Albert Camus morreu a 4 de Janeiro de 1960 num brutal desastre de automóvel. A sua morte foi recebida com um sentimento ambíguo. Embora todos reconhecessem as suas qualidades humanas, Camus era, por essa altura, geralmente considerado como um filósofo falhado e um escritor cansado.
L'homme révolté, publicado em 1951, tinha-lhe atraído as fúrias de Sartre, que o demoliu, deixando-lhe, para sempre, um amargo sentimento de insuficiência. No elogio fúnebre que mais tarde lhe dedicou, publicado na revista
France Observateur, ascendente em linha recta e em primeiro grau do
Nouvel Observateur, Sartre fez marcha atrás; mas apenas em relação ao homem, não ao filósofo. Camus representava, disse o grande ordenador da inteligência gaulesa, a herança moderna «daquela longa lista de moralistas» cuja obra constitui o que há de mais valioso na literatura francesa. Mas a verdade era que, na altura da sua morte ou mesmo três anos antes, quando recebeu o Prémio Nobel de Literatura, essa mesma "inteligência" considerava Camus como um filósofo de somenos, uma personalidade sujeita a "esclerose prematura" e, sobretudo, como um traidor por causa das suas posições obre a Guerra da Argélia.
A posição moderada de Camus relativamente ao conflito argelino explicava-se pelas suas origens. Nascido e criado na Argélia Francesa, de família imigrante e pobre, órfão de um pai que apenas conheceu a França para nela morrer na Grande Guerra, Camus estava sempre pronto a deixar Paris para, com um sentimento de inacreditável plenitude e indisfarçável júbilo, se imbuir do, do sol, do mar e do espaço africanos. Opondo conscientemente o carácter fechado e opressivo dos salões metropolitanos ao movimento de luz, liberdade e sensualidade das paisagens argelinas, Camus demonstrava que não fazia parte dessa intelectualidade vagamente pretensiosa que tanto agrada aos franceses. Na sua célebre frase, «entre la justice et ma mère, je préfère ma mère», e embora, como é normal nestes casos, a frase não seja absolutamente exacta e, sobretudo, não reflicta toda a complexidade do seu pensamento, Camus tentou exprimir também este sentimento de inadaptação relativamente ao mundo literário em que tinha penetrado depois de ter conseguido uma bolsa para prosseguir os seus estudos secundários, arrancado a ferros da sua família pela força de vontade do seu professor da escola primária, Louis Germain, a quem dedicou o seu discurso de aceitação do Prémio Nobel. Porque Camus era, também um puro produto da III República Francesa, duma sociedade em que era possível, mesmo para os mais pobres (e o tema da pobreza, da nua, crua, pobreza que, como ele dizia, conduz à ausência de memória, de passado e de História, porque os pobres se preocupam essencialmente com a sobrevivência no quotidiano, surge como um persistente pano de fundo em toda a sua obra), através dum extraordinário sistema de bolsas, escapar, através da educação, aos constrangimentos impostos pelo nascimento. (Embora muitas vezes pagassem um preço alto por isso...)
Note-se que Camus não era um simples colonialista, um defensor impenitente da presença francesa na Argélia. Já na década de trinta, muito antes de os espíritos bem-pensantes de Paris se preocuparem com o problema argelino, Camus explicava «
qu'une grande, une éclatante réparation doit être faite (...) au people Arabe». Simplesmente, considerava que essa reparação era devida «
par la France toute entière et non avec le sang des Français d'Algérie». Contudo, no final dos anos cinquenta, esta procura de um compromisso liberal (Tony Judt) tornou-se irrelevante. Camus murou-se no interior do seu silêncio. Estava sobretudo cansado. Não queria ser o porta-estandarte de ninguém, o guia de pessoa nenhuma: «
Je ne sais pas, ou je sais mal, où je vais».
