A única coisa boa deste quarto é a janela, que tem várias posições de abertura. Nos outros quartos em que fiquei (um, que era o melhor, assemelhava-se a um quarto de hotel e o preço era parecido – mas muito menos do que em Lisboa, numa clínica privada) a janela, ou estava aberta de par a par (exagero meu!), ou fechada (sem exagero nenhum). Aqui, posso controlar a quantidade de frio que me entra portas (janelas) adentro.
Acabei de vestir o meu roupão, o que só é coisa a assinalar porque a tarefa não é tão fácil quanto parece quando se está ligado a dois sacos de plástico, cheios de líquidos transparentes. Estendem-se os sacos, previamente libertos da coluna com rodinhas, na cama, enfiam-se os dois pela manga esquerda, voltam-se a pendurar. Ah! Não esquecer de desembaraçar os tubos que saem dos sacos senão temos que recomeçar tudo. E, como não percebemos nada disto, começa a correr o sangue de dentro da veia para os sacos e não ao contrário. Temos que chamar a enfermeira, que era o que devíamos fazer logo de início.
A equipa médica que me acompanha é constituída pela Dra. Mazzeo, chefe de equipa, e pela Dra. Meert, sua assistente. A Mazzeo nasceu para isto: é feiota, gordinha, atarracada, o cabelo cortado como um rapazinho numa cara que, há muito, passou a infância e adolescência. É pessoa para ter quarenta anos mas a Sofia, Inês e Trezzu, e o João, poderão confirmar porque eu, para adivinhar idades sou uma nulidade. Sorri muito mas diz pouco. É preciso arrancar-lhe as informações como se fossem dentes (sei que a comparação é pobre e pouco original mas não me lembro doutra). A Meert é nova (28/30 anos. Pedida nova intervenção das minhas filhas e do João) e engraçada. É com ela que sabemos o que realmente se passa e, felizmente, é ela que devo contactar primeiro se acontecer qualquer coisa. Tenho-lhe uma ternura especial porque, já desconfiada, me mandou fazer a ecocardiografia que levou ao tratamento de urgência da pericardite.
Pergunta: como sabemos que estamos num hospital? Pelas batas brancas ou verdes das enfermeiros/enfermeiros e das/dos auxiliares de enfermagem? Pela agulha que nos enfiam na veia do braço? Pelas perfusões? Pelo silêncio? Pelo aborrecimento? Pela cama articulada ou pelas cadeiras desconfortáveis? Pelo alarme colocado à mão? Pelo frigorífico raquítico? Pelos lavatórios equipados com frascos de sabão e toalhas de papel como nas casas de banho públicas? Pelas retretes que têm ao lado uma espécie de torneira móvel que só à terceira ou quarta vez percebi que servem para lavar recipientes de utilidade variada? Pelos frascos brancos e arrevesados que são urinóis portáteis para fazer
chi-chi quando não podemos levantar-nos (não sei como fazem as mulheres)?
Resposta: sabemos que estamos num hospital quando, ao almoço, nos servem frango com molho de estragão e sorrimos esperançosos antes de, como seria evidente, o pormos de lado por ser intragável; ou quando, ao jantar, ainda provamos a salada de camarão antes de nos apercebermos que, como deveríamos logo saber, se trata dum bocado amarelado de borracha. Explica-se bem como se emagrece no hospital. Mas eu, pelo contrário, e com os líquidos que me metem na veia, até engordei: 1,7 quilos num dia. Pareço até gordo! É óptimo. Como dizem a Sofia e a Inês ainda não se viu alguém morrer de cancro gordinho.
Para informação, nos andares as enfermeiras/enfermeiros andam normalmente de bata branca e as/os auxiliares de enfermagem de bata verde ou azul. Nos cuidados intensivos, é o contrário. Sapatos: os
crocs dominam, das cores mais variadas; seguem-se os ténis e, muito menos, nas mulheres, as sandálias. Os médicos andam quase todos de ténis mas, nas urgências, há muitos que se renderam aos
crocs.
A pior coisa é não poder tomar duche (por causa das perfusões). Até agora, em toda a minha visa, foi só em hospitais que encontrei um apetrecho tão belga ou francês como é a
gant de toilette. Em português, dir-se-á luva de toilette: para os portugueses que nunca viram nenhuma trata-se dum rectângulo de tecido turco com uma abertura dum lado por onde se enfia a mão Espalha-se lá o creme de duche ou o sabão, esfrega-se e pensam os adeptos que estão lavados. Mas, por muito que esfreguem, não estão. Com a minha falta de treino, aliás, esta manhã, ao lavar-me, molhei as calças de pijama. Demoraram meia hora a secar, penduradas na janela.
Para a
petite historie. Quando aqui estive pela primeira vez, em Agosto, fiquei num quarto de duas camas. O meu primeiro companheiro de quarto, um senhor de oitenta anos, pediu à enfermeira para não se lavar. Ela recusou e obrigou-o mas o homenzinho limitou-se a passear a
gant pelo torso meio vestido. Depois de dois ou três dias, não se podia com o cheiro. Tinha, contudo, a vantagem de não ressonar. Já o meu segundo comparsa não se calava durante a noite. Este não se calava durante o dia mas conhecia Bruxelas como a palma das suas mãos.
Encontraram células cancerosas no líquido que envolvia o coração. Uma metastasinha a passear por aquelas bandas. Desagradável. Mesmo lamentável.