quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Dormi!!!

Dormi! Finalmente. Não sei se de exaustão se por qualquer outra razão mas não me interessa. Dormi!

Quatro horas a partir da meia-noite e, depois, aqui em baixo, na sala, entre dormir e dormitar, outras quatro horas. Dormir assim já não me acontecia há mais de um mês. Quase me parece que dormi demais! Sinto-me outro.

Estou tanto mais satisfeito quanto ontem tinha decidido tentar romper este círculo vicioso em que me deixara enredar, de noites brancas seguidas de aumento dos comprimidos. Assim, na segunda-feira já tinha renunciado ao Xanax e esta noite voltei à dose inicial, já pesada, de dois miligramas de Loramet em vez dos três que tomei desde sexta-feira.

Não sei o que acontecerá logo mas a cada dia sua pena ou sua alegria. De qualquer maneira, esta noite bem dormida permite-me recuperar forças para o que der e vier e encarar as coisas com optimismo.

Estou muito contente. E descansado.

quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Documentário: a cisão da Universidade de Leuven em 1968

Ontem, na RTBF (Canal 1), um documentário sobre a cisão, em 1968, da Universidade Católica de Leuven, a expulsão dos estudantes francófonos e a instalação das secções francesas em Louvain-la-Neuve, uma cidade construída do nada. Em 1962, tinham sido criadas em Leuven duas secções, flamenga e francófona, com separação dos cursos e alunos e uma estrutura de direcção comum presidida por um flamengo e um valão mas isso não impediu que a contestação na Flandres continuasse e o processo culminou em 1968, com a clara posição de apoio às reivindicações nacionalistas do episcopado flamengo (o arcebispo de Bruges chegou a dizer, no que se assemelha quase a uma blasfémia, que era flamengo antes de ser católico) e, conduzindo inevitavelmente à queda do governo de Paul Venden Boyenants, Presidente do Partido Social Cristão unitário, a cisão deste partido em dois partidos de base linguística: PSC e do CVP. Por seu lado, a construção de Louvain-la-Neuve só foi completada em 1977 embora a Universidade tenha começado a funcionar, se bem que em condições precárias, a partir de 1971. Estranho tempo em que o espólio de Leuven foi partilhado com espírito de merceeiros: um serviço de china para aqui, um lote de livros acolá. Separaram-se colecções e, para o resíduo dos livros deixados após a partilha, aliás, a divisão fez-se por números de catálogo: par para uma das novas universidades e ímpar para a outra.

Um documentário bastante bem feito e muito oportuno nestes momentos em que a Bélgica se debate novamente com uma crise comunitária grave. A criação das duas universidades e a cisão no Partido Social Cristão foram os primeiros passos na comunitarização do país, que continuou a progredir até aos nossos dias e até à constituição do Estado federal e, quiçá, do fim do país tal como o conhecemos. Não há quaisquer sinais de que a tendência se inverta e hoje fala-se abertamente da constituição de dois Estados independentes. Dá a impressão que, se houvesse solução para Bruxelas, isso já teria acontecido.

Boletim médico. Noite branca.

Mais problemas de sono com as insónias, desta vez, a começarem cedo – e a não acabarem! Normalmente, deito-me e consigo dormir duas ou três horas. Hoje, nem sequer adormeci. Nem à uma, nem às duas... nem às cinco, nem às oito. Noite branca. Retrocesso. Alguma angústia por causa disto. Mas quero evitar mais soníferos ou ansiolíticos porque já tomo carradas e sem resultados aparentes.

Quanto ao resto, alguma tosse mas muito suportável. Raras náuseas que penso estarem relacionadas mais com esta tosse do que com os efeitos da quimioterapia. Nenhumas dores, respiração confortável. Cansaço quanto baste: não muito; apenas me canso quando falo demais, o que, agora, acontece pouco. Espírito algo embotado por causa da falta de "sono reparador". Ainda assim, leitura dos jornais e de alguns livros, mas sem grande capacidade de concentração (por isso salto de um livro a outro). Espírito e moral: bom, boa. Optimismo porque, fora as insónias, me sinto bem.

Tinha medo que o cancro ocupasse todo meu espaço. Parece que as insónias se ocupam disso. Este blogue é a prova, com prejuízo na variedade e qualidade. Com excepções, carácter matter of fact das últimas entradas. Reflexão: precisa-se.

Respondo às minhas mensagens de correio electrónico e – claro! – mantenho o blogue, mesmo se apenas com estas notícias breves.

O dia amanheceu feio e frio. Como diziam os os covilhanenses a propósito da Guarda? Feia, forte, farta e fria? Aqui, falta o "farta" (et encore) e o "forte" (que nunca entendi) mas, se juntarmos as nuvens e a chuva, o resto condiz.

terça-feira, 28 de setembro de 2010

Consulta de cardiologia

Hoje de manhã fui a Saint Luc para uma consulta com a cardiologista que libertou a minha artéria na altura do enfarto. A médica era gelada. Nem sequer me estendeu a mão mas eu, que já me tinha apercebido destas maneiras originais quando vi entrar o doente antes de mim, fiz exactamente o mesmo. Entendemo-nos perfeitamente.

Mas – é o que importa – as notícias foram óptimas. De um ponto de vista cardio-vascular, o enfarto quase não ocorreu, não tendo deixado praticamente sinais visíveis para além duma levíssima necrose. Do coração, posso dizer que estou curado. Resta... o resto. Mas saber que o coração não é coisa com que me preocupar (para além das cautelas normais, com a dieta, exercício, etc.) precisamente liberta-me energias para esse resto.

À saída, mesma pantomina de parte e doutra: Bonjour Monsieur; Bonjour Madame. No shaking hands, no touching.

O tempo está horrível. Que frio! Não sei se é por ter emagrecido tanto mas adormeço e acordo gelado.

Dormi menos bem que ontem, melhor que anteontem. Principalmente porque tossi mais esta noite. Mas parece-me que, também aqui, estou no bom caminho.

Alguns dados sobre a insónia em pacientes com cancro

Há uma parte de mim que é irredutivelmente racional. Estando às voltas com esta questão das insónias, tratei de me informar melhor.

Há, segundo vários estudos apanhados aqui e ali na Internet, uma relação evidente entre a insónia e cancro. Ou seja, a insónia é um problema comum para os paciente com cancro com níveis de incidência de 30 a 50% neste grupo comparados com 15% na população em geral. (E esta relação aumenta nos pacientes que recorrem à quimioterapia). Para além disso, encontraram-se ainda sintomas de insónia em 23 a 44% dos pacientes 2 a 5 anos depois do tratamento. Uma conclusão destes estudos é que a insónia é um problema geralmente negligenciado pela população afectada por cancro, problema que mereceria maior pesquisa e investigação e, eventualmente, tratamentos mais eficazes dirigidos a este público.

Negligenciado porquê? Porque o tratamento do cancro em si mesmo aparece como prioritário; porque a insónia é vista como uma reacção normal ao diagnóstico e tratamento do cancro; e porque muitos médicos não se sentem qualificados para diagnosticar ou tratar o problema da insónia relacionada com o cancro. Assim, certos estudos apontam que apenas 16 % dos pacientes cancerosos com insónia alertaram os seus oncologistas para o problema da insónia e muitos médicos não levantam o problema da quantidade/qualidade de sono nos seus doentes.

Em princípio, os tratamentos normalmente utilizados no tratamento da insónia em pacientes saudáveis são também eficazes nos pacientes com cancro e os cuidados habituais relativos à utilização de hipnóticos e soníferos devem também ser tidos em conta nestas situações. Um aspecto que pode estar a influenciar negativamente a minha reacção actual é o facto de eu ter começado o tratamento contra a insónia muito antes (3 a 4 meses) de me ter sido diagnosticado o cancro. Quer dizer que a eficácia dos medicamentos é, no meu caso, muito menor, sendo necessárias doses mais elevadas para obter resultados. Mas estes aumentos não podem ser ilimitados, até porque os efeitos secundários desta medicação são muitos e potencialmente perigosos.

Há alternativas – e é sobre essas que tenho que me concentrar. Por exemplo, as terapias cognitivas e comportamentais parecem ter resultados eficazes. Exemplos de coisas simples que podem trazer benefícios inesperados são: não beber bebidas com cafeína ou parecidas, ou bebidas alcoólicas, antes de nos deitarmos; não dormir demasiado mas apenas aquilo que é necessário (se bem que este separar de águas seja difícil de determinar em plena crise de insónia); adormecer e acordar a horas fixas; e, em geral, e de forma mais jocosa, utilizar a cama exclusivamente para o sono e o sexo e não para outras actividades como ler ou ver televisão.

Para mim, estes estudos ajudaram-me e de certa forma sossegaram-me na medida em que situam o problema e não me tornam parte da excepção mas parte da regra e porque acredito o conjunto de técnicas sugeridas pode ajudar-me a reduzir a dependência dos medicamentos.

A ver vamos.

segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Lagrimita

O Dico volta hoje para a Suíça. Acabou mesmo agora de sair de casa com a Mãe para o aeroporto. Gostei de o ver e de o ter por cá com o rodopio de idas e vindas que animaram a casa nestes dois a três dias. Tenho a impressão de que cresceu um pouco nas quatro semanas que passaram desde o início do curso. Mesmo se há aspectos do colégio, nomeadamente o regime de internato com esta inevitável separação dos amigos de sempre, que lhe causam alguma natural contrariedade (é preciso não esquecer que o Dico era o centro de um grupo extremamente variado e, de certa forma, o traço de união entre amigos vindos de vários colégios e quadrantes diferentes que nunca se reduziram aos seus colegas da Escola Europeia, e cujo quartel-general, como diziam, se situava no primeiro andar da nossa casa), não me parece que o seu empenho e a sua determinação estejam a vacilar. Amadureceu. Está a aprender a viver sozinho – com as dificuldades de adaptação que isso acarreta mas também com aquela confiança que nele se revela sempre de forma discreta. Para além do mais, e embora muitas provas e exames aconteçam antes disso, está ansioso pelo momento em que mergulhará na fase dos estágios – nessa primeira experiência de contacto com a realidade e os aspectos práticos da vida fora da escola, nomeadamente de um trabalho quotidiano regular e independente. Está a preparar-se cuidadosamente para a escolha dos melhores hotéis de Genève, sabendo que nem tudo depende dele ou do seu trabalho.

A forma como fala da sua experiência recente conforta-me. Tem um olhar lúcido sobre o que o espera – os pontos positivos e negativos da sua nova realidade. Tem principalmente a noção de que o sucesso no curso está ao seu alcance, com trabalho, seriedade, sentido de organização, atenção aos detalhes e cuidado nas relações com os professores e colegas. Ao mesmo tempo, não o abandonou uma saudável dose de ironia, que lhe facilita a adaptação a este ambiente em que as principais dificuldades são as de superar a solidão inicial. Basta vê-lo a descrever os diversos passos da sua aprendizagem dos aspectos práticos do food & beveradge. Saio deste fim-de-semana muito contente e confiante.

Boa sorte Diquinho. Deste lado, o Pai está a torcer por si com todas as forças. E até breve.

domingo, 26 de setembro de 2010

Domingo em Bruxelas

Tempo chuvoso, cinzento, feio (talvez gravar esta frase para a repetir facilmente, em cut & paste). Parece que a chuva vai por aqui ficar e os dias continuarão certamente escuros. Típico dia de domingo, caseiro, aborrecido, frio.

Continuo a não dormir bem mas estou menos ansioso e as insónias suportam-se melhor. Vou ler, espreguiçar-me no sofá, ouvir música. Já passeei a Kiddie. Que programa!

Pelo menos, os amigos do Dico andam por aí e e vê-se gente nova e ouve-se barulho, nas escadas, nos quartos. Disto, sinto a falta. Mas sentiria mesmo que não estivesse doente.

sábado, 25 de setembro de 2010

Dico em casa: Retorno a uma certa forma de normalidade

Dico cá em casa, a dormir às oito e meia da manhã. Parece que a esta casa regressou uma certa normalidade. Ontem, quando chegou, mostrou-me o livro de instruções da SHMS para o serviço à mesa. Pôr a mesa é complicado. Há regras para a forma de colocar as toalhas, os talheres, os pratos, os copos... Distâncias: 1 cm entre pratos e talheres, 1 cm entre pratos e copos, 1 cm entre talheres e guardanapos. Movimentos: clockwise; anticlockwise. Também servir à mesa como ali se impõe não será tarefa fácil. Forma de sentar e servir homens e mulheres (as mulheres sempre primeiro). Movimentos codificados e precisos. Eye contact quando dois criados levantam as cloches que cobrem os pratos quentes para que o movimento seja simultâneo... E milhares doutras coisas que pensamos que sabemos mas que nos surgem de forma precisa, normalizada e detalhada. Ou seja, de forma diferente.

Tosse, dores de garganta, algumas insónias ainda. Mas menos cansado e melhor posição. Também aqui gostava de entrar na normalidade e de beneficiar do tempo que acordou limpo mas que se vai estragar com o correr do dia. Dia de azáfama entre o Diogo e a Mãe: compras para encher a mala que veio vazia. Dia de leitura para mim mas, se possível, aproveitar uma boleia para passar numa livraria.

Técnicas de imagem médica

Nos últimos tempos, tenho pensado bastante em como progrediram os meios de imagem médica que facilitam o diagnóstico de doenças até agora quase impossíveis de detectar com probabilidade razoável.

Quando tive a pericardite e efectuei a ecocardiografia de controlo que me permitiu sair dos cuidados intensivos e voltar para o quarto, deparei-me de chofre com essa nova realidade. Perguntei o meu médico como se faziam as coisas "dantes". A resposta foi que através de injecções em vários pontos do tórax, comparando as pressões. O Carlos acrescentou que, em última análise, se podia iniciar o tratamento por motivos preventivos. Se houvesse líquido a envolver o coração, ele seria expulso. Senão (ele não disse mas eu imagino), que sorte! Ou que azar, se o diagnóstico fosse afinal outro mais grave.

Tanto bastou para ter a ideia de como evoluíram as coisas. O meu enfarte, no início de Agosto, foi debelado de forma rápida através de uma coronarografia, que permite visualizar as artérias coronária para estabelecer diagnósticos ou com objectivos interventivos ou curativos. Antes do desenvolvimento desta técnica, os médicos estavam à mercê da descrição dos sintomas pelo doente e dos electrocardiogramas. Não era uma situação impossível mas seguramente menos precisa. Não permitiria certamente determinar com exactidão o ponto em que se encontrava a interrupção do fluxo sanguíneo e a destruição quase imediata do obstáculo que impedia a circulação sanguínea. No meu caso, foi obra de menos de meia-hora.

Durante as minhas várias permanências no hospital, e já antes, fiz várias ecografias (à próstata, à tiróide, ao coração), alguns scanners (tórax, abdómen, pescoço) e uma ressonância magnética à cabeça (o truque que funciona comigo é não abrir os olhos e pensar que estou a dormir durante o tempo do teste). Os resultados chegam praticamente em tempo real e o diagnóstico encontra-se extremamente facilitado.

Como diz o Carlos, há o perigo de os médicos passarem a funcionar como meros distribuidores de imagens e de abdicarem do seu papel de iniciativa e de controlo. A imagem médica deve ser um auxiliar do diagnóstico e do tratamento – e não o próprio diagnóstico ou o tratamento. A experiência do médico, aos seus conhecimentos, a sua intuição baseada na experiência, são factores indispensáveis – e mal vão as coisas se os médicos o esquecerem como acontece na primeiras fases de utilização de novas tecnologias, em que tudo se resume a premir, com maior ou menor sucesso, algumas teclas de computadores. Mas não utilizar as novas técnicas porque alguns médicos as utilizam mal seria como deitar fora o bebé juntamente com a água do banho.

A situação é semelhante à de alguns generalistas que se limitam a passar os doentes de especialista em especialista, com o objectivo de alijarem responsabilidades ou de aliviarem o seu esforço. Pode perder-se muito tempo nesta busca, tempo que seria útil para avançar no diagnóstico e tratamento.

Como exemplo, este episódio pessoal. Quando os sintomas da pericardite se tornaram evidentes, telefonei ao meu médico assistente para marcar uma consulta de urgência. Pareceu-me que seria importante que ele me auscultasse e desse a sua opinião sobre o meu extremo cansaço, as dificuldades de respiração, o arfar permanente. Nem me viu. Aconselhou-me por telefone a passar pelo hospital para efectuar uma radiografia do tórax e uma análise de sangue, que revelou uma enorme anemia, tratada com transfusão. E ficámos por ali, embora me pareça que, se me tivesse verdadeiramente examinado em vez de ditar instruções, teria compreendido que qualquer coisa de grave se passava. Mas, na verdade, ele nunca me auscultou, nunca me palpou, nunca, de forma alguma, me tocou. Trata-se, entre nós dois de uma espécie de medicina à distância e distributiva de cuidados especialistas.

É por isso que vou mudar de médico.

sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Dico chega

Dico chega esta noite. Vem com fome porque disse que queria jantar em casa. (Bife com natas ou lasagna são as alternativas). Depois, é certo que desaparece. Ainda por cima a Mimi está cá.

Estou com saudades e espero aproveitar uma hora ou duas, hoje ou noutra altura, para ele me dizer como se passam as coisas em Leysin. (Com ele, é quase preciso marcação). Sei que anteontem esteve a servir na discoteca e que, já amanhã, devia levantar-se à cinco da madrugada e fazer o serviço de pequeno-almoço. Safou-se! Sorte; Mas fica para outra altura. Também quero saber o que estuda e como estuda embora, como sempre, ele seja autónomo na organização do seu trabalho. E como é a vida por lá: muitos chineses, como sempre diz? Roommate agradável? Tantas perguntas que agora me esquecem mas que não terei de certeza tempo de perguntar logo à noite.

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

À laia de bloco-notas

Como previsto, fiz uma ecocardiografia de controlo por causa da pericardite. Segundo os médicos, a situação é estável. Não corro o risco de correr imediatamente para o hospital para me retirarem 1,4 litros de líquido mas devo prestar atenção a todo e qualquer sintoma parecido com os que tive há duas semanas. Amanhã, falo com a médica para prever um novo exame, provavelmente só depois do próximo tratamento da quimioterapia.

Que continua sem efeitos secundários nem cansaço particular. Pelo contrário, sinto-me todos os dias mais forte.

Até porque estou a dormir melhor.

E passeei a Kiddie todas as tardes excepto segunda, por causa do bridge. A Kiddie, coitada, que não está bem, que tenho que obrigar a jejuar e que olha para mim com os seus olhos grandes, meigos e, desta vez, claramente tristes.

Lobo Antunes - Assuntos a tratar depois de ter morrido

Volto ao texto de Lobo Antunes para o qual o Carlos chamou a a minha atenção: "Assuntos a tratar depois de ter morrido", publicado na Visão, de 16 a 22 de Setembro.

O que vou dizer de seguida é polémico e, por exemplo, não seria do agrado do próprio Lobo Antunes se este por mero acaso visse o que escrevo: é que prefiro as suas crónicas aos seus romances. Nestes, o extremo cuidado na elaboração do texto, a subordinação às exigências formais essenciais para o autor (que confessa que escreve e reescreve interminavelmente os seus textos) parecem-me abafar a respiração das frases, o arfar das palavras e a sua beleza. Nas crónicas, a escrita liberta-se e as palavras e frases correm pelo texto, deixam-se arrastar na corrente, frescas e molhadas. Em Assuntos a tratar depois de ter morrido, o carácter trágico e, ao mesmo tempo, lúcido do texto não é escondido por nenhuma convenção e surge, maravilhoso, em plena claridade.

Para não haver confusões, digo apenas que o meu estado físico ou psíquico não é, nem de perto nem de longe, o de Lobo Antunes na altura do seu tratamento e que, portanto, o que trago aqui, senão muito brevemente nos momentos finais deste texto, não é uma comparação de vivências mas o simples testemunho da sua.

"Quando há três anos e tal estive muito doente não sentia medo da morte, sentia um vazio absoluto em que tudo me era indiferente menos os livros que escrevi. De fraldas e algália, cheio de tubos, incapaz de mexer-me, levava as noites sem dormir a olhar para a janela, nem sequer à espera, um trapo exausto que para ali estava. As pessoas foram boas para mim porém o que diziam não significava nada: percebia-lhes o afecto mas não era capaz de corresponder, ouvia os assuntos de que falavam, tentava construir um sorriso e verificava, espantado, como é difícil construir um sorriso, alguns músculos da cara obedeciam-me, outros não, desistia. Não imaginava que um sorriso fosse um trabalho tão difícil. Meio afogado num charco de sofrimento físico, a observar a monotonia das gotinhas de soro, a forma como tremem, se desprendem, caiem, pensava que se me propusessem a saúde em troca do meu trabalho, recusava. E, tirando isso, não existia fosse o que fosse dentro da cabeça. A incapacidade de reagir contra o monstro que habitava o meu corpo revoltava-me. Em África, o inimigo estava fora e podia destruí-lo: no hospital, roía-me as vísceras, deixava-me à mercê dos outros, sem coragem de lutar. E no interior dos ruídos e das vozes alheias, que silêncio. Não observava a minha morte: percebia-a a rondar sem a ver, aproximar-se, afastar-se, passear por ali e nenhuma curiosidade da minha parte, nenhum interesse. Não tinha sequer forças para alcançar a enfermeira: chamá-la para que? Não havia nada a contar, o trapo cessara de possuir palavras, ideias, desejos. Achava-me a meio de um livro com o título de O Arquipélago Da Insónia e, ironicamente, o título aplicava-se ao meu estado. Sentia-me ilhazinhas dispersas, impossíveis de se unirem e formarem um homem, vagas ilhas despovoadas, só pedra e areia, nenhuma erva, nenhum caniço a crescerem. Tiravam-me as fraldas, lavavam-me, tornavam a pô-las, a humilhação de me pegarem nas vergonhas tocava-me um momento, desaparecia. O tubo da algália pingava para um saco de plástico graduado, aplicavam-me o termómetro no ouvido, enfiavam-me comprimidos boca abaixo. Acendiam a luz a meio da noite para se ocuparem um instante de mim, e a luz chicoteava-me numa brutalidade impiedosa. Não moravam mais infelizes no quarto, apenas eu e a janela para tardes cinzentas de março, cuja melancolia se imobilizava contra os vidros, não entrando sequer. Emagreci uma porção de quilos, lembro-me um amigo a chorar e de me surpreender que chorasse, para quê chorar, qual a razão de chorar, o que se passava com ele, de onde lhe viria o desgosto perante o tal trapo que perdera o nome, com a nuca dissolvida na almofada? Sempre me supus de uma matéria diferente dos restantes, orgulhoso, em certas ocasiões intratável, em certas ocasiões terno, permanentemente solitário no interior da alma: uma espécie de árabe. A infância não me visitava, a idade adulta não me visitava. (…). Custava-me não ir escrever mais, faltava ainda tanto para completar o mundo que decidira tecer, porém o vazio absoluto protegia-me do desespero e limitava-me a flutuar na minha incapacidade física, sem grandes desejos, sem grandes angústias, enquanto me lavavam o rabo de pobre bebé serôdio, desprovido de espaço para piedade de si mesmo. E depois durante meses e meses, na melhor das hipótese, o calvário da radioterapia, da quimioterapia, de uma convalescença (convalescença?) interminável. (…).

E agora? Não preciso de esferográfica para compor a crónica, o dedo basta. Hoje, 16 de Julho de 2010, às onze e cinquenta e seis da manhã, termino isto. Um dia sujo como os de março de há três anos e tal. Não uso fraldas. Engordei. Posso comer pela minha mão, sou mais ou menos quem fui antes de me transformar em trapo. Mais ou menos o tanas. Oiço um saxofone no prédio em frente, que hesita e recomeça. Ando às voltas com um livro, sem algália. Mas não esqueças o vazio, António, nunca esqueças o vazio: continua a tentar enchê-lo devagar
".

Para além do texto sublime, o que me toca mais de perto nas palavras de Lobo Antunes? Não o sentimento da "imensa dor humana" (Camilo Pessanha) porque penso que a sua realidade nos é vedada antes de a experimentarmos, no mesmo sentido que a minha cunhada Clara dizia que não se conhece a dor antes de efectuarmos uma punção lombar e que, depois, todas as dores nos parecem suportáveis por comparação. Mas o sentimento de trapo, de despojo, que compreendo sem o ter sentido, a sensação de vazio, o desapego, o desagregar-se uma pessoa nas tais ilhazinhas sem possibilidade de se unirem. Esta ideia de desagregação e a insónia. E o silêncio que nenhuma voz externa pode quebrar.

E, principalmente, aquilo em que muito tenho pensado ultimamente: que esta doença nos afoga, que se avoluma como um monstro e toma de assalto todo o nosso castelo, todos os lugares, todos os recônditos, todos os esconderijos do nosso ser, e o temor de que a partir de certa altura seja tudo isso que seremos, o cancro, que o cancro se torne nós mesmos.

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Lobo Antunes - O Arquipélago da Insónia

Esta noite, tive pelo menos a certeza de ter dormido. Não muito (entre as 11 e as 4 da manhã) mas, pelo menos, logo à tarde, não terei aquela impressão devastadora de não saber o que me aconteceu. E posso deitar-me esta noite com a esperança de que os progressos continuem.

Difícil é, depois de acordar, manter-me na cama e tentar descansar. Não consigo ficar no quarto, fico desorientado, assaltam-me angústias. Vir para a sala não é muito melhor. Não encontro posição para me deixar dormitar e estou sempre a pular do sofá, com falsas ideias de falta de ar que, mesmo assim, me obrigam a levantar-me de repente e a sentar-me direito. Faltam-me algumas horas de descanso seguido e sereno. Mas, depois do que se passou ontem, sinto que estou no bom caminho.

Li, a conselho do Carlos, uma crónica de Lobo Antunes, na Visão, que relata momentos da sua experiência com o cancro. Trata-de de um texto lindíssimo, sublime, que aqui quero comentar com mais vagar, amanhã ou depois. Na altura da sua doença, Lobo Antunes escrevia o livro Arquipélago da Insónia. Tenho a sensação de que foi que aí fui parar nestes últimos tempos, e não de férias, e de que, como acontece nos Açores, o tráfego aéreo se tinha interrompido e não haveria aviões de volta durante algum tempo.

terça-feira, 21 de setembro de 2010

Sono (ou falta dele)

Peço desculpa de falar tanto de dormir e não dormir, mas é para mim, agora, a questão fundamental. Com a interrupção do ritmo do sono, consequência de mais de uma semana sem dormir ou a dormir muito mal, sinto-me perdido. Por exemplo, ontem, com o acordo dos médicos, aumentei a dose do sonífero. Mas estou aqui, às duas e meia da tarde, sem saber se dormi melhor e estou "pedrado", ou se, na verdade, ainda dormi mal e estou exausto. Sinto, em frente dos meus olhos, uma espécie de cortina de água, transparente, que não me impede de ver mas me corta da realidade. Acumula-se a dificuldade de ler ou ouvir música; e, se encontrarem nestes textos alguma incoerência, as minhas desculpas antecipadas. Perco o controlo do tempo. Espero que esta noite seja boa conselheira e, se amanhã as notícias forem mesmo as que espero, se resultarem duma reacção favorável à nova medicação, que comece a impor de novo uma parte da minha vontade ao mundo que agora tenho perdida. Irrita-me tanto mais quanto os efeitos secundários da quimioterapia continuam sem se manifestar e que poderia, em termos quase ideais, concentrar os meus esforços na minha recuperação.

Bridge

Ontem, fui visitar o clube de bridge. Ainda não joguei – não consigo aguentar três horas de seguida sentado a uma mesa e diante das cartas – mas falei com os meus amigos e assisti a alguns jogos. Também jantei no clube. Por volta das oito e meia recolhi "aos meus aposentos" – mais modestamente, a casa. Tenho que começar a considerar a possibilidade de ser substituído como Presidente. É precisa uma pessoa que esteja presente, que jogue, que organize as coisas. Na próxima semana, realiza-se a Assembleia Geral e vou falar dessa mudança.

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

O blogue continua dentro de momentos

Interrompido por motivo de insónia.

Recomeça amanhã se melhoras.

domingo, 19 de setembro de 2010

Dormir, rir, sair

Dormir. Dormi bem – mas pouco. O meu problema de dormir não é de qualidade mas de quantidade. Quando adormeço, durmo bem; mas nunca mais de duas, três horas seguidas. E depois, se encontrar posição que não me afecte a respiração nem me traga dores, adormeço e acordo, acordo e adormeço... Mas sempre é melhor do que as noites em que não ando nesta roda-viva. Porque vou dormitando e porque a alternativa é descer para a sala às três, quatro da manhã – e garanto-vos que, a essa hora, não há nada, nada, que nos distraia.

Rir. Rio (ou sorrio mas também nunca fui de grandes gargalhadas) com as minhas netas. Agora, a Constança, quando me vê, rasga um enorme sorriso, solta às vezes uma pequena gargalhada, e quer ir para o meu colo. Está a crescer depressa. Mas tem esta mania de se atirar para o chão. No outro dia, atirou-se da cadeira onde come; e, uma outra vez, estava a empilhar brinquedos na cama para transpor as grades e mergulhar. A Xá que, antes de adormecer, esteve na minha cama, recomeçou as nossas conversas – mas explicou-me que preferia falar "amanhã". E, claro, "amanhã" vieram os desenhos animados e as perspectivas de conversa esfumaram-se. Gosto de a ver. No meio de toda esta confusão, de doenças e mudanças, parece-me que ela se sai bem. Talvez mais enervada do que é habitual: mas não o estamos nós todos também? Pelo menos, continua a rir com gosto. Disse-me que gostava de ter ficado mais um tempo em Bruxelas porque agora não me visita tanto.

Sair. Vamos sair esta tarde. Há uma pequena braderie mesmo aqui ao lado e vamos todos. Para mim, é importante não me fechar em casa. Mesmo se me movo em câmara lenta.

Estou sempre zangado quando estou a morrer - Tony Judt (1948-2010)

Tony Judt foi um dos maiores historiadores do século XX. Especializado na época contemporânea, a sua obra magna Post War apresenta, talvez pela primeira vez, uma panorâmica da Europa depois de 1945 que não se limita à Europa Ocidental mas dedica uma atenção detalhada aos acontecimentos que ocorreram, entre 1945 e 1989, do outro lado da Cortina de Ferro, em países que Tony Judt tão bem conhecia. Há nela, sobretudo, um esforço para perspectivar a história europeia deste período em conjunto, verificando a interpenetração da evolução histórica nestes dois espaços separados.

Tony Judt, que estudou e publicou sobre a França moderna e sobre os seus intelectuais, era o exemplo, paradoxalmente inglês, dum intellectuel engagé. O seu último livro Ill fares the land constitui uma inequívoca denúncia das desigualdades económicas e sociais que se estenderam na Europa e nos Estados Unidos depois de Thatcher e Reagan e um apelo empenhado para uma social-democracia renovada e adaptada às necessidades do mundo dos nossos dias.

Tonu Judt morreu há semanas, no dia 6 de Agosto (dia do meu enfarte), com uma doença horrível (esclerose lateral amiotrófica ou doença de Charcot) que o paralisou progressivamente a partir de 2008. Continuou, no entanto, a poder escrever e ditar e publicou, na New York Review of Books, uma comovente série de artigos sobre a sua vida, o seu judaísmo, e a montanha e os comboios, que adorava.

Foi nesta revista que Timothy Garter Ash, seu amigo, lhe dedicou um reconhecido in memoriam, de que retiro estas palavras (tradução minha):

"Tony era um lutador, e combateu esta doença com toda a sua força e vontade. Não (eram) para ele as consolações de uma eternidade imaginária ou a "aceitação" de Kübler-Rossish. Rimo-nos ambos da magnífica frase que o autor de teatro John Mortimer relatou como vinda da boca do seu pai que morria: "Estou sempre zangado quando estou a morrer". (Tony) era um realista sem ilusões a propósito do que lhe estava a acontecer e sobre o que viria ou não viria depois. Menos de três semanas antes de ele morrer, eu disse qualquer coisa com o objectivo de mostrar que sabia que ele estava a viver um inferno. "Sim", disse-me ele (...), "mas o inferno é uma experiência intransferível. Por isso, é melhor falar doutras coisas: amigos, bêtes noires, política, livros".

sábado, 18 de setembro de 2010

Matutino. Xá, Constança e Pais em Bruxelas

Sinto-me tão bem desde há três dias! Parece que cessaram todas as maleitas... Apenas um sóbrio cansaço quando faço algum esforço adicional. Que diferença para aqueles dias em que ficava exausto de tanto ofegar e tossir.

O tempo está lindo (mas frio). Prometi à Xá, que vem hoje de Paris com a Constança e os pais, que, se o sol aparecesse, iria com ela ao jardim. É o que faremos logo à tarde.

Dormi: não muito (nunca durmo muito agora), mas calmamente, sem a angústia que me acompanhou nas últimas noites. Acordei cedo, vi as notícias na Internet, escrevi algumas coisas.

Para ser sincero, devo dizer que teria começado o dia ainda melhor se a Kiddie, pela primeira vez desde há anos, não tivesse sujado a casa. Poupo pormenores mas a verdade é que, às oito horas, andava pela cozinha de esfregadeira ao punho e balde de água a acompanhar. Mas mesmo isso aturei sem que o cansaço se revelasse insuportável.

Depois de uns dias em que, por causa da pericardite, me convenci que esta doença seria de tal forma incapacitante que não conseguiria fazer nem sequer uma vida próxima da normal, acredito agora – mesmo sem esquecer que a evolução se faz de altos e baixos – que poderei viver com alguma qualidade. Para já, voltei a ler com gosto e escuto a minha música clássica no iPod. E saio. Não com a frequência de antes nem, muito menos, com a mesma força de pernas e rapidez – mas não me fecho dentro de casa.

Boas perspectivas...

Teresa e Carlos Anglin de Castro

Quando soube da minha doença e me decidi a conversar com os meus amigos neste blogue, não podia imaginar o afecto, a ternura, a simpatia, com que as minhas palavras têm sido recebidas. Os comentários de todos e a amizade que revelam emocionam-me muitas vezes e ajudam-me sempre a encarar este tempo tortuoso com a força que me garante a energia para continuar a lutar e a combater.

A Teresa é, de há muito, de muito antes das minhas dificuldades actuais, uma assídua presença neste blogue. E o Carlos escreveu-me ontem uma mensagem, que me comoveu imenso.

Uma parte dessa mensagem é estritamente pessoal e não tem nada afazer aqui. Mas o Carlos acrescenta, de forma tocante, que me acompanha nas suas orações.

Tenho aqui dito que não sou religioso. Mas não é por proselitismo que o faço. Trata-se apenas de manter uma já antiga coerência de pensamento e acção.

Respeito profundamente as convicções católicas e, em geral, as convicções religiosas dos meus amigos e, afinal, de todos. Mais do que aquilo em que acreditamos, o que é importante é a convicção com que acreditamos: a força da nossa fé.

Como poderia ser doutro modo? Fui educado como católico e a maior parte das pessoas que amei – decerto as mais importantes – eram católicas e viviam a sua fé de uma forma profundamente sincera. Recordo a Mãe, em quem penso todos os dias, cuja fé vacilou por vezes em face das enormes dificuldades por que passou, principalmente depois de ter ficado sozinha quando o Pai morreu, mas que, nos últimos anos da sua vida voltou a Deus e encontrou Nele esperança e conforto. Lembro a Avó que, depois da minha Mãe, foi a pessoa que mais amei e, certamente, a pessoa que mais admirei e respeitei, e que conduziu os meus passos dos meus dias de menino até à sua morte. Com a Avó aprendi, não tanto os ensinamentos da religião, que já conhecia, se bem que forma imperfeita, mas, o que foi muito mais importante, a forma de a viver, num misto de reverência pela glória de Deus e de afeição pela Sua criação. E como esquecer a fé inabalável, indestrutível, que nunca hesitou, da minha querida tia Vicas?

Uma das coisas que fiz e me aflige ainda, mesmo depois de passados quarenta anos, foi o facto de, pelos meus dezasseis anos, ter revelado à Avó o meu afastamento de Deus. Ainda hoje recordo o seu desgosto, o seu sofrimento. Claro que foi a reacção de um adolescente para quem proclamar a sua verdade era mais importante do que viver essa verdade. Mas a reacção da Avó fez-me prometer a mim mesmo que, a partir daí, nunca mais "discutiria" religião; e nunca vacilei nessa decisão. Porém, no meu caso, trata-se de mais do que não "discutir"; trata-se se aceitar, de compreender, de respeitar a fé dos outros; e de comungar nela.

Por isso, Teresa, Carlos, quando de forma tão comovente me dizem que me acompanham nas vossas orações, é com profundo reconhecimento que vos agradeço. As vossas orações e as vossas palavras contribuem para que me sinta melhor como pessoa, ajudam-me nestes momentos difíceis, dão-me ânimo e coragem. Bem hajam.

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Fotografia

Acho que é a primeira vez que ponho no blogue uma fotografia minha em que esteja sozinho.

Mas gosto muito desta, tirada no Natal, em casa da Zé.

Notícias (muito) breves de ontem e hoje

Ontem, estive bastante bem. Melhor: como não me sentia desde antes do enfarte e das notícias sobre o cancro que, pese embora a sua dura realidade, ainda não consegui, para mim mesmo, encarar senão como disparates.

Pela janela, vejo o tempo limpo, a prometer um bom dia.

Programa para hoje: cortar o cabelo (aproveitando a agradável sensação de ele não ter caído por si como efeito da quimioterapia), comprar revistas, passar pelo supermercado e pela frutaria, ir ao Banco, deter-me na farmácia (minha expedição quase diária), voltar para casa. À tarde, e como ontem, quero passear a Kiddie. (De manhã, passeiam-na a Danila e a Valquíria). Devo dizer que a Kiddie está cada vez mais afectuosa: parece que adivinha que se passa qualquer coisa e, com o talento especial dos cães para seguirem os saltos de humor dos donos, é provavelmente isso mesmo que acontece. Deve sentir uma certa sensação de insegurança da minha parte e responde com mimos...

A Danila, queridíssima, disse-me que passará todas as tardes quando sair do seu outro emprego, para ver como eu estou. Já o fez ontem. Também se ofereceu para ajudar a Sofia nas compras no próximo fim-de-semana. Fico muito contente com estas provas de amizade. (Devo ter feito alguma coisa de bom na minha vida passada para merecer isto e, de forma geral, a solidariedade que me tem acompanhado desde que esta coisa apareceu).

(A fotografia é de um nascer do sol na Ria Formosa).

Dico em Leysin

Fotografia do Dico com gravata para o CV. Já lhe perguntei como fez o nó porque não consigo perceber como ficou tão bem feito.

Tenho falado (skypado) com ele. Acho-o empenhadíssimo no curso, com aquela determinação que põe em todas as coisas que se decide a fazer bem. Parece que poderá ser study adviser para Francês (o que lhe dará mais uns cobres). Diz-me que as coisas com os professores começaram bem. Encontrou já um ginásio de boxe tailandês (que é parecido com o muay-tai, que praticava aqui em Bruxelas) e vai participar nas equipas de futebol e basquetebol.

O senão é a quantidade de matéria que tem que estudar e o ritmo de trabalho que parece nunca abrandar. Aquilo não é, não é mesmo, uma brincadeira. Mas, meu querido, vai habituar-se (e a sua atitude positiva é mais que meio passo para o conseguir) e, com o tempo, vai aperceber-se de que a qualidade do ensino é tão grande que os seus resultados compensarão estas dificuldades iniciais. E pense que, no próximo semestre, já estará em estágio num dos (bons) hotéis de Genève.

Mas compreendo que, como qualquer internato, e ainda mais nos primeiros tempos, quando as pessoas aterram em campo desconhecido e ainda não se consolidaram amizades, a escola se revele, por vezes, tristonha e pesada. Por isso, se tudo correr bem, o Dico virá a casa no fim-de-semana de 25 de Setembro. Que bom! Estou com saudades e com imensa vontade de vê-lo.

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Duche, tarde, noite, manhã, almoço

Ontem, quando cheguei a casa, implorava, gritava, clamava por um duche. E duche fez-se. Depois de cinco dias a esfregar-me diante do lavatório, pude finalmente inundar os cabelos de champô e deixar correr a água pelo corpo. Fiquei debaixo do chuveiro durante quase meia-hora.

Estive a maior parte da tarde deitado. Vim do hospital de táxi e, como que a contrariar a doença, lancei-me a arrumar a mala, a preparar o almoço, numa azáfama disparatada. Fiquei exausto. Felizmente que a Céline passou e passeou a Kiddie (obrigado Céline). As minhas filhas devem ter ficado preocupadas com os meus telefonemas: nessa altura, estava bastante rouco.

A noite de hoje foi paradoxal - e frustrante. Por um lado, o cansaço desapareceu e, pela primeira vez de há muito tempo, encontrei facilmente posição na cama e não tive nem tosse nem qualquer dificuldade em respirar. Senti-me outro, mais forte e, por isso, muito mais optimista. Li antes de me deitar - estou a retomar o gosto pela leitura, que desapareceu quando andava para aí a sufocar devagarinho e a subir as escadas degrau a degrau. Espero que estas melhoras sejam já efeito do primeiro tratamento da quimioterapia e que o segundo, agora acabado, os reforce.

Mas, por outro lado, talvez por causa do Medrol (cortisona), cujas doses aumentam na alturas dos tratamentos, não preguei olho. Desisti às seis da manhã, tomei um café, e estou a escrever isto. O problema é que ainda tenho que tomar a mesma dose do remédio hoje e amanhã. Mas sinto-me bem e estou bem-disposto. O tempo também parece bom.

Hoje, se não houve anulações nos voos de Trieste (de onde ele chegava por volta da meia-noite), vou almoçar com o Carlos aqui no Brasero. Rognons... Como diria a Xá, yupi.

terça-feira, 14 de setembro de 2010

Notas do hospital - depois dum chato dia

A única coisa boa deste quarto é a janela, que tem várias posições de abertura. Nos outros quartos em que fiquei (um, que era o melhor, assemelhava-se a um quarto de hotel e o preço era parecido – mas muito menos do que em Lisboa, numa clínica privada) a janela, ou estava aberta de par a par (exagero meu!), ou fechada (sem exagero nenhum). Aqui, posso controlar a quantidade de frio que me entra portas (janelas) adentro.

Acabei de vestir o meu roupão, o que só é coisa a assinalar porque a tarefa não é tão fácil quanto parece quando se está ligado a dois sacos de plástico, cheios de líquidos transparentes. Estendem-se os sacos, previamente libertos da coluna com rodinhas, na cama, enfiam-se os dois pela manga esquerda, voltam-se a pendurar. Ah! Não esquecer de desembaraçar os tubos que saem dos sacos senão temos que recomeçar tudo. E, como não percebemos nada disto, começa a correr o sangue de dentro da veia para os sacos e não ao contrário. Temos que chamar a enfermeira, que era o que devíamos fazer logo de início.

A equipa médica que me acompanha é constituída pela Dra. Mazzeo, chefe de equipa, e pela Dra. Meert, sua assistente. A Mazzeo nasceu para isto: é feiota, gordinha, atarracada, o cabelo cortado como um rapazinho numa cara que, há muito, passou a infância e adolescência. É pessoa para ter quarenta anos mas a Sofia, Inês e Trezzu, e o João, poderão confirmar porque eu, para adivinhar idades sou uma nulidade. Sorri muito mas diz pouco. É preciso arrancar-lhe as informações como se fossem dentes (sei que a comparação é pobre e pouco original mas não me lembro doutra). A Meert é nova (28/30 anos. Pedida nova intervenção das minhas filhas e do João) e engraçada. É com ela que sabemos o que realmente se passa e, felizmente, é ela que devo contactar primeiro se acontecer qualquer coisa. Tenho-lhe uma ternura especial porque, já desconfiada, me mandou fazer a ecocardiografia que levou ao tratamento de urgência da pericardite.

Pergunta: como sabemos que estamos num hospital? Pelas batas brancas ou verdes das enfermeiros/enfermeiros e das/dos auxiliares de enfermagem? Pela agulha que nos enfiam na veia do braço? Pelas perfusões? Pelo silêncio? Pelo aborrecimento? Pela cama articulada ou pelas cadeiras desconfortáveis? Pelo alarme colocado à mão? Pelo frigorífico raquítico? Pelos lavatórios equipados com frascos de sabão e toalhas de papel como nas casas de banho públicas? Pelas retretes que têm ao lado uma espécie de torneira móvel que só à terceira ou quarta vez percebi que servem para lavar recipientes de utilidade variada? Pelos frascos brancos e arrevesados que são urinóis portáteis para fazer chi-chi quando não podemos levantar-nos (não sei como fazem as mulheres)?

Resposta: sabemos que estamos num hospital quando, ao almoço, nos servem frango com molho de estragão e sorrimos esperançosos antes de, como seria evidente, o pormos de lado por ser intragável; ou quando, ao jantar, ainda provamos a salada de camarão antes de nos apercebermos que, como deveríamos logo saber, se trata dum bocado amarelado de borracha. Explica-se bem como se emagrece no hospital. Mas eu, pelo contrário, e com os líquidos que me metem na veia, até engordei: 1,7 quilos num dia. Pareço até gordo! É óptimo. Como dizem a Sofia e a Inês ainda não se viu alguém morrer de cancro gordinho.

Para informação, nos andares as enfermeiras/enfermeiros andam normalmente de bata branca e as/os auxiliares de enfermagem de bata verde ou azul. Nos cuidados intensivos, é o contrário. Sapatos: os crocs dominam, das cores mais variadas; seguem-se os ténis e, muito menos, nas mulheres, as sandálias. Os médicos andam quase todos de ténis mas, nas urgências, há muitos que se renderam aos crocs.

A pior coisa é não poder tomar duche (por causa das perfusões). Até agora, em toda a minha visa, foi só em hospitais que encontrei um apetrecho tão belga ou francês como é a gant de toilette. Em português, dir-se-á luva de toilette: para os portugueses que nunca viram nenhuma trata-se dum rectângulo de tecido turco com uma abertura dum lado por onde se enfia a mão Espalha-se lá o creme de duche ou o sabão, esfrega-se e pensam os adeptos que estão lavados. Mas, por muito que esfreguem, não estão. Com a minha falta de treino, aliás, esta manhã, ao lavar-me, molhei as calças de pijama. Demoraram meia hora a secar, penduradas na janela.

Para a petite historie. Quando aqui estive pela primeira vez, em Agosto, fiquei num quarto de duas camas. O meu primeiro companheiro de quarto, um senhor de oitenta anos, pediu à enfermeira para não se lavar. Ela recusou e obrigou-o mas o homenzinho limitou-se a passear a gant pelo torso meio vestido. Depois de dois ou três dias, não se podia com o cheiro. Tinha, contudo, a vantagem de não ressonar. Já o meu segundo comparsa não se calava durante a noite. Este não se calava durante o dia mas conhecia Bruxelas como a palma das suas mãos.

Encontraram células cancerosas no líquido que envolvia o coração. Uma metastasinha a passear por aquelas bandas. Desagradável. Mesmo lamentável.

Quimioterapia/2

Afinal, nem ontem, nem volto noutro dia. A quimioterapia continua hoje... Espero que se passe como a anterior, sem efeitos secundários, sem cansaços e também sem mais distracções a acompanhar. Quero concentrar-me neste esforço.

Ontem, o tempo esteve, para Bruxelas, lindo e frio. Vi-o apenas da janela do hospital e confesso que, de hospitais, estou agora farto. O quarto onde fiquei é pequeno e a televisão está posta à altura da Serra da Estrela (dizer do Monte Branco seria exagerado) o que significa que só a posso ver de cabeça levantada, em atitude que poderia parecer de disparatada presunção mas que, neste caso, significa tão-somente incómodo e desconforto. (Muito pior ainda são os quartos dos cuidados intensivos em que a profusão de máquinas não disfarça o ambiente pesado escuro e gelado e, muito menos, faz esquecer a angústia e o medo). Mas, como diz a Inês, não é a altura para desistir de hospitais porque, para lutar, tenho que passar parte do meu tempo e da minha vida por aqui. De acordo; mas que estou enjoado, estou.

O tempo, hoje, acordou claro, com algumas nuvens a passar. Espero que não avisem chuva para quando eu puser o pé na rua.

E, depois da pericardite, sinto-me óptimo. Dormi bastante bem (ao contrário de ontem) e levantei-me cedo, revigorado.

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

Pericardite, "Tamponnade"

Bom, afinal as coisas não se passaram como previsto. Preparado para a quimioterapia, apanhei com uma pericardite (do tipo que, em francês, se chama "tamponnade"). Coisa que podia ter sido grave e que explica a minha tosse anterior e, principalmente, a sensação de asfixia com que andava. O sinal mais evidente ocorreu quando tentaram fazer-me um scanner. Quando me deitei, dei um pulo, levantei-me de chofre: parecia que ia sufocar ali mesmo. (O Carlos explicou-me que era o coração a reagir por estar coberto de líquido. Quando estamos de pé, ou sentados com as costas direitas, a sensação atenua-se. Por isso, dormia quase sentado). Nem voltei ao quarto: arrastaram-me para os cuidados intensivos cardíacos e, uma meia hora depois, espetavam-me uma agulha fina no peito, para passar um cateter de onde correu a quantidade para mim enorme de 1,4 litros. Mas tudo se resolveu e, no dia seguinte, lá saí daquela unidade onde a minha presença, para mal dos meus poucos pecados, começa ser frequente.

Resolvido este contratempo, já respirando (quase) como um menino pequeno, convencido de que não tenho nada, a levantar-me da cama (quase) aos pulos, o que, Carlos ainda dixit, é perigoso, fiquei no hospital, onde estou a escrever isto, não sabendo quando farei o segundo tratamento da quimioterapia. Pode ser hoje ou poderei voltar noutro dia. A minha médica, certamente reconfortada pelas férias de três semanas que tirou, dar-me-á notícias mais tarde. Até já.

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

Serenidade, força

Sou uma pessoa privada. Encontrei a minha plenitude na minha família, na Sofia, na Inês, na Trezzu, no Diogo, na Xá e na Constança, na minha Mãe, no meu irmão, nos meus genros e em alguns amigos. Recebi mais do que dei. Mas dei alguma coisa.

Não encaro o que me aconteceu como uma injustiça. Como poderia? A quem dirigiria a minha censura? Não acredito em Deus nem em nenhuma outra entidade sobrenatural, omnisciente e omnipotente, que se ocupe dos affaires du monde et de l'homme. A vida, para mim, é apenas princípio, meio e fim. O que veio antes não me preocupa. Sinto-me responsável pelo que fazemos enquanto vivemos, pelo que deixamos atrás de nós. E vejo a morte como um enorme espaço escuro, imóvel, fora do tempo, mas sereno e pacífico.

Posso, no limite, deixar um breve lamento. Sempre pensei que viveria até aos oitenta anos, rodeado das minhas filhas, do meu filho, das minhas netas e netos, num jardim banhado pelo sol. Esperava assistir ao nascimento de bisnetos, pelo menos de um ou uma. As coisas não se passaram assim. O meu horizonte temporal, hoje, não ultrapassa alguns anos e é provavelmente muito, muito mais curto. Mas não tenho medo. Sinto, sim, uma infinita desolação por não ser capaz de encontrar as palavras que possam acalentar as minhas filhas e o meu filho.

Adoro a vida. Tenho algum pudor de grandes atitudes e não apregoo facilmente os meus sentimentos. Por isso, algumas pessoas podem enganar-se e pensar que não luto. Não é verdade. Luto com todas as minhas forças, mesmo quando elas vacilam; luto a toda a hora, em cada minuto. Tenho a certeza de que luto mesmo quando durmo. É claro que às vezes fraquejo: quem o não faria? Mas uso todas as minhas energias para espezinhar esta coisa informe porque a vontade de viver não me abandonou e não me abandonará.

Mas também não quero que o cancro se transforme no meu quotidiano, mais do que aquilo que é inevitável, o que já é imenso. Quero que a minhas filhas continuem a viver, em Paris e em Lisboa, o meu filho permaneça na Suíça, e as minhas netas vivam com os pais e algo longe dum ambiente de doença. Não quero que se transformem em meus enfermeiros. Mas não sou orgulhoso: prezo o amor e a amizade e não recuso ajuda.

Este é o meu programa para os próximos tempos. Que continua hoje com o segundo tratamento da quimioterapia.

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Trezzu

Hoje foi a Trezzu que se foi embora. A separação foi mais difícil que noutras ocasiões e houve algumas lágrimas discretas de ambos. Mas, minha querida, não fique preocupada nem triste. Concentre-se nos seus estudos e ria com as suas amigas e os seus amigos – talvez um "special one". O contrário seria uma vitória desta coisa horrível e nós não queremos que ela vença. Não se preocupe que eu vou ficar bem. Um grande beijinho.

Dormi muito pouco, quase nada, mas sinto-me melhor. Tenho menos dificuldade em respirar, estou mais calmo. Hoje à tarde, se não chover, vou passear a Kiddie. (Como me atrasei na publicação desta entrada, a chuva e frio foram, afinal, uma desculpa antecipada para ficar enrolado no sofá).

Um soneto de Camões

Descobri, misturado com livros de política internacional, a Antologia Pessoal da Poesia Portuguesa, organizada por Eugénio de Andrade, um dos livros que procurava depois de a minha antiga mulher-a-dias me ter arrumado (?) as prateleiras. Falta-me ainda a colectânea da Poesia do autor, que devo encontrar um dia destes, misturada os meus antigos livros de Direito ou coisa assim.

O soneto de Camões, Aquela triste e leda madrugada, que aqui deixo, é um dos mais belos poemas portugueses. Para as pessoas da minha geração ensinadas por alguns professores preguiçosos, Camões, na épica, é quase sinónimo de divisão de orações e, na lírica, em exercícios de memória destinados a aprender de cor sonetos e cantigas para os recitar depois diante duma plateia de alunos, que olhavam pela janela, desatentos e aborrecidos. (Dizem-me que, agora, nem isso se faz!) Havia excepções e tive a sorte de encontrar dois professores que me ensinaram a beleza de Camões e, através ela, a beleza de toda a poesia.

Num seu livro, O Poder da Música, (oferecido pela Vera), o pianista Daniel Barenboim sublinha a diferença essencial entre olhar e ver (ou entre ouvir e escutar). Podemos olhar muitíssimas coisas mas só vemos algumas, aquelas em diante das quais não apenas passamos mas paramos. Parece-me que, para descobrirmos Camões, para que nos seja rendida essa beleza, temos precisamente que aprender a ver, esquecendo as vezes em que apenas o olhámos, por distracção ou obrigação.

E sei (mas é um parênteses) que, se, mais tarde, o Portugal da segunda metade do século XX for lembrado, será pela sua poesia.



Aquela triste e leda madrugada,
Cheia toda de mágoa e de piedade,
Enquanto houver no mundo saudade,
Quero que seja sempre celebrada.

Ela só, quando amena e marchetada,
Saía, dando ao mundo claridade,
Viu apartar-se de uma outra vontade,
Que nunca poderá ver-se apartada.

Ela só viu as lágrimas em fio,
Que de uns e de outros olhos derivadas
Se acrescentam em grande e largo rio.

Ela viu as palavras magoadas
Que puderam tornar o fogo frio,
E dar descanso às almas condenadas.

quarta-feira, 8 de setembro de 2010

Barba

Durante quatro ou cinco dias deixei crescer a barba, história de ter menos uma coisa a fazer de manhã.

Mas não aguentei. Ficava horrível.

Cortei-a esta manhã. Estou de cara lavada.

Cansaço, falta de ar, recuperação

Nos dois últimos dias, as coisas não correram bem. Permanentes faltas de ar e fortes ataques de tosse. Na noite de ontem, dormi três horas de sono inquieto. As faltas de ar cansam-me a apavoram-me. Fico desorientado. Enervado e insuportável.

Mas hoje amanheci mais forte: as duas doses de sangue novo fazem o seu efeito. Quase não tossi durante a noite e dormi mais e melhor. Arranjei uma forma de arrumar as almofadas na cama que me deixa mais confortável.

O tempo continua soturno. E não vos digo o que vou fazer esta manhã porque é mesmo privado.

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

Transfusão







Hoje de manhã, estava assim
















e depois fiz uma transfusão (mas a senhora da imagem parece mais serena do que eu estava).

domingo, 5 de setembro de 2010

Fim-de-semana

Fim-de-semana com, como pano de fundo, a ida do Dico para a Suíca.

Anteontem à noite, por distracção, tomei duas vezes os meus comprimidos para dormir; ontem, andei grogue. Continuo com muita tosse e alguma dificuldade em respirar. Subir as escadas é uma corrida de meio-fundo. Habituei-me agora a descansar entre cada degrau; o resultado é positivo mas o tempo para chegar à cama decuplicou.

Do lado positivo, tenho forças, o cansaço esvanece-se e as dores desapareceram.

Estou bem.

sexta-feira, 3 de setembro de 2010

Apanhado a tempo?

Perguntam-me às vezes amigos bem-intencionados se o cancro foi apanhado a tempo.

Não sei. Não quero saber. Para já, o meu horizonte temporal em relação à doença não ultrapassa o fim da quimioterapia e os seus resultados (positivos! assim espero). Recuso-me a olhar para além dessas duas primeiras semanas de Outubro. É como uma barreira a separar-me de tempos mais afastados.

E é uma forma de concentrar os meus esforços na remissão. Na verdade, não tenho paciência nem força para distracções.

Dois poemas de Pedro Tamen

Dois poemas de Pedro Tamen, um do Primeiro Livro de Lapinova, outro do Poemas a Isto, e inseridos na colectânea, que agrupa os poemas de 1956 a 2001, Retábulos das Mentiras.
















(1)
Ninguém está longe: ao pé
de cada mão que eu te estendesse
o ar corre depressa e vai até
às malhas duma rede que se tece
dos fios infinitos e turbados.

Ao pé de ti é mundo que se aquece
- que vento bafo quente nos telhados...


(2)
Rosa, solar ou branco?
Cravo, terrestre e roxo.
Em vez de rouxinol, que diga mocho.
Corrente, assim te estanco

Sono, tempo, Dico, livros

Dormi mal mas estou bem-disposto. Tempo ainda enevoado mas, se acreditarmos na televisão belga, a melhorar durante o dia e no fim-de-semana.

Amanhã, Dico vai para a Suíça para começar os seus estudos de hotelaria. É um passo enorme, uma oportunidade, um desafio. (Quando voltar, já saberá fazer a cama e preparar refeições). Sinto alguma nostalgia antecipada por o ver partir: a casa ficará muito mais vazia sem os amigos que entram sem mesmo me verem, com a chave atirada pela janela, sem os seus berros diante da Xbox, sem o seu muay-tai e a Mimi, sem os seus jantares em tabuleiros levados para o quarto, e tantas outras coisas. Mas estou contente. Foi sempre isto que o Diogo quis fazer. Boa sorte, filho. E até Novembro ou Dezembro.

Livros. Desculpas ao Carlos, mas ainda não encontrei força para começar o Pedro Páramo, de Juan Rulfo. É um livro complexo, pelo menos do que me apercebi da sua estrutura temporal (no prefácio de Garcia Marquez, diz-se que Costa Rós "fez há pouco tempo uma tentativa fascinante de (...) estabelecer os tempos das suas criaturas") e a minha cabeça anda distraída.

Estou a ler um bom romance de Luis Landero, um escritor espanhol, para mim pouco conhecido. Chama-se Jogos da Idade Tardia e, para além de uma intriga original, a linguagem é estupenda e com o seu quê de barroco, como que a disparar para todos os lados.

Ao mesmo tempo, releio os Cem Anos de Solidão e, amanhã, vou buscar a uma livraria o Outono do Patriarca. Não sei onde meti a minha cópia. Também passo os olhos pelo último volume da série Pepe Carvalho (Milénio), de Manuel Vasquez Montalbán, obra póstuma onde o autor, vestido de personagem, faz a sua viagem de despedida por cidades e ideias, que é, também, um passeio culinário.

Poesia. Sophia e Pedro Tamen. Procuro, desesperado, os poemas de Eugénio de Andrade e a Antologia da Poesia Portuguesa, por ele organizada. Uma antiga mulher-a-dias, bastante simpática com esta excepção, ao limpar as estantes, desorganizou-me de tal forma a biblioteca que, de cada vez que procuro um livro, demoro meia hora para o encontrar. Se o consigo. Bruta sorte.

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

Informação de Paris: Xá

A Xá começou hoje a escola. Estava excitadíssima e risonha e dizia aos pais para desandarem. Um beijinho.

Um poema




Depois da cinza morta destes dias,
Quando o vazio branco destas noites
Se gastar, quando a névoa deste instante
Sem forma, sem imagem, sem caminhos,
Se dissolver, cumprindo o seu tormento,
A terra emergirá pura do mar
De lágrimas sem fim onde me invento.


Sophia de Mello Breyner
Coral (1950)

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Quimioterapia e infertilidade

Quando comecei a quimioterapia, deram-me uma pequena brochura (aliás muito bem feita) com informações gerais sobre o cancro e o tratamento.

Um dos pontos tem a ver com os "Efeitos sobre a sexualidade e a fertilidade". Aí lê-se o seguinte: "Nos homens, pode encontrar-se uma infertilidade transitória ou definitiva. É possível congelar o esperma antes do início do tratamento em vista de uma futura inseminação artificial."

Aos cinquenta e cinco anos e depois de três filhas, um filho e duas netas, confesso que me senti aliviado.