Como a situação é diferente, hoje! Quase todos se reclamam de Camus, à esquerda, à direita, ao centro, escritores, filósofos, intelectuais, artistas, políticos. Muito se deve ao reconhecimento das suas incontestáveis qualidades humanas (Hannah Arendt dizia que ele era «o melhor homem de França») mas mesmo este reconhecimento necessita explicação. Pode ser que seja apenas uma consequência do olhar crítico que lançamos sobre a arrogância, a mesquinhez e a ganância da nossa própria época. Uma personalidade como Camus, de origem modesta e pudor instintivo (nas palavras do seu professor primário), homem bom e decente, patentemente honesto, «a mais nobre testemunha duma época particularmente ignóbil» (Pierre de Boisdeffre), tem muito para nos atrair. Mas penso que as razões deste continuado interesse por Camus – que vem já da primeira metade da última década do século passado, altura em que foi publicada a sua obra póstuma e incompleta,
Le premier homme – são mais complexas. Têm a ver directamente com as posições que Camus sempre defendeu. Estranhamente, mas sem surpresa, as razões por que voltamos a Camus têm muito a ver com as razões da sua rejeição nos anos sessenta e setenta.
Em primeiro lugar, está a sua recusa inapelável da violência. «
Il y a des moyens qui ne s'excusent pas». Este absolutismo de intenção toca-nos hoje profundamente porque pertencemos a uma geração que viu e percebeu, como a de Camus tinha visto mas só entendido em parte (escapava-lhe a União Soviética, a China, mais tarde Cuba, o Vietname e o Cambodja) a que inferno nos levam mesmo as boas intenções se não houver cuidado na escolha dos métodos. Para além disso, um tempo que, como o nosso, discute indecentemente a legalidade ou ilegalidade da tortura deve encontrar algum conforto nesta clara linha de demarcação entre o bem e o mal.
Em segundo lugar, está a liberdade, a sensualidade, a poderosa atracção física e sexual que se liberta dos seus livros. (Esta é, sobretudo, uma característica de Camus enquanto escritor). Em cada página dos seus romances somos confrontados com um apelo mágico a formas, cheiros, imagens, sons, à beleza, ao sexo. Não consigo compreender como há idiotas (Pierre Bergé, o antigo amante de Yves St-Laurent) que dizem que Camus é "
un écrivain pour instituteurs". É claro que algumas das suas obras têm um cunho didáctico -
La peste ou
La chute (de que gosto menos) são exemplos. Porém, mesmo nestes livros, as personagens estão vivas, as paisagens movem-se, as sensações inundam o leitor. Camus é, nesta perspectiva, um escritor decididamente moderno.
E, depois, há a tragédia duma existência ceifada, uma vida brilhante que um acidente transforma em destino (Bernard Fauconnier). Como todos os que morrem jovens (os que os Deuses amam), a nossa memória de Camus é, para sempre, a do homem ainda novo com o cigarro ao canto da boca, a face dos seus quarenta e seis anos, com a inerente promessa de um futuro incumprido, a aventura incomparável duma existência que não sofreu nem os compromissos da maturidade tardia, nem a indignidade da velhice.
Para mim, que mergulhei fascinado no
L'homme revolté, e que nunca, mesmo quando era jovem, me desviei da sua mensagem principal de recusa de qualquer violência, para mim que sempre defendi, com unhas e dentes, a ideia de que os fins nunca justificam os meios, afastando-me tantas vezes dos meus amigos mais à esquerda ou (bastante) mais à direita, para mim que devorei
L'étranger e quase aprendi
La peste de cor, este retorno a Camus é consolador. A vingança duma História que se reconhece nos seus homens bons e dignos. A afirmação dum pensamento que recusava a violência e a imposição, baseado na modéstia conferida por uma enorme inteligência mas também pela abnegação e atenção aos outros.
Não me importa nada saber se o seu corpo repousará no Panteão como, ao que parece, pretende Nicolas Sarkozy. (Parece que não porque uma parte da família se opõe). Mas gostaria que a sua lição persistisse entre nós, nesta espécie de Panteão espiritual definido pela comunidade do saber e da cultura de que, à minha medida, gosto de pensar que faço parte.