lutam e matam para afirmar a sua superioridade face a todas as outras.

Assim, se nada do eu disser pode acrescentar uma mesmo que muito pequena parcela à glória de Lévi-Strauss, fica, pelo menos, a recordação comovida desse miúdo que aspirava a crescer. E de um homem de génio, um mestre, que, de longe, através de um grande livro, o ajudou um pouco nesse caminho da vida